Queda sem precedentes em doações de sangue coloca bancos em alerta no Brasil e no mundo
Na Fundação Pró-Sangue, em SP, estoques de vários tipos de sangue estão em nível emergencial; sistema de saúde dos Estados Unidos vive uma de suas maiores crises em uma década e hospitais funcionando sem reservas suficientes.
Em feriados prolongados ou de meses de férias, como janeiro, é comum que os estoques fiquem mais baixos no banco de sangue da Fundação Pró-Sangue, que abastece mais de cem hospitais da região metropolitana de São Paulo com suprimentos essenciais para salvar a vida de vítimas de acidentes, pacientes em tratamento ou com complicações de saúde.
Mas a médica Helena Sabino nunca viu uma escassez tão longa quanto a vivida atualmente.
"Se é uma crise sem precedentes? Acho que sim. Porque já tivemos crises piores (de falta de sangue), mas pontuais, de curta duração", diz a médica à BBC News Brasil. "Neste ano está bem mais difícil para bancos públicos e privados de sangue. Todo mundo está restringindo o que se usa em transfusões."
No dia em que conversou com a reportagem, em 31 de janeiro, todos os tipos negativos de sangue estavam em nível emergencial - o nível mais crítico - na Fundação Pró-Sangue.
A meta do órgão (ligado ao governo paulista) é coletar mensalmente em torno de 9,5 mil bolsas de sangue, mas o mês de janeiro se encerrou com uma coleta em torno de 8 mil bolsas.
E se a situação é delicada na Fundação Pró-Sangue (que é referência no país e tem seis postos para atendimento a doadores), o problema tende a ser ainda mais agudo em bancos de sangue menores.
"Alguns hospitais que tinham seus próprios bancos de sangue têm nos procurado" por estarem sem estoque, agrega Sabino.
A médica ressalta que, até o momento, nenhum paciente deixou de ser atendido por causa da escassez atual na Grande São Paulo.
"Mas se você (hospital) me pede fornecimento, nós temos que fornecer com restrição. Se tenho 50% de estoque, vou atender com 50% do que me pedem e daí avaliar as demandas caso a caso, a pedido dos hospitais. Temos de orientar os médicos a não usarem quando o paciente puder esperar. É mais trabalhoso e tudo fica mais vulnerável."
Doações caíram na pandemia
Logo no início, em 2020, a pandemia de covid-19 fez caírem muito as doações de sangue, em um momento em que as pessoas tinham mais medo de sair de casa e evitavam ao máximo buscar unidades de saúde.
"Mas, apesar dessa queda drástica, o consumo de sangue estava mais restrito, porque não havia tantos acidentes de trânsito e o paciente de covid-19 não usava tanto sangue, só quando tinha complicações mais sérias", detalha Sabino.
Agora, porém, com a volta da circulação das pessoas, dos acidentes de trânsito e das cirurgias (muitas das quais estavam represadas), o consumo voltou a crescer - mas as doações continuam em um patamar aquém do ideal.
Com o agravante do avanço da variante ômicron, que fez o Brasil bater sucessivos recordes de novas infecções diárias pelo coronavírus e dificultou as doações de sangue - pessoas com diagnóstico ou suspeita de covid-19 têm de se isolar e esperar dez dias após sua recuperação completa para doar sangue, segundo norma do Ministério da Saúde (veja mais detalhes sobre como doar ao fim da reportagem).
Ou seja, a demanda por sangue voltou a crescer no país, mas a oferta não tem conseguido acompanhar esse crescimento.
'Crise nacional' de falta de sangue nos EUA
A queda de doações de sangue por conta da pandemia tem sido observada em vários países.
No Reino Unido, em outubro de 2021, o centro de sangue e transplantes do sistema de saúde público britânico (NHS) acendeu alerta depois de o suprimento ter caído para níveis "críticos". Na Escócia, por exemplo, o número de doadores era o mais baixo em todo este início de século, segundo dados de dezembro.
Mas é nos Estados Unidos que o problema se converteu em uma crise nacional - e uma das mais graves da história recente, resultando em remarcação forçada de cirurgias, fechamento temporário de centros médicos para novos pacientes e adiamento de tratamentos vitais.
A situação é tão complicada que, na segunda semana de janeiro, a Cruz Vermelha americana, que fornece 40% dos hemoderivados utilizados pelos centros médicos do país, declarou pela primeira vez na história uma "crise nacional" por falta de sangue.
Em comunicado com os Centros de Sangue dos Estados Unidos e a Associação para o Avanço do Sangue e Bioterapias, a organização humanitária declarou que alguns hospitais só tinham fornecimento de certos tipos de sangue por menos de um dia, o que constitui "um nível perigosamente baixo".
"Se o suprimento não se estabilizar em breve, o sangue que salva vidas pode não estar disponível para alguns pacientes quando eles precisarem", alertou a Cruz Vermelha.
De acordo com dados oficiais, desde março do ano passado houve uma queda geral de 10% nas doações de sangue em todo os Estados Unidos, enquanto uma diminuição de 62% foi relatada nas campanhas de doação em escolas e universidades.
Como explica a médica Emily Coberly, especialista em hematologia da Cruz Vermelha americana, desde o ano passado os hospitais têm recebido menos sangue e, atualmente, até um quarto da demanda hospitalar não pode ser atendida.
"Chegamos a um ponto em que os médicos precisam decidir todos os dias quais pacientes recebem uma transfusão e quais não não vão receber. E isso é de partir o coração", diz.
"As cirurgias estão sendo canceladas às vezes no último minuto. Há pessoas que têm câncer que precisam de uma transfusão e estão sendo mandadas para casa sem recebê-la. Há centros de trauma que estão chegando ao ponto de esgotar suas reservas de emergência para casos como um paciente que chega gravemente ferido, com sangramento após um acidente, ou alguém com hemorragia pós-parto", diz Coberly.
Esse foi o caso do Harbor-UCLA Medical Center, na Califórnia, que, no mês de janeiro, chegou a precisar deixar de internar pacientes por mais de duas horas por falta de sangue, algo que, segundo autoridades locais, nunca tinha acontecido em 30 anos de existência do hospital.
'Uma tempestade perfeita'
Segundo Coberly, várias circunstâncias coincidiram para o agravamento do problema, criando "uma tempestade perfeita".
"O mês de janeiro (inverno no hemisfério Norte) costuma ser uma das épocas mais difíceis do ano para se coletarem hemoderivados suficientes para atender às necessidades dos pacientes. Além disso, doenças sazonais, como a gripe, deixam os doadores temporariamente incapazes de doar sangue", diz ele.
"Desde março de 2020, como resultado da covid-19 e do lockdown, vimos um declínio na participação de doadores. E também enfrentamos desafios como o cancelamentos de doações de sangue e limitações de funcionários para executá-las", diz a médica Jennifer Andrews, diretora do banco de sangue do Vanderbilt University Medical Center, à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
Já Ellen Klapper, diretora de Medicina Transfusional e Serviços de Doação de Sangue do Hospital Cedars-Sinai, na Califórnia, acrescenta que o aumento nas infecções pela variante ômicron complicou ainda mais o cenário.
"Este último aumento de casos e a natureza generalizada das infecções atuais realmente viraram tudo de cabeça para baixo. E isso porque os doadores não estão apenas doentes, mas podem estar em casa cuidando de familiares que estão doentes, isolados ou em quarentena", explica.
Coberly ressalta que já ocorreram outras crises por dificuldades em responder à demanda por sangue, mas as circunstâncias fazem do momento atual um dos mais críticos.
"É verdade que de vez em quando sentimos falta de sangue, mas temos estratégias para minimizar o impacto nos pacientes durante o período em que a oferta é limitada ou curta, com o mínimo de interrupção (no fornecimento)", explica.
"A diferença agora é que a escassez é mais grave e prolongada. Foram meses sem conseguir atender a demanda hospitalar, o que levou a esta circunstância realmente grave. Estamos limitando a quantidade de sangue que vai para os hospitais."
Andrews ressalta que a falta de sangue, juntamente com infecções por covid entre os funcionários, levou seu hospital, o principal centro de trauma da região de Nashville, a ser forçado a cancelar cirurgias.
"A situação aqui é terrível: temos que tomar decisões individuais sobre os pacientes não apenas todos os dias, mas várias vezes ao dia", conta.
Ao contrário de outros tratamentos em que é possível mudar a estratégia ou o medicamento, "não há alternativa ao sangue".
"Sou hematologista pediátrica e, às vezes, quando um de meus pacientes precisa de uma transfusão de glóbulos vermelhos, mas não tenho o suficiente para dar a ele, os parentes me perguntam: 'Você pode prescrever algo diferente?'", explica.
"Não há mais nada que eu possa prescrever, infelizmente. Então eles só precisam esperar até que tenhamos sangue suficiente", acrescenta.
Controvérsia
Nos EUA, o fato de que, embora as doações sejam voluntárias e não remuneradas, distribuidores e processadores como a Cruz Vermelha vendam o sangue para hospitais é um tema frequente de discussão em fóruns e redes sociais.
Os EUA têm uma poderosa indústria de plasma sanguíneo: os americanos fornecem dois terços do plasma usado em todo o mundo, em um mercado avaliado em US$ 24 bilhões (R$ 131 bilhões).
"A Cruz Vermelha é uma organização sem fins lucrativos e não lucramos com a coleta de sangue de doadores voluntários", diz Coberly.
"Os hospitais nos pagam por unidades de sangue, com as quais cobrimos o salário dos trabalhadores associados às doações, o custo da análise e processamento do sangue e todo o trabalho envolvido na coleta dessas unidades", afirma.
Outro ponto é que as autoridades federais não permitem a doação de sangue de homens gays que tenham relacionamentos com outros homens e uma vida sexual ativa (no Brasil, o Supremo Tribunal Federal derrubou em 2020 a restrição que proibia homossexuais de doar sangue).
A proibição nos EUA, que ainda vigora quase 40 anos após o início da epidemia de HIV, foi revisada no ano passado e reduziu a "quarentena" sem atividade sexual que é exigida para a doação de sangue. Antes, era um ano e, agora, são três meses. Porém, os motivos para a alteração não foram muito bem explicados pela comunidade científica.
"Certamente há evidências e razões científicas para mudar essas regras. Pessoalmente, não acho que essas regulamentações tenham acompanhado a ciência", diz Kappler.
Apelo à sociedade
Os especialistas consultados pela BBC News Mundo acreditam que a crise nos EUA pode durar semanas ou até meses, e que pode ter um impacto grande no sistema de saúde americano, já enfraquecido pelo aumento de internações por casos de covid.
Klapper lembra que doar sangue é um gesto anônimo que salva vidas.
"Vemos isso nos hospitais todos os dias. Com um gesto como esse, outra pessoa pode ser trazida de volta à vida. Damos a vida, salvamos o outro quando lhe damos um pouco do nosso sangue", diz.
De volta ao Brasil, outros bancos de sangue, como o Hemocentro de Brasília, também registraram queda de 23% nas doações na primeira semana de janeiro - atribuída ao aumento nos casos de covid-19 e de influenza.
No ano passado, o Ministério da Saúde calculou que, ao longo de 2020, primeiro ano da pandemia, as doações de sangue caíram 10% em todo o Brasil. Mas o remanejamento de bolsas de sangue entre os diversos Estados impediu que houvesse escassez, segundo a pasta.
Em nota em 28 de janeiro deste ano, o ministério afirmou que, entre janeiro e setembro de 2021 houve uma ligeira alta (de 4%) nas doações em relação ao mesmo período de 2020. Mas advertiu que períodos de férias, como inícios de ano, são de alerta, já que as doações ficam mais escassas, mas acidentes e complicações de saúde "não param de acontecer".
Uma única doação é capaz de salvar até quatro vidas, informa a pasta.
"Hoje cerca de 1% a 2% da população brasileira é doadora de sangue. Se dobrássemos isso para 4%, ficaríamos em situação muito mais confortável", diz Helena Sabino, da Fundação Pró-Sangue.
Como doar sangue
Para ser doador de sangue no Brasil, é preciso ter entre 16 e 69 anos e pesar a partir de 50 kg e estar em boas condições de saúde (veja mais pré-requisitos e restrições aqui).
Vacinados contra a covid-19 podem doar - basta aguardar dois dias depois da dose mais recente da CoronaVac ou sete dias dos demais imunizantes.
Quem tem diagnóstico ou suspeita de infecção pelo coronavírus e apresente sintomas, mesmo que leves, só deve doar depois de estar plenamente recuperado por dez dias.
Assintomáticos que tenham testado positivo para a covid-19 também têm de esperar dez dias. Quem teve contato com pessoas que testaram positivo devem esperar sete dias, contados a partir do último dia desse contato.
Em São Paulo, a Fundação Pró-Sangue tem seis postos para atender doadores (apenas sob agendamento online) na capital paulista e região metropolitana. É possível doar também em hospitais públicos e privados de todo o país que tenham bancos de sangue próprios.
Com reportagem de Paula Adamo Idoeta, da BBC News Brasil, e Lioman Lima, da BBC News Mundo
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