Presidente se assustou com crise por 'falta de contato com a sociedade', diz ministro do TCU
No dia em que o Tribunal de Contas da União (TCU) decide se aceita a solicitação do governo federal por mais 15 dias de prazo para dar explicações sobre as contas públicas, o relator do processo, o ministro Augusto Nardes, disse, em entrevista à BBC Brasil, ser contra a extensão, além de apontar a "falta de contato com a sociedade" como um dos problemas que levou ao agravamento da crise do governo da presidente Dilma Rousseff.
Para Nardes, o prazo dado pelo TCU para o recebimento de maiores esclarecimentos, que vence na próxima quinta-feira (27), já seria suficiente. "Eu em princípio sou contra aumentar o prazo, mas vou consultar os demais ministros. Tenho um papel preponderante nesta questão, porque é uma decisão do relator, mas por ser uma decisão muito importante, eu tenho procurado sempre dividir com os ministros", disse.
Os esclarecimentos dizem respeito a novas irregularidades nas contas do governo referentes ao ano de 2014, e incluem as chamadas "pedaladas fiscais", manobras contábeis que envolveriam o uso de recursos de bancos federais para maquiar o orçamento federal.
O governo já entregou uma parte da defesa, mas, no último dia 12 de agosto, o TCU solicitou novas explicações. Além das pedaladas, o órgão preocupa-se com o fato de as supostas irregularidades terem ocorrido num ano eleitoral, e aponta para a demora do governo em tomar medidas de contingência da crise – algo sobre o qual o tribunal teria lançado alertas, diz Nardes.
Questionado sobre as declarações da presidente a jornais na terça-feira, quando disse que o governo tomou um "susto" e que não esperava uma crise com tamanha gravidade, o que ajudaria a explicar a demora em adotar medidas de contingência, como redução de gastos e ajustes fiscais, Nardes atribuiu a "surpresa" de Dilma a uma "falta de contato com a sociedade".
O parecer do TCU sobre as contas do governo federal referentes ao ano de 2014 é aguardado com expectativa, já que uma eventual reprovação pode servir de argumento para um pedido de impeachment da presidente. Indagado sobre pressões e o impacto da decisão em meio à crise política, o ministro disse que cabe ao Congresso entrar neste mérito.
"As nações fracassam quando as instituições deixam de cumprir a sua função. E a minha função é cuidar das contas junto com os auditores do tribunal. Eu me restrinjo a fazer o meu trabalho. Quanto ao procedimento de impeachment, não cabe a mim discutir isso, mas sim ao Congresso Nacional", avaliou.
Veja os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil – O governo federal pediu mais 15 dias de prazo para apresentar explicações adicionais ao TCU sobre supostas irregularidades nas contas públicas. Como os ministros devem se posicionar?
Ministro Augusto Nardes – Eu estou examinando a solicitação, e devo tomar uma decisão junto com os ministros, que deve ser anunciada nesta quarta-feira. Eu em princípio sou contra aumentar o prazo, mas vou consultar os demais ministros. Tenho um papel preponderante nesta questão, porque é uma decisão do relator, mas por ser uma decisão muito importante, eu tenho procurado sempre dividir com os ministros.
BBC Brasil – O senhor se disse pessoalmente contrário à solicitação de aumentar o prazo para o governo dar explicações sobre as contas públicas. Na sua visão, já houve tempo suficiente para elaborar os esclarecimentos?
Nardes – No total já se somam 64 dias (desde o primeiro prazo e a primeira extensão) e tem toda uma questão de rito que tem que ser feita no tribunal, da equipe técnica. Como é um processo que envolve a presidente da República e as contas da República, eu acho que é importante a gente ouvir os demais ministros sobre esta decisão.
BBC Brasil – Sabe-se que as pedaladas configuram manobras fiscais que também foram usadas por outros governos, até estaduais e municipais, mas em avaliações passadas o TCU optou pela "aprovação com ressalvas", orientando a uma melhoria de procedimentos nas contas públicas. Agora, a que se deve esse maior escrutínio, bem mais rigoroso?
Nardes – Não se trata da mesma situação. O que fica evidente é que os valores de 2014 são bastante robustos. Além disso o tribunal está em permanente evolução, e a jurisprudência também. Nós fizemos um treinamento dos nossos auditores da área financeira, e muitas coisas que nós não conseguimos enxergar lá atrás, hoje estamos enxergando com muito mais clareza. Houve a evolução do tribunal e as informações que eu tenho em relação à situação anterior são de que já haviam sido feitos alguns alertas.
Eu mesmo alertei a presidente no ano passado sobre R$ 2,3 trilhões que não estavam contabilizados, da chamada previdência atuarial, que ela passou a contabilizar. Contabilizou uma parte no ano passado e eu já registrei isso nas contas deste ano. O tribunal já vinha alertando sobre essas situações, mas o que ocorreu é que em 2014 os valores foram bastante robustos.
BBC Brasil – Se as chamadas "pedaladas fiscais" ocorrem há anos em diversos governos, o TCU não estaria enviando a mensagem de que se um crime for cometido com menor intensidade, será aceitável, mas se o volume aumentar, será punido? Não há um problema de critérios?
Nardes – A questão é que o tribunal faz alertas e o tribunal já vinha fazendo alertas. Eu não era o relator, eram outros ministros, então eu não posso falar por eles. Minha decisão, no entanto, é de que estamos diante de uma situação diferente em 2014 porque há haviam sido feitos alertas e não foram tomadas providências.
BBC Brasil – O TCU fez alertas específicos sobre as "pedaladas fiscais"?
Nardes – Aí teria que fazer uma análise lá atrás, eu não posso confirmar. Mas eu, como relator, e considerando que cada ministro é independente, entendi que tinha que fazer um contraditório para evitar que aconteça no Brasil o que aconteceu com a Grécia, Espanha e Portugal, de cortar 50% dos salários, por exemplo. O meu dever como magistrado neste caso é fazer o alerta, para que sejam tomadas as providências, para que nós não passemos o vexame pelo qual está passando a Grécia, até porque não temos a Europa para socorrer a gente.
BBC Brasil – Um dos argumentos que o governo tem usado para explicar as "pedaladas" é a comparação com o cheque especial, alegando que os recursos dos bancos públicos teriam sido usados por muito pouco tempo, que se referiam a contratos já fixados, e não configurariam empréstimos. Quanto a isso, qual é o entendimento do TCU?
Nardes – Em alguns casos o dinheiro dos bancos públicos foi utilizado por três ou quatro meses. Eles estão nos respondendo sobre isso, mas somando o total de tempo utilizado chega próximo de anos. Não posso entrar muito neste mérito porque é justamente o que está sob análise neste momento.
BBC Brasil – O processo de análise das contas do governo e das pedaladas fiscais acabou tomando grande relevância no país e é sem dúvida uma decisão aguardada por toda a população. Há pressão sobre o senhor, como relator, e sobre os outros ministros?
Nardes – Isso faz parte do jogo democrático. O país é uma democracia e a pressão contra ou a favor é parte desses pilares importantes para a democracia brasileira. Eu não me assusto com isso. Fico tranquilo, e estou tentando conduzir da forma mais equilibrada possível, dando todo e amplo direito de defesa para o governo, ouvindo todo o governo, para que a gente possa conduzir de forma harmônica essa questão.
Eu mesmo recebi 13 mil e-mails até agora, de diversas origens. Muito mais a favor do TCU do que contra. Eu diria que 85% são favoráveis ao trabalho que o TCU está fazendo. Nós estamos mudando uma história de 80 anos que sempre optava pela aprovação com ressalva.
BBC Brasil – O TCU analisa as contas do governo em meio a uma grave crise política. Como é coordenar este trabalho ciente de que os resultados podem ter papel crucial num eventual processo de impeachment contra a presidente?
Nardes – Esta análise eu não faço, porque não cabe a mim este procedimento, cabe ao Congresso Nacional. As nações fracassam quando as instituições deixam de cumprir a sua função. E a minha função é cuidar das contas junto com os auditores do tribunal. Eu me restrinjo a fazer o meu trabalho. Quanto ao procedimento de impeachment, não cabe a mim discutir isso, mas sim ao Congresso Nacional.
BBC Brasil – Na opinião do senhor, a falta de contingenciamento, ou seja, de reduzir gastos e executar medidas de ajustes, foi tão grave quanto as pedaladas?
Nardes – Mais grave.
BBC Brasil – Como o senhor recebeu as declarações da presidente Dilma Rousseff a jornais nesta terça-feira, quando disse que a gravidade da crise foi "um susto" para o governo e que por isso teria havido a demora em executar medidas de contingência?
Nardes – É falta de contato com a sociedade, porque eu já venho falando há dois anos, alertando sobre essa questão da Petrobras há sete, oito anos, sobre o que estava acontecendo na empresa. Mostramos nas nossas auditorias, o Congresso foi avisado, recomendamos ao Congresso que não repassasse mais verbas para a refinaria Abreu e Lima, e o ex-presidente Lula (Luiz Inácio Lula da Silva) vetou, liberando as verbas, e ocorreu todo esse escândalo da operação lava jato. Se tivessem escutado o TCU sete anos atrás, muito do que está ocorrendo poderia ter sido evitado. Nós fizemos a nossa parte.
BBC Brasil – Os alertas do TCU poderiam ter evitado ou ao menos reduzido os estragos causados pelas irregularidades deflagradas na Operação Lava Jato?
Nardes – A Polícia Federal até já declarou que se baseou nas auditorias do TCU para fazer a operação. A questão é que nós não temos poder de investigação. Nós fazemos uma auditoria e a Polícia Federal é quem investiga. A Polícia Federal comprovou aquilo que nós tínhamos apurado e sobre o qual já tínhamos avisado o governo há muito tempo.
BBC Brasil – E daqui para frente, qual deve ser o papel do TCU? O tribunal deve sair fortalecido desse processo?
Nardes – Eu acho que é como antes e depois de Cristo, o antes e depois das contas. A partir de agora os gestores terão que ter um cuidado muito grande, porque há uma mudança de comportamento e isso faz parte de uma trajetória que nós estabelecemos, transformando o tribunal. Nós temos especialistas em mais de 50 áreas. Temos especialistas em todas as áreas. Eu quando fui presidente propus essa especialização de auditores em setores de saúde, transporte, energia nuclear.