Quem foi Padre Anchieta, fundador de SP, o 'santo de casa que não faz milagre'
Além de ter participado da fundação de São Paulo e ter atuado no então nascente povoado, Anchieta embrenhou-se em missões pelo litoral paulista e chegou a se oferecer como refém dos tamoios em conflitos destes com os colonizadores portugueses.
Como costumava dizer o historiador e arquiteto Benedito Lima de Toledo (1934-2019), São Paulo é das raríssimas grandes cidades do mundo que tem uma certidão de nascimento — data e local exato de sua fundação, além dos nomes de seus "pais".
No caso, o marco inaugural da maior metrópole da América do Sul é uma pequena missão religiosa iniciada por um grupo de 13 padres jesuítas no dia 25 de janeiro de 1554.
Naquela manhã de quinta-feira, com céu claro e poucas nuvens, eles rezaram uma missa no coração da então aldeia de Piratininga, depois de subir a difícil trilha que saía da vila de São Vicente, então sede da capitania, no litoral paulista.
Entre os nomes mais proeminentes daqueles religiosos estavam o dos sacerdotes Manoel da Nóbrega (1517-1570), que era o superior do grupo, Afonso Brás (1524-1610) e Manoel de Paiva (1508-1584), que foi o celebrante da missa.
Mas quem mais se destacaria dali por diante, tendo seu nome cravado e conhecido entre os fundadores de São Paulo, foi o jovem noviço José de Anchieta (1534-1597), que nem sequer tinha completado 20 anos.
Conforme conta à BBC News Brasil a historiadora Larissa Maia Artoni, especializada na trajetória da Companhia de Jesus, Anchieta tinha a função de escrever a respeito daqueles acontecimentos para reportar à cúpula da ordem, por meio de cartas enviadas à Europa.
Artoni trabalha no Pateo do Collegio, complexo histórico, cultural e religioso mantido pelos jesuítas no marco fundador da cidade de São Paulo.
A data de fundação do município só é conhecida por conta de uma carta redigida por Anchieta a seus superiores da ordem em Portugal. "A 25 de janeiro do ano do Senhor de 1554 celebramos, em estreitíssima casinha, a primeira missa, no dia da conversão do apóstolo São Paulo, e, por isso, a ele dedicamos nossa casa", escreveu.
Em 2014, 480 anos depois de seu nascimento e 460 anos após aquela missa, o papa Francisco canonizou-o. Com uma peculiaridade: no detalhado processo que a Igreja tem para conferir tal reconhecimento a alguém, o sumo pontífice dispensou Anchieta da comprovação de algum milagre.
Assim, a velha frase de que "santo de casa não faz milagre" tornou-se fato incontestável para todos os paulistanos.
"Os seus dados biográficos são bem conhecidos e documentados, origem, formação educacional, ação apostólica e trabalho intelectual. A sua vinculação aos jesuítas e o desempenho de missões no além-mar valeram-lhe a notoriedade. Esta é derivada de sua entrega e dedicação em tarefas de atração e de conversão dos indígenas, ao longo da zona costeira, entre a Bahia e o litoral sul do atual estado de São Paulo", diz à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista.
"A posteridade foi quem consagrou sua conduta e os resultados laicos e religiosos para os quais contribuiu desde que chegou ao Novo Mundo: o engajamento de lideranças e de grupos indígenas no trabalho de colonização, defesa e aproveitamento da terra; fortalecimento e consolidação da autoridade espiritual e institucional da Igreja na vida cotidiana; a eficácia didática que alcançou na propagação da fé, a partir da interação com usos e costumes indígenas, pela valorização da música, do canto, da palavra, da encenação, como recursos de comunicação individual e grupal", acrescenta.
Intelectual e dramaturgo
Nascido em San Cristobal de La Laguna, cidade da ilha de Tenerife, no arquipélago das Canárias, na Espanha, Anchieta foi um grande intelectual e religioso de seu tempo. Filho de uma descendente de nobres e de um revolucionário basco que se tornou prefeito daquela cidade, mudou-se aos 14 anos para Coimbra, em Portugal, para estudar filosofia no Real Colégio das Artes e Humanidades. Em 1551, aos 17 anos, decidiu ingressar na Companhia de Jesus, abraçando assim a ordem religiosa.
"Embora sendo espanhol, ingressou na Companhia de Jesus no Reino de Portugal, ficando ao seu serviço, e encaminhado ao Brasil para evangelizar a nova terra. Por isso é considerado um dos fundadores das cidades brasileiras de São Paulo e do Rio de Janeiro", aponta à BBC News Brasil o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará.
Teve tuberculose e sofria de escoliose. "Já no noviciado ele era descrito como uma pessoa que padecia de muitas dores", comenta Artoni.
Em 1553, respondendo a um pedido do provincial dos jesuítas no Brasil, o padre Nóbrega, chegou a Salvador. Três meses depois, foi enviado à capitania de São Vicente.
Foi por isso que no ano seguinte ele esteve na missa fundadora daquela comunidade. Naquele primeiro ano, o pequeno povoado ao redor do colégio utilizado para catequizar os indígenas tinha 130 pessoas. De acordo com cartas da época, os religiosos conseguiram, no período, batizar 36 deles.
Naquele momento, seu papel não era de liderança. "Foi, antes, mais um servidor da companhia, devotado e atuante, disciplinado e confiável, no processo de evangelização dos povos nativos e no zelo dos preceitos da Igreja e do poder real no Novo Mundo", diz Martinez.
"A doutrina da fé era o principal instrumento de ação e de administração dos fiéis, novos, antigos e recém-convertidos. Aos jesuítas competia o controle das almas, enquanto a administração portuguesa, civil e militar, estava empenhada na coordenação e no trabalho dos corpos. Os conflitos não foram raros, nem pequenos."
A intelectualidade e a veia artística de Anchieta foram muito úteis para os propósitos da Companhia de Jesus no Brasil. Ele circulou pelo sertão desconhecido aos portugueses e interagiu com muitos indígenas. Aprendeu tupi e ensinou latim aos nativos. A primeira gramática escrita sobre um língua do tronco tupi é de sua autoria: 'Arte da Gramática da Língua Mais Falada na Costa do Brasil', livro publicado em Coimbra em 1595.
"Chegando ao Brasil ele se afeiçoou ao indígena nativo e escreveu a primeira gramática da língua tupi. Poeta nato, ele foi um dos primeiros autores da literatura brasileira, para a qual compôs inúmeras peças teatrais e poemas religiosos entre outros. É considerado e proclamado, portanto, o Apóstolo do Brasil. Sua fama de santidade perdura até hoje", lembra Lira.
Também escreveu peças teatrais e poemas de cunho religiosos e utilizava as artes cênicas como recurso na catequização dos indígenas. Tanto que é considerado dramaturgo, gramático e poeta e se tornou patrono da cadeira número 1 da Academia Brasileira de Música.
Além disso, atuou como uma espécie de farmacêutico. "Ele foi muito além [do sacerdócio]", afirma Artoni. "Foi, por exemplo, o primeiro boticário da cidade de São Paulo. Aprendeu com os indígenas a medicina tradicional e aliou esse conhecimento com o que ele tinha, da Europa, para produzir medicamentos para ajudar na cura dos adoentados. Também confeccionou alpargatas para os missionários e teve uma missão muito plural, exercida de forma ampla."
Trabalho missionário
Além de ter participado da fundação de São Paulo e ter atuado no então nascente povoado, Anchieta embrenhou-se em missões pelo litoral paulista e chegou a se oferecer como refém dos tamoios em conflitos destes com os colonizadores portugueses.
Mas ele não fazia ideia de que estava criando uma nova cidade e nem era este o ideal que o impulsionava. "A motivação era primordialmente religiosa", pontua Martinez. "Na política de expansão dos domínios de Portugal a propagação da fé católica foi associada ao engrandecimento do poder real e da riqueza mercantil da Coroa e de sua nobreza mais empenhada neste objetivo. A Companhia de Jesus operou ativamente na promoção deste duplo e mesmo objetivo: ampliação da fé e fortalecimento do poder monárquico leal ao papado."
A historiadora Artoni diz que Anchieta "foi uma potência na história do Brasil e, particularmente, na história de São Paulo". "Mas quando a gente fala que ele fundou São Paulo, é uma frase historicamente muito complexa, que podemos entender de forma um pouco mais subjetiva", esclarece. "Primeiro porque os jesuítas não vinham fundar cidades. Eles vinham fundar suas obras apostólicas, igrejas, colégios, noviciados."
Nesse sentido, ela diz que Anchieta não fundou São Paulo. "A cidade como tal vai nascer no século 18. O que Anchieta participou foi do ato de fundação de um colégio, no qual ele foi um estudante jesuíta que tinha como missão relatar para o superior geral da ordem [na Europa] o que acontecia nesse lugar", conta a historiadora.
Ela ressalta, contudo, que sua importância acabou crescendo de tal forma que acabou se tornando lugar-comum atribuir a ele a fundação da cidade de São Paulo.
"A instalação do colégio dos jesuítas no planalto de Piratininga teve o objetivo primeiro de facilitar a aproximação e a catequese dos indígenas, além de adequadas instalações para a circulação, evangelização e segurança dos enviados da Companhia de Jesus. O sucesso no aldeamento e a posição privilegiada ocupada pela edificação, no topo da colina, vista ampla e livre dos arredores, disponibilidade de água e facilidade de locomoção, foram alguns fatos responsáveis pelo adensamento do núcleo urbanizado inicial", diz o historiador Martinez.
De São Paulo, Anchieta mudou-se para o Rio, onde participou da guerra contra os franceses que ocupavam a baía de Guanabara e, de 1570 a 1573, dirigiu o Colégio dos Jesuítas do Rio de Janeiro.
De 1577 a 1587 foi o provincial da Companhia de Jesus no Brasil, o cargo máximo da ordem no território colonial português. Depois disso, dirigiu o Colégio dos Jesuítas em Vitória, no Espírito Santo e, em seguida, dispensado das funções, reitrou-se para Reritiba, hoje município chamado de Anchieta, no sul da mesma capitania, onde morreria em 1597.
"A história de Anchieta não está relacionada só com São Paulo", afirma à BBC News Brasil o padre jesuíta Nilson Maróstica, ex-reitor do Santuário Nacional São José de Anchieta. "Ele fundou Arraial da Ajuda, na Bahia; Anchieta, no Espírito Santo; ajudou a fundar o Rio de Janeiro; fundou São Vicente, tem presença marcante em Ilhéus, na Bahia; em Porto Seguro, também na Bahia; em Vitória e Presidente Kennedy, no Espírito Santo; e, em São Paulo, em Ubatuba, Bertioga, São Vicente, Itanhaém, Santos, Itu e Embu."
Além disso, Maróstica lembra que "no local onde hoje é a catedral da Sé, em São Paulo, Anchieta construiu uma pequena igreja dedicada a Nossa Senhora da Assunção, grande devoção do santo, desde a juventude".
Entre suas relíquias preservadas, um fêmur completo e uma de suas vestes estão na igrejinha do Pátio do Colégio, no centro de São Paulo.
Enfim, santo
O reconhecimento de José de Anchieta como santo, com dispensa papal da comprovação de um milagre para tanto, foi resultado de um longo processo, como costuma acontecer em trâmites de canonização da Igreja Católica.
Antes, em 1980, ele havia sido reconhecido como beato pelo então papa João Paulo 2º (1920-2005).
"Ele já era beato e teve uma beatificação normal, ou seja, houve a aferição das virtudes heroicas e um milagre que possibilitou a beatificação", relata o hagiólogo Lira. "Em termos gerais, Anchieta sempre foi considerado santo."
"Sua obra catequética é fundamental na formação do Brasil Católico, além da importância educacional e da fundação da nossa maior metrópole, São Paulo. Ele foi canonizado sem a presença do segundo milagre. Havia vários pedidos nesse sentido, incluindo da própria CNBB [a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]."
Canonizar sem milagre não é uma prática comum. No pontificado de João Paulo 2º, isto ocorreu apenas três vezes. Já Bento 16 (1927-2022) lançou mão do procedimento somente uma vez.
"No caso do padre José de Anchieta, após os estudos necessários e, principalmente, considerando a sua fama de santidade, num processo de canonização de mais de 400 anos, o papa Francisco assinou o decreto de canonização por equipolência no dia 3 de abril de 2014", comenta Lira.
Em conversa com a BBC News Brasil, o vaticanista Filipe Domingues, diretor do Lay Centre, em Roma, e professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, também em Roma, explica que o processo de canonização é apenas um "reconhecimento da Igreja" para uma pessoa que teria virtudes suficientes para ser considerada santa. Nesse sentido, diz ele, muitos e muitos santos devem ter existido sem nunca terem a chancela do Vaticano.
"Nos casos em que há uma notoriedade, a Igreja pode assinar embaixo, por meio de um decreto e de um reconhecimento público", explica ela, sobre o processo formal de canonização. Por norma, o trâmite depende do reconhecimento de um milagre para a beatificação e de um segundo para a canonização. Este processo foi aperfeiçoado ao longo da história para evitar abusos", contextualiza o vaticanista.
"Só que o papa sempre tem a prerrogativa de abrir exceções, para tudo na Igreja. Em sua visão, era possível canonizar Anchieta sem um segundo milagre porque ele achou que já havia evidências suficientes para que esse personagem fosse reconhecido como santo", afirma Domingues.
Na visão do hagiólogo Lira, o gesto de Francisco não representou "apenas a vontade papal", mas foi a conclusão "de um processo".
"É claro que a última palavra é do santo padre após os procedimentos preparados pelo Dicastério das Causas dos Santos.
Mesmo que para uma canonização equipolente os cardeais e os bispos que atuam no Dicastério das Causas dos Santos são consultados e o que perdura é sua fama de santidade, suas virtudes heroicas e sua dedicação à causa do reino de Deus.
Assim, o papa Francisco reconheceu sua santidade", explica. Há uma coincidência. Francisco, assim como Anchieta, é jesuíta — o primeiro papa jesuíta da história.
Mas a santidade popular de Anchieta remonta aos tempos em que ele vivia. Como conta Maróstica, quando o jesuíta vivia no Brasil a Companhia de Jesus solicitou à igreja de sua cidadezinha natal informações sobre seu batismo. Então foi acrescentada uma observação na mesma folha que tem o seu registro. "José atualmente mora no Brasil, é religioso, tem fama de santo e é chamado de apóstolo do Brasil", conta o padre.
"Levou uma vida de santidade", enaltece. "Temos inúmeros relatos de milagres que ele realizou em vida." Segundo Maróstica, há uma história de que, poucos dias antes da morte de Anchieta, ele teria curado um indígena que não conseguia mais andar.
O processo de canonização de Anchieta começou logo após sua morte. Em 1636 ele já era reconhecido como venerável.
"Papa Francisco, que conhecia a história de Anchieta, achou que não era mais necessário comprovar as virtudes e a santidade dele. Assim, ele usou o costume do Vaticano de canonizar por equipolência, ou seja, ele foi declarado santo sem precisar apresentar um milagre: todas as suas virtudes e todos os milagres realizados antes e depois de sua morte são considerados válidos para declará-lo santo", explica.