Quem pode questionar o 'Gilmarpalooza'?
Especialistas explicam que, embora o evento seja organizado pelo decano da corte máxima brasileira, há meios para que se realize uma prestação de contas moral
A décima segunda edição do Fórum Jurídico de Lisboa terminou nesta sexta-feira (28/6) com um saldo de mais de 300 palestrantes e 50 mesas de discussões, de acordo com a programação oficial. Mas com poucas respostas sobre o custo do evento, seu financiamento e os limites éticos de um encontro que reuniu, ao longo de três dias, a cúpula do Judiciário, da política e do empresariado brasileiro.
Realizado pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), de propriedade do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, o evento causou até mesmo a mudança da agenda da corte nesta semana.
As sessões presenciais do Supremo, que normalmente ocorrem às quartas e quintas-feiras, nesta semana ocorreram na terça (25) e quarta-feira (26/6).
Em nota, o STF afirmou à BBC News Brasil que a mudança ocorreu "em razão de quórum". De fato, seis, dos onze ministros do STF, estavam em Lisboa nesta semana para participar do evento.
Ainda segundo a assessoria de imprensa do da corte, pelas regras, somente o presidente, Luís Roberto Barroso, pode ter passagens e diárias internacionais custeadas pelo tribunal. Mas, no caso de Lisboa, a assessoria afirmou que o presidente terá os custos pagos pela organização do evento e não receberá diárias.
"Em relação aos demais ministros, o STF não tem informações, mas o tribunal não terá nenhum custo com os ministros". Exceto, com os seguranças dos ministros, que, neste caso, serão divulgados "posteriormente no Portal da Transaparência".
Mas além dos ministros do Supremo, ministros do Governo, do TCU, deputados e senadores também estiveram presentes, assim como governadores. Questionado pelo jornal português Expresso sobre os custos do evento, Gilmar Mendes afirmou não saber "ainda". A BBC News Brasil tentou contato com o ministro por meio de sua assessoria e da assessoria do IDP, mas não conseguiu uma entrevista.
Devido a sua grandiosidade, tanto na programação, quanto no volume de convidados e público — estimado em duas mil pessoas —, o evento ganhou o apelido de "Gilmarpalooza". Uma mistura do nome do decano e dono do evento, com o do festival de bandas Lollapalooza.
A falta de transparência em relação aos custos, aliada ao fato de o evento abarcar empresários ou representantes de empresas que, em alguns casos, estão com processos tramitando no STF, suscitaram um debate sobre a criação de um código de conduta para a corte, além de questionamentos sobre quem poderia questionar a instância máxima brasileira.
Conrado Hübner, professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP), afirma que não existe um instrumento capaz de controlar o STF hoje. Nem mesmo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) poderia fazê-lo, dado que uma decisão de 2006 do próprio Supremo determinou que o CNJ "não tem nenhuma competência sobre o STF e seus ministros, sendo este o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito".
Por isso, para Hübner, "o único instrumento é o impeachment dos ministros", algo que, para ele, só seria provocado por manifestações sociais.
O professor de Criminologia da USP, Maurício Dieter, explica que, em princípio, o Senado seria a instituição com maior legitimiade para questionar possíveis condutas dos Ministros.
"Não há uma transgressão direta da legalidade neste caso", afirma. "Por isso, não se trataria de um controle legal, mas sim de um questionamento político e moral, que, tendo início na sociedade civil encontraria, no Senado, um melhor lugar para expressar."
Ele lembra que "o Senado é, nos termos da Constituição, responsável por processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade, de modo que não é difícil perceber seu protagonismo em questionamentos dessa natureza".
Código de conduta
No fim do ano passado, a Suprema Corte americana editou seu primeiro código de conduta. O documento esbarra em uma realidade parecida com a do Brasil: não há um órgão capaz de fiscalizar as regras, o que gera um vácuo na aplicação de possíveis punições.
O debate sobre a transparência no Judiciário americano surgiu após uma série de reportagens publicadas pelo site ProPublica chamada Friends of the Court (Amigos da Corte). As denúncias apontavam para as viagens e presentes recebidos pelos magistrados da corte americana de magnatas, sem que esses benefícios fossem divulgados.
De imóveis a mensalidades escolares pagas, incluindo viagens e presentes caros, a série de reportagens revelou a relação questionável de alguns membros da corte.
O código de conduta surgiu muito movido por essa discussão, mas garantindo, por exemplo, o direito de os juízes participarem de eventos acadêmicos. No entanto, tais eventos não podem ser patrocinados por empresas que tenham casos na Suprema Corte ou que possam chegar à última instância em curto prazo.
O ministro Alexandre de Moraes, presente no evento em Lisboa, foi questionado pela Folha de S. Paulo sobre a necessidade de um código de conduta brasileiro. "Não há a mínima necessidade", respondeu ele ao jornal.
"Porque os ministros já se pautam pela conduta ética que a Constituição determina."
Para Hübner, no entanto, um código de conduta ética serviria justamente para proteger os ministros e a própria corte. "Se eles são honestos e querem proteger a instituição, o código de ética ajuda", diz.
O especialista afirma que existem diversos conflitos de interesses, em diferentes esferas. "Mas quando tem juiz no meio a coisa fica muito mais óbvia", afirma ele, que classifica o evento como "um grande encontro de lobby".
"De um lado, a dimensão, duas mil pessoas por três dias. Do outro, o fato de ser em Portugal, o que só aprofunda o distanciamento da esfera pública e da transparência", diz.