Promotoria aposta em 'provas contundentes' contra PM no caso Amarildo
O Ministério Público do Rio de Janeiro aposta em um conjunto de provas "contundentes" contra os 25 policiais militares acusados de tortura seguida de morte do pedreiro Amarildo de Souza, na UPP da Rocinha, em julho do ano passado. Após ampla repercussão e intensas investigações, o caso começa a ser julgado na tarde desta quinta-feira.
Popularizado pela frase "Cadê o Amarildo?", estampada em centenas de cartazes de manifestantes pelas ruas de todo o país e nas redes sociais, o caso inclui ao menos 19 testemunhas de acusação e 20 de defesa, além dos 25 réus que serão julgados por um tribunal do júri.
Todos os policiais militares que na época atuavam na UPP da Rocinha respondem por tortura seguida de morte, mas sobre alguns membros do grupo também pesam acusações de omissão, ocultação de cadáver, fraude processual e formação de quadrilha armada.
As penas previstas variam entre 9 anos e seis meses até 30 anos de prisão.
Quatro são acusados de torturarem diretamente o pedreiro, e suas penas devem ser maiores. São eles o tenente Luiz Felipe de Medeiros, o sargento Reinaldo Gonçalves e os soldados Anderson Maia e Douglas Roberto Vital.
Comandante da UPP da Rocinha na época, o major Édson Raimundo dos Santos é acusado de ordenar a tortura e as fraudes posteriores para ocultar a cena do crime e gerar provas falsas, como uma ligação de celular em que um dos soldados se faz passar por um traficante que se responsabilizaria pela morte de Amarildo.
A BBC Brasil procurou a defesa da PM no caso Amarildo, mas não obteve resposta até o fechamento dessa reportagem.
Provas e dificuldades
A promotora de Justiça Carmen Eliza Bastos de Carvalho diz que as provas da acusação estão muito robustas e complementam os depoimentos dos soldados que trouxeram o caso à tona.
"Os depoimentos colhidos até agora se harmonizam com as gravações de câmeras, escutas telefônicas, enfim, todas as evidências que vêm sendo juntadas. Os dois lados da investigação se juntam como um quebra-cabeça de forma perfeita. Você vai montando e fica nítido como tudo aconteceu. É muito difícil que haja uma surpresa em direção contrária à da acusação", diz.
"As provas são tão fortes que é difícil compreender qual será a tese da defesa. Os acusados de omissão podem dizer que não tinham como se comportar de outra maneira. Aqueles que respondem diretamente pela tortura podem negar a autoria", acrescenta a promotora.
O escritório Sahione Advogados, que representa o major Édson Raimundo dos Santos e outros réus, havia concordado em dar entrevista à BBC Brasil ainda na quarta-feira, mas alegando imprevistos acabou não dando a versão da defesa.
João Pedro Pádua, advogado criminalista e professor de Processo Penal da UFF (Universidade Federal Fluminense), diz que apesar da aparente força das evidências, a acusação terá como desafio o fato de o corpo não ter sido encontrado.
"Todo homicídio sem corpo é difícil. Vai ser um caso complicado dos dois pontos de vista. A acusação terá que se preparar para todo tipo de argumentação que a defesa pode fazer perante os jurados. Sem o cadáver há várias possibilidade de histórias para contar. Mas isso não impede a condenação. Há muitos casos de homicídios sem corpo em que houve condenação", diz.
"Já para a defesa, a principal dificuldade, sem dúvida nenhuma, é a opinião pública. Este é um caso que gerou muita pressão popular. É claramente o elemento mais forte. Os jurados, assim como qualquer pessoa, moldam suas decisões de acordo com suas percepções pessoais", argumenta o especialista.
Ele acrescenta que em casos como este, de muito clamor popular, a defesa deve tentar alongar o processo, para tentar "esfriar o caso" antes que o júri tome sua decisão.
Etapas e repercussão
Nesta quinta-feira, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro dá início à primeira etapa do julgamento, quando começa a ouvir as testemunhas de acusação. Na sequência serão ouvidas as testemunhas de defesa e os 25 réus.
A promotoria espera que isto seja concluído até o fim de março, quando se abriria a segunda etapa do julgamento, com possíveis diligências (quando são solicitadas novas provas ou novas testemunhas) e a apreciação dos argumentos da acusação e da defesa. A expectativa é de que a sentença seja proferida ainda no primeiro semestre.
Após a sentença, a defesa pode entrar com recurso em segunda instância, mas por se tratar de uma decisão do júri, o tribunal de instância superior não pode revertê-la. Ou seja, se o júri condenar os PMs, a segunda instância não poderá absolvê-los. Um novo julgamento, no entanto, pode ser requerido.
Para a promotora Carmen Eliza o fato de o julgamento ter início apenas sete meses depois de o pedreiro ter desaparecido, no dia 14 de julho do ano passado, mostra que algo pode estar mudando na maneira com que agentes de segurança pública são julgados por seus crimes no Brasil.
"É um sinal de que as coisas mudaram, de que a Justiça está sendo feita. O caso tem um peso muito forte, por mostrar o que estava acontecendo na Rocinha. É claro que as UPPs são salutares, ajudaram muito, mas trata-se de um caso que arranha um projeto de governo, e isso tem muita repercussão", avalia.
Já o especialista João Pedro Pádua se mostra mais cético. "A condenação de policiais por abusos de poder não é novidade no país. Veja o exemplo da chacina de Vigário Geral, do massacre do Carandiru. O caso Amarildo é emblemático, sim, mas colocado em contexto, sou um pouco mais cético quanto ao poder que pode ter sobre uma cultura contínua de tortura. Pode haver até um impacto contrário, em que esses 25 policiais serão considerados mártires de uma sociedade que não entende o que eles acreditam estar fazendo", avalia.