Prestes a assumir vaga no TSE, Barroso defende que situação de Lula seja definida o mais cedo possível
Em entrevista à BBC Brasil, ministro fala sobre as eleições de 2018, chama decisão do STF no caso Aécio Neves de 'semissuicídio institucional' e diz que corte desempenha mal um papel que não lhe cabe: funcionar como tribunal criminal de 1º grau 'para julgar políticos encrencados'.
"Eu quero falar do Brasil, quero falar de coisas boas, a gente precisa de uma nova narrativa, um outro país", afirma o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso ao receber a reportagem da BBC Brasil no seu gabinete, nesta semana.
"Eu falo das coisas que você quer falar, tá bom assim? Mas você vai me deixar falar que a gente precisa imaginar o futuro", propõe, diante da insistência da reportagem em abordar as controvérsias do presente.
Trato feito, Barroso respondeu a todas as perguntas, em uma hora e meia de entrevista. Mesmo um pouco resistente, fala sobre o que possivelmente será a questão mais polêmica das eleições de 2018 - a possibilidade ou não do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva disputar a Presidência da República.
O petista, hoje líder nas pesquisas, corre o risco de ser barrado pela Lei da Ficha Limpa caso o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) confirme a condenação do juiz Sergio Moro, que concluiu que ele recebeu um apartamento tríplex no Guarujá (SP) em troca da promoção de interesses da empreiteira OAS junto à Petrobras.
A defesa de Lula nega e diz que seu cliente não está sendo julgado com isenção - um dos indícios disso, segundo aliados do petista, é o fato do processo no TRF-4 ter andado com mais celeridade que os outros casos da Lava Jato. Em resposta aos advogados, o presidente da corte, Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, negou isso - 1.326 apelações foram julgadas pelo tribunal em um tempo inferior apenas neste ano, afirmou.
Segundo Barroso, o melhor é que a indefinição sobre a candidatura se esclareça, e que se defina o mais cedo possível quais vão ser as regras e quem vai poder ser candidato. Se Lula for condenado pelo TRF-4, ainda poderá tentar concorrer com uma decisão do STF ou do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde o ministro assume uma vaga efetiva em fevereiro.
Ao responder sobre a baixa confiança que a população brasileira tem hoje no Supremo, apontada por pesquisa da FGV (Fundação Getulio Vargas), Barroso fez críticas à decisão da corte de autorizar que o Senado derrubasse o afastamento do senador Aécio Neves (PSDB-MG), o que chamou de "semissuicídio institucional".
"Há 650 mil presos no sistema penitenciário brasileiro. Poucas pessoas estão presas com tanta prova como havia nesse caso", resume.
Ao final da entrevista, o ministro expõe suas propostas para o futuro do Brasil, listando o que acredita ser essencial para o país construir sua "nova narrativa". A gama de propostas é ampla e lembra uma plataforma de campanha presidencial.
Questionado pela BBC Brasil sobre ter o desejo de um dia se candidatar, responde "zero". "Se eu me deixasse seduzir por essa possibilidade, isso retiraria autoridade em tudo que eu faço e do que eu falo, porque aí, a partir de agora, todo mundo poderia imaginar que eu tenha algum interesse oculto."
Confira abaixo os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil - Após três anos de crise, o Brasil caminha para uma eleição bastante conturbada. O senhor está otimista de que a eleição de 2018 pode trazer uma solução para a crise, ou vê risco de que ela se prolongue em 2019?
Barroso - Eu sou um juiz constitucional e portanto eu vivo de me preocupar em proteger a Constituição e aprimorar as instituições. De modo que eu acho que as eleições são sempre um momento de renovação da esperança e de celebração democrática. Eu espero que as eleições do ano que vem sejam capazes de, em alguma medida, cicatizar feridas que ficaram do impeachment.
Eu não vou entrar no mérito do impeachment, mas evidentemente ele foi um momento traumático, que gerou muitos ressentimentos na sociedade brasileira. Eu espero que a campanha, que as alianças que vão se formar e o debate público sejam capazes de superar esse ressentimento e de cicatrizar as feridas.
A polarização ideológica hoje está presente em todo o mundo. Populismos de direita e de esquerda por toda parte. O Brasil está no mundo, e portanto está sujeito a essas manifestações. Mas eu vejo as eleições como um momento em que a legitimidade democrática seja capaz de resgatar denominadores comuns entre as diferentes correntes.
Em um país democrático, você pode ter projetos mais liberais, mais progressistas, mais conservadores, há lugar para tudo na democracia. Mas há denominadores comuns, eu penso, de responsabilidade fiscal, de compromissos com a educação, de compromissos com a probidade administrativa e, portanto, eu acho que nós precisamos ter, antes de uma agenda política, uma agenda patriótica para o país. Isso eu espero que as eleições sejam capazes de fazer.
BBC Brasil - A Justiça vai decidir no ano que vem se o ex-presidente Lula poderá ser candidato. O julgamento no TRF-4 está marcado para 24 de janeiro e seus aliados veem uma certa aceleração que poderia ser um indício de que não há uma isenção no tratamento desse processo. O senhor vê algum problema na rapidez com que foi marcado esse julgamento?
Barroso - Eu não sou comentarista político, portanto, não cabe a mim analisar as implicações da candidatura de A ou de B. Mas, se há uma indefinição jurídica, eu acho que quanto mais célere puder ser o esclarecimento dessa situação, melhor.
Portanto, acho que, em nome da segurança jurídica e da estabilidade do jogo democrático, é melhor que se defina o mais cedo possível quais vão ser as regras, quem vai poder ser candidato. Eu não acho que isso seja problema, nem indício de perseguição, acho que é um momento de prudência.
BBC Brasil - O senhor falou como 2018 pode ser o momento de superar a crise do impeachment, trazer uma legitimidade democrática para o próximo governo. Algumas pessoas consideram que, se o ex-presidente não puder concorrer com base na Lei da Ficha Limpa, isso poderia tirar a legitimidade dessa eleição. Como o senhor vê essa discussão?
Barroso - De novo, eu não sou comentarista político e não tenho essa obsessão pelo presidente Lula, nem para bem, nem para mal. Acho que ele é um personagem relevante da história recente do Brasil, que está sujeito aos juízos políticos que a política induz. A minha parte (no debate) não é esta.
Agora, o Brasil é uma República, embora a gente precise reproclamá-la com frequência. O presidente Lula não merece ser tratado nem pior nem melhor do que qualquer outra pessoa. Deve ser tratado com distinção, com equidade, com base nos elementos dos autos, com seriedade, com respeito.
Eu acho que não se pode antecipar a decisão. Eu não sei o que vai ser decidido. Uma democracia se move por regras que valem para todos. Portanto, acho que todos os candidatos estão sujeitos às regras do jogo.
BBC Brasil - Pesquisa da FGV deste ano mostra que apenas 24% dos brasileiros confiam no Supremo. A que se deve essa baixa confiança?
Barroso - Ninguém deveria imaginar que o Supremo pudesse ser arremetido ao centro da crise política, e chamado para arbitrar boa parte dos conflitos gerados pela crise política, sem que isso trouxesse algum tipo de insatisfação.
Foi aqui que se definiu o rito do impeachment (da ex-presidente Dilma Rousseff). Depois o Supremo viveu um momento de afastamento do presidente da Câmara dos Deputados (Eduardo Cunha). O Supremo também declarou a inconstitucionalidade do modelo mafioso de financiamento eleitoral que havia no Brasil. Como escapar da crítica severa dos que se sentiram derrotados?
No geral, o Supremo tem se saído bem. Cumpre bem os papéis que lhe cabem, e cumpre mal o papel que não lhe cabe. Quais são os dois grandes papéis que cabem a um Supremo Tribunal Federal numa democracia? Proteger as regras do jogo democrático e proteger os direitos fundamentais.
O Supremo tem defendido os direitos fundamentais com razoável eficiência, em alguns casos até com ousadia. Ao longo dos anos, assegurou os direitos dos homossexuais no caso das uniões homoafetivas, assegurou o direito das mulheres em matéria de violência e na questão de interrupção da gestação (de anencéfalos), garantiu direito aos negros em relação a ações afirmativas.
Em matéria de proteção às regras do jogo democrático, os exemplos que eu lhe dei, de rito do impeachment, fidelidade partidária, a questão do financiamento eleitoral, proibição do nepotismo. Esses papéis, o Supremo desempenhou bem. O papel que não cabe ao Supremo, que o desgasta, e que ele frequentemente desempenha mal, é o papel de funcionar como tribunal criminal de primeiro grau, para julgar políticos encrencados.
BBC Brasil - Até agora nenhum processo da Lava Jato foi concluído no Supremo.
Barroso - Quais são os problemas no Supremo? Primeiro, o sistema não foi concebido para que existissem 550 inquéritos e ações penais tramitando no Supremo. Isso é mais do que tudo que a Suprema Corte americana julgou nos últimos cinco, seis anos.
O foro privilegiado é uma competência que o Supremo desempenha mal por motivos principiológicos, porque não é republicano você criar esse privilégio, por motivos estruturais, pois o tribunal não é preparado para esse tipo de julgamento, e por motivos de Justiça, porque gera impunidade. E aí você tem um problema no sistema que não é propriamente culpa do Supremo.
Vou lhe dar um exemplo de um caso, que aliás mandei baixar (do Supremo para a primeira instância) hoje (terça-feira). O cidadão é denunciado quando é deputado federal, é competência do Supremo. Aí ele deixa de ser deputado, o processo baixa para o primeiro grau. Aí ele vira secretário de Estado e a competência vai para o Tribunal de Justiça. Ele deixa de ser secretário e o processo volta para o primeiro grau. Ele se reelege deputado federal, o processo volta para o Supremo.
Passam-se dez anos nessa brincadeira. Não há como você instruir um processo e fazê-lo funcionar. De modo que o foro privilegiado é feito para não funcionar e ele cumpre bem o seu papel: ele não funciona.
Portanto, eu propus (ao plenário do STF) uma interpretação que reduz drasticamente o foro privilegiado para os casos de delitos cometidos no cargo e em razões do cargo. E já há oito votos favoráveis (o julgamento foi suspenso com esse placar por um pedido de vista do ministro Dias Toffoli).
Eu tenho aqui um caso de um prefeito que é exatamente essa narrativa de subidas e descidas, e já se aproximando da prescrição (do crime). Como eu acho que já há uma posição formada no plenário, que dificilmente vai ser revertida, já mandei baixar de uma vez para que a decisão (da maioria do STF) já comece a ser cumprida.
BBC Brasil - O senhor acha que isso vai acontecer com outros casos?
Barroso - É possível, mas o que eu queria concluir é que, portanto, o que desgasta a imagem do Supremo é a competência que ele não deveria ter, de funcionar como um juízo criminal de primeiro grau. Então, você tem mais de cem decisões proferidas (nos casos da Lava Jato) pela 13ª Vara Criminal de Curitiba (do juiz Sergio Moro) e não tem nenhuma decisão (no Supremo).
Essa pesquisa, quando revela uma percepção negativa do Supremo, ela se refere a esta competência criminal. Mesmo o episódio envolvendo um senador da República (o afastamento de Aécio Neves, derrubado depois pelo Senado): em um semissuicídio institucional, (o Supremo) decidiu que o que ele decide está sujeito a aprovação ou não do Congresso Nacional.
Esse também foi um caso criminal cuja jurisdição ele (STF) não deveria ter. Pior, uma decisão contraditória, porque, quando se tratou do deputado A, a decisão foi uma, quando se tratou do deputado B, a decisão foi outra.
Não há nada pior para a percepção social do papel de um tribunal do que uma jurisprudência que vai de acordo com o réu, porque aí você passa a impressão de que não está fazendo justiça, está fazendo a política do compadrio.
BBC Brasil - O senhor criticou o fato de o Supremo ter dado ao Congresso o poder de derrubar o afastamento do senador Aécio Neves. Alguns juristas, porém, interpretam que, na Constituição, não há essa previsão de suspensão do mandato. Eles consideram que, assim como o Congresso pode suspender uma prisão (de um parlamentar), poderia suspender essa decisão.
Barroso - A Constituição só prevê a submissão ao Congresso de decisões relativas à prisão em flagrante. É o único caso. O Código de Processo Penal prevê o afastamento do cargo como um medida cautelar diferente da prisão. A Constituição só excepciona em relação aos parlamentares aquilo que ela prevê. Quanto ao mais, princípio republicano: aplica-se a lei que vale para todo mundo.
Eu não falo de nomes, o processo já passou. Mas veja: se tem um processo em que eu tenha o áudio de um parlamentar, seja qual for, pedindo dinheiro. Depois eu tenho o áudio do parlamentar dizendo quem ele vai mandar buscar o dinheiro, com o complemento de que tem que ser alguém que a gente mate antes de ele fazer delação.
Geralmente, quem está preocupado com delação não é quem esteja fazendo uma coisa correta. E aí, em operação controlada, a pessoa que se disse que ia buscar o dinheiro, de fato vai buscar o dinheiro e recebe o dinheiro vivo e coloca em mochilas, em quatro idas, R$ 500 mil reais colocados em mochila, e transporta por via terrestre até um outro Estado da federação, onde esse dinheiro, que seria um empréstimo para o parlamentar, não é depositado na conta do parlamentar, é depositado na conta de um assessor de um senador correligionário que, indagado pelo banco, presta uma informação falsa sobre a origem do dinheiro.
Depois, há um depoimento em que o depoente fala que combinou com a irmã do parlamentar que ocultariam essa propina, ou como queiram chamar, da mesma forma que haviam feito em 2014. Depois, vem a declaração de que é preciso interferir na Lava Jato para nomear um delegado amigo para cada um dos acusados, e as gravações terminam com a oferta de um cargo em empresa em que o Estado tem influência como gratidão.
Há 650 mil presos no sistema penitenciário brasileiro. Poucas pessoas estão presas com tanta prova como havia nesse caso. Portanto, eu acho que o afastamento (de Aécio Neves) se impunha. Não é um sentimento pessoal, não é um sentimento político. Não é populismo, é prova.
BBC Brasil - Um instrumento que se popularizou a partir da Lava Jato, e que tem sido alvo de muitas críticas, é a condução coercitiva, que vem sendo usada sem a intimação prévia, como previsto em lei. O ministro Gilmar Mendes acaba de dar uma liminar suspendendo novas conduções coercitivas. O senhor concorda que o Supremo deve colocar um freio nisso?
Barroso - Acho que o Supremo vai apreciar a questão da condução coercitiva. Nenhuma área do Direito oferece mais riscos de abuso do que o Direito Penal e, portanto, é preciso que na condução coercitiva, como em tudo mais em matéria de Direito Penal, se respeitem as regras da Constituição e das leis. A condução coercitiva deve ser praticada se e quando a lei permite, observados os requisitos da lei.
BBC Brasil - O senhor é muito propositivo. Uma crítica comum que se ouve em Brasília é que o ministro Barroso deveria estar em outro prédio da Praça dos Três Poderes, deveria estar no Legislativo. É uma crítica que até o ministro Marco Aurélio já fez, no julgamento em que o senhor propôs que presos em condições degradantes deveriam ter descontados dias da pena, em vez de receber indenização. Para alguns críticos, o excesso de inventividade seria deletério para a institucionalidade do país. Como o senhor responde a essas críticas?
Barroso - Eu empurro a história num país que se atrasou, rigorosamente dentro da Constituição e das leis. Mas, onde há problemas que não foram resolvidos, eu penso fora da caixa mesmo. Portanto, havia um problema de nepotismo no Brasil, eu propus uma ação constitucional para acabar com o nepotismo no Brasil. Parte dessas pessoas, tanto na academia como na política, criticaram a decisão. Uma teoria constitucional que não sirva para acabar com o nepotismo, que é uma prática que viola o princípio da moralidade previsto na Constituição, não serve para mim.
Depois, como advogado propus a ADPF (um tipo de ação) que permitia a equiparação entre as uniões homoafetivas e as uniões estáveis tradicionais, porque esse era um avanço civilizatório indispensável. Um tribunal constitucional que não protege direitos fundamentais da minoria não é digno desse nome. E, portanto, dentro da Constituição e do que eu considero a legalidade, promoveu-se esse avanço.
Estou procurando demonstrar que todos esses casos, ainda que tenham sido ideias fora da caixa, são ideias que avançam a causa da humanidade, dentro dos parâmetros da Constituição e da promoção dos direitos fundamentais.
E, no caso da remição da indenização, foi um atraso não ter passado isso. O caso concreto era um preso que pedia uma indenização porque passou oito anos em situação degradante dentro do cárcere. O juiz de primeiro grau deu R$ 2 mil de indenização. O tribunal (de segunda instância) retirou a indenização, usou o princípio da reserva do possível: o Estado não tem dinheiro para pagar. E aí o Supremo, no voto do meu querido amigo, saudoso ministro Teori Zavascki, reestabelecia a decisão de primeiro grau.
Eu disse na sessão: dar R$ 2 mil para alguém que passou 8 anos em condições degradantes violadoras da dignidade da pessoa humana é violar a dignidade dessa pessoa de novo. Agora, se você for dar a indenização justa para qualquer pessoa que passe muitos anos em situação degradante, como essa infelizmente é a regra do país, você quebra os Estados.
Eu não quero quebrar o Estado, eu não quero humilhar essa pessoa dando R$ 2 mil reais da indenização, portanto eu pensei numa fórmula pela qual a indenização por condições degradantes era paga com remissão de pena. A cada sete dias em condições degradantes, você abrevia um dia de prisão. Foi uma solução debatida na Corte Europeia de Direitos Humanos e sugerida para a Itália. Nem tudo a gente inventa, a gente vê o que deu certo, quais foram as boas ideias que existem no mundo.
Num país que se atrasou na história como o Brasil, você às vezes precisa pensar fora da caixa para resolver problemas. Fora da caixa, mas dentro da Constituição.
BBC Brasil - Ninguém duvida do seu vasto conhecimento da Constituição e das suas boas intenções. A crítica é de que o senhor estaria, com essas propostas, invadindo a prerrogativa do Legislativo.
Barroso - Nunca aconteceu. Aborto, para pegar o caso mais polêmico. Geralmente quem é contra, como era com uniões homoafetivas, a pessoa não diz "eu sou contra". Tem até um autor que tem uma certa ideia fixa por mim que diz assim "não, eu não sou contra uniões homoafetivas, tem até um primo que é gay, que eu cumprimento, maaaaas tem que ser o Congresso". Sabe quando isso vai passar no Congresso? Jamais.
Aborto, a mesma coisa. Quem é que fala que tem que ser o Congresso? Quem não quer, porque o Congresso não vai passar jamais. Qual era o caso concreto? Eu que tinha que prender, tinha que prender o médico e tinha que prender a mulher (Barroso se refere a decisão que liderou na Primeira Turma do STF, em novembro de 2016, negando pedido de prisão de médicos e de uma mulher flagrados realizando um aborto).
Prender ou não prender é uma função judicial. E eu não posso prender alguém por algo que eu não considero crime, se eu considero que é um direito fundamental (interromper a gravidez).
A grande característica do direito fundamental é ele ser oponível à vontade das maiorias. O direito fundamental é algo que não depende dos outros, nem do legislador. Portanto, se eu acho que a mulher tem o direito fundamental a interromper a gestação no primeiro trimestre, em nome da sua autonomia individual, da sua integridade física e psicológica, dos seus direitos reprodutivos, eu não posso prendê-la.
Estamos acabando, né? Só vamos falar da nossa agenda positiva ainda. Eu vou fazer um contrabando de coisa boa.
BBC Brasil - Vamos. Um problema ainda muito grave do Brasil é a desigualdade social. Como o senhor acha que o próximo governo deveria enfrentar isso? Deveria ser uma prioridade?
Barroso - A desigualdade é o item 1 da agenda brasileira. Uma certa mediocridade que hoje em dia campeia na vida pública é um segundo problema. A corrupção é outro problema.
Primeiro, a gente precisa de uma nova narrativa para o Brasil, de um exercício de imaginação social do que nós queremos ser na história e no mundo. Qual é o nosso lugar na história, que país queremos ser? No itinerário dessa imaginação social, acho que precisamos de uma nova agenda para o Brasil. Uma agenda de reforma política, uma agenda econômica, e uma agenda social.
Nós temos um sistema político que vai na contramão do processo civilizatório. Precisamos de uma reforma política que barateie (as campanhas), que aumente a legitimidade democrática e que facilite a governabilidade. A minha proposta é, há muitos anos, um sistema distrital misto (para eleição dos legisladores).
Superada a agenda política, tem que ter uma agenda econômica e fiscal. Aí, inclui a Reforma da Previdência. É inacreditável que não se consiga avançar essa agenda. Há um denominador comum nos países que é o patriotismo. Não importa se você é conservador, liberal, ou progressista. Se a conta não fechar, nós vamos entregar um país arruinado para os nossos filhos.
Já caminhando para a (questão da) igualdade: nós temos que fazer uma reforma tributária. Há um problema de injustiça fiscal. Um parte muito expressiva da tributação no Brasil é a do tributo sobre consumo - IPI, ICMS, ISS e de certa forma PIS/Cofins. Qual o problema desse tipo de tributo? É que ele é concentrador de renda, ele é regressivo, que é o tributo que eu e o meu caseiro pagamos exatamente o mesmo valor.
O Brasil é, dentre os países com esse estágio de desenvolvimento, o que mais tributa consumo e, não sem surpresa, o país que menos tributa capital. Aqui não se tributa nem sequer a distribuição de lucros e dividendos. Eu fui advogado trinta anos, quando eu recebia honorários na sociedade de advogados, você paga uma taxação moderada, relativamente branda, e, quando você distribui os dividendos, é isento. Portanto, a minha secretária pagava mais Imposto de Renda que eu. Esse é o país que a classe dominante brasileira criou.
E, por fim, para enfrentar a desigualdade você precisa de uma agenda social. No Brasil, ao meu ver, ela tem que incluir uma política de saneamento básico, que é a principal política pública de saúde preventiva, como revela a Organização Mundial de Saúde. Também uma política de habitação popular. Nós precisávamos viver um processo profundo, abrangente, de desfavelização. Mas não é para jogar para longe, para esconder, é para tornar a vida das pessoas melhor.
E o mais importante de todos que eu queria falar, antes de encerrar: educação, a principal política igualitária do mundo. Educação não pode ser um slogan, tem que ser uma prioridade. Começando na educação de zero a três anos. Em um país como o Brasil, de muitos lares desfeitos, é a escola, nesse primeiro momento da vida, que vai suprir a criança com nutrição, respeito e valores que vão pautar a vida dela para todo sempre.
O Brasil tem que universalizar a educação infantil no primeiro momento da vida. Eu acho que com isso nós resolveríamos o principal problema da educação hoje que é a evasão quando você chega no Ensino Médio. A partir daí, a gente tem que ter mais compromissos com a qualidade, com o treinamento de professores.
Para a universidade, nós precisamos repensar o modelo de financiamento. Eu acho que o Estado deve dar todo o dinheiro que possa, mas a universidade tem que desenvolver meio de autossustentabilidade também, através de ex-alunos de sucesso e vendendo projetos e prestando serviços à sociedade. Não tem nada a ver com privatização e esses rótulos atrasados, tem a ver com gerar riquezas e mandar esses jovens pobres estudar no exterior, montar laboratórios de qualidade.
Eu quero falar duas últimas coisas. Uma, nós vamos ter que dar um choque de livre iniciativa no Brasil, porque nós vamos ter que reduzir o Estado. Nós somos acostumados com capitalismo de Estado, com paternalismo, e somos uma sociedade de pessoas Estado-dependentes. E a diminuição do Estado ajudará a combater a corrupção.
A corrupção no Brasil se tornou endêmica, sistêmica, com um nível de contágio que nos envergonha a todos. Acho, no entanto, que nós estamos corajosamente enfrentando esses problemas, com as dificuldades e as reações previsíveis.
BBC Brasil - Ouvindo o senhor falar de forma tão ampla, passando pelo vários problemas do Brasil, é impossível deixar de pensar que o senhor talvez tivesse a pretensão de estar no Planalto, onde teria muito mais poder para atacar todos esses problemas. O senhor teria desejo de em algum momento disputar uma eleição presidencial?
Barroso - Zero. Não passa pela minha cabeça. Eu vivo de pensar o Brasil e de tentar aprimorar as instituições e fazer um Brasil melhor e maior, de contribuir para a causa da humanidade. Essa é verdadeiramente a minha vida. E eu sou muito feliz onde a vida me trouxe. Eu defendo as minhas ideias na academia e, quando seja o caso, na bancada do tribunal.
Se eu me deixasse seduzir por essa possibilidade, isso retiraria autoridade de tudo o que eu faço e do que eu falo, porque aí, a partir de agora, todo mundo poderia imaginar que eu tenha algum interesse oculto. Não tenho.