Projeto pioneiro de médico usa escolas como postos de saúde
Camilla Costa
Da BBC Brasil em São Paulo
Aos 66 anos de idade, o pediatra e infectologista Manoel Francisco de Paiva pode dizer que seu trabalho em Pouso Alegre (MG) foi pioneiro da atenção básica na região - mais de uma década antes da criação do Programa de Saúde da Família, do governo federal.
Quando começou o Projeto Saúde - uma atividade de extensão que leva alunos da faculdade de Medicina onde dá aulas para realizar atendimento médico gratuito em escolas de diversos municípios -, em 1981, mal havia postos de saúde nas cidades do entorno de Pouso Alegre, no sul de Minas Gerais.
"Quando eu mudei pra cá, o acesso aos serviços médicos era muito difícil. Muitas das cidades aqui perto não tinham um profissional sequer. O projeto estava suprindo essa falta, fazendo esse trabalho", disse à BBC Brasil.
"No início do projeto, nem se falava de HIV, por exemplo. Eu tive até que fazer palestras com os médicos de determinadas localidades para que eles soubessem o que era."
A iniciativa do médico, um ex-participante do Projeto Rondon (que levou estudantes universitários para prestar serviços a comunidades isoladas no interior do país entre 1967 e 1989), acontece sem interrupções há 34 anos.
Sem política
Criado na Universidade do Vale do Sapucaí (Univas), onde Paiva é professor desde 1978, o Projeto Saúde reúne alunos a partir do 2º ano de Medicina para atendimentos de saúde gratuitos à população.
Os alunos veteranos, que atuam como monitores, fazem contato com escolas da rede pública das cidades da região e organizam os eventos. Durante a semana, a equipe dá palestras para os alunos adolescentes e também para pais, professores e outros representantes da comunidade. No sábado, a escola se transforma em uma espécide de "ambulatório global", segundo o médico. O atendimento acontece mensalmente e há um rodízio entre as escolas que recebem o projeto.
"Os alunos do 2º ano de Medicina acolhem os pacientes, conversam com eles, vão pesá-los, medi-los, fazer exames de pressão. Os alunos mais graduados fazem o atendimento clínico, sob minha supervisão. Aproveitamos o mobiliário da escola para criar mini consultórios dentro das salas de aula."
O "ambulatório na escola" também tem salas especiais para homens e mulheres, e outra em que um aluno faz exames para detectar diabetes nos pacientes.
O objetivo inicial do projeto é científico - as informações coletadas formam uma base de dados sobre a saúde da população local, a partir das crianças de 5 a 14 anos. Por isso a escolha das escolas públicas como local de atendimento. A carência de serviços, no entanto, tornou a meta mais abrangente.
"Começou a chegar gente para ser atendida que não estudava nas escolas: os irmãos dos alunos, os pais. Imagine chegar em um lugar onde não há médicos. Então continuamos coletando os dados da faixa etária que planejamos, mas abrimos o atendimento para todo mundo", diz Paiva.
Para que os alunos consigam realizar os atendimentos, fazem acordos com as prefeituras dos municípios, que cedem o transporte, os medicamentos da rede pública e o material. A escola fornece a alimentação para a equipe. Em alguns casos, segundo Paiva, conflitos políticos fazem com que as escolas forneçam a maior parte das necessidades.
O médico, no entanto, afirma não ter qualquer relação com partidos políticos na organização do projeto. E diz ter rejeitado ativamente as diversas tentativas de políticos de se vincularem a ele.
"Quando organizamos a palestra para os adultos, a primeira coisa que faço é dizer que estou ali espontaneamente, sem vínculo algum com religião e política. Porque se alguém virar e falar que 'quem trouxe o projeto para cá fui eu', a população já sabe que é mentira", diz.
"Isso já aconteceu algumas vezes. Em uma cidade, o prefeito começou um discurso de abertura dizendo que se empenhou em trazer o projeto para lá. Mas assim que eu peguei o microfone, disse que estava ali por vontade própria e que era a primeira vez que tinha contato com aquele prefeito."
Formação
Além do interesse acadêmico de fazer um levantamento de dados de saúde nas cidades, Paiva diz que o projeto pretende contribuir para "melhorar a relação entre o médico e o paciente" e formar profissionais com a experiência de atendimento humanizado - que ele afirma ser uma lacuna no currículo universitário.
"A ideia é dar ao aluno uma formação generalista e estimular que os alunos se doem à comunidade. A formação médica atual é centrada no hospital. Agora que estamos vendo os alunos indo para o posto de saúde, agora é que estão sendo incentivados os médicos de família e comunidade. Os próprios professores querem ficar nos hospitais porque é mais prático para eles."
Maria Luiza Baldassaris, de 30 anos, foi monitora do Projeto Saúde durante o curso de Medicina. Da intenção inicial de se especializar em pediatria, chegou à medicina de família e comunidade - formação considerada desejável na atenção básica, mas que atualmente corresponde a apenas 1% do total de médicos no Brasil.
"A monitoria me influenciou muito. Quando tive mais contato com a clínica e com as ações sociais que aconteciam na faculdade, me interessei pela saúde pública", disse à BBC Brasil.
Acompanhando as mudanças curriculares antecipadas pelo projeto de Paiva, Maria Luiza será a primeira médica de família a ensinar na Univas, como preceptora (orientadora de residentes) do estágio em Saúde Coletiva. Ela diz que em sua turma de monitores do projeto, foi a única a seguir a carreira no SUS. "Todos se empenhavam muito e gostavam muito, mas só eu resolvi fazer medicina de família e comunidade. Eles pensavam muito na pouca valorização do profissional".
"Durante a faculdade tivemos muito pouco contato com a atenção básica. O enriquecimento do currículo vem acontecendo de uns tempos para cá. Hoje sei que os alunos são inseridos na atenção básica desde o segundo ano."
Para o médico, a precarização da carreira pública de Medicina contribui para que os médicos recém-formados nem sempre ofereçam um bom atendimento aos pacientes nos postos de saúde. O contato com a população desde a faculdade, ele espera, pode mudar isso.
"O Brasil tem muito esse problema. Como o salário é pequeno nos postos de saúde, um finge que paga e o outro finge que trabalha. O aluno que é formado com uma visão diferente do atendimento, de que precisa oferecer um bom atendimento a todos, já pode ter outra postura. Mesmo que só tenha que trabalhar no SUS até passar em uma residência", afirma.
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Cirurgia
Apesar do foco em problemas básicos, como infecções e doenças parasitárias, a equipe encontrou uma série de casos graves e raros. Entre eles, o de uma garota de 13 anos que foi diagnosticada com uma grave má formação no coração. A suspeita inicial, na verdade, partiu do motorista da van que levava a menina e outras crianças até a escola todos os dias.
"Durante o atendimento, o motorista me disse que estava preocupado com essa menina. Ele achava que ela vinha sempre correndo para o transporte, e ela dizia que não. Mas estava sempre cansada. Fiquei interessado no caso e pedi para ele buscá-la", relembra o médico.
Um aluno do 2º ano de Medicina, que fez os exames iniciais na menina, descobriu que sua pressão arterial estava altíssima. Com mais exames clínicos, a equipe detectou o sopro no coração, um ruído que pode indicar a má formação.
"Liguei imediatamente para o hospital da faculdade e avisei que mandaria a criança. Em paralelo, pedi para chamarem a mãe dela. Quando fizeram os exames, perceberam que a menina tinha uma anomalia muito importante no coração. Pessoas com essa anomalia geralmente não passam dos 30 anos de idade."
"Eu atendi a garota na hora do almoço na cidade de Santa Rita do Sapucaí e meia-noite ela já estava sendo operada no Incor, em São Paulo. Tudo pela saúde pública. Hoje ela tem 25 anos e está muito bem. E eu cuido da criança dela, olha só que interessante", conta Paiva.
O diagnóstico da garota aconteceu na Escola Estadual Dr. Luiz Pinto de Almeida, na cidade de Santa Rita do Sapucaí. O local recebe o Projeto Saúde a cada dois anos desde o ano 2000.
"O primeiro que fizemos foi um sucesso tão grande que colocamos o projeto no nosso programa escolar. Os pais já sabem que vai acontecer e cobram de nós. Quase 100% dos alunos vêm para as consultas", disse à BBC Brasil a diretora da escola, Rosemary Mendes.
Em uma das edições, a equipe chegou a levar microscópios e bioquímicos para a escola. O objetivo era fazer exames de fezes nos alunos, com resultado imediato. Após casos como o da garota diagnosticada com a ajuda do motorista da van, segundo Rosemary, os funcionários passaram a ficar mais atentos a possíveis problemas apresentados pelos alunos.
"Professores e alunos conversam mais sobre problemas de visão de audição, até ginecológicos. Depois damos um toque para os médicos. Os alunos precisam estar bem fisicamente para ter um bom aprendizado", diz.