Reconhecimento da derrota de Bolsonaro por aliados foi grande diferença com eleição nos EUA, diz Levitsky
Cientista político Steven Levitsky, autor de 'Como as democracias morrem', diz que lideranças republicanas ficaram em silêncio quando Trump contestou eleição: 'não houve um Arthur Lira nos EUA'.
Embora as luzes do Palácio da Alvorada, a residência presidencial, tenham se apagado na noite do domingo (30/10) sem que Jair Bolsonaro (PL) tivesse reconhecido a derrota eleitoral para Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Brasil encerrou o pleito em condição muito melhor do que os Estados Unidos no desfecho da disputa entre Joe Biden e Donald Trump, em 2020. É o que argumenta o cientista político da Universidade Harvard Steven Levitsky, autor do best-seller Como as democracias morrem.
Em uma história com tantos paralelos, Levitsky nota uma evidente diferença não apenas entre o que fizeram os presidente derrotados Bolsonaro e Trump, mas entre o modo como seus aliados se posicionaram.
Nos EUA, Trump foi à TV na noite da eleição para dizer que tinha vencido o pleito e que havia uma fraude - discurso que repetiria por dois meses e que desaguaria na tentativa de invasão do Capitólio, em 6 de janeiro. Enquanto isso, diz Levitsky, nenhum dos aliados ou lideranças do Partido Republicano se levantara contra as ações de Trump.
Já no Brasil, Bolsonaro não disse nada, apenas se recolheu. Já seus aliados vieram a público reconhecer a derrota. "Ao presidente eleito, a Câmara dos Deputados já deu os parabéns e a reafirma seu compromisso com o Brasil", afirmou o presidente da Câmara e um dos principais aliados de Bolsonaro, Arthur Lira, que completou: "É hora de desarmar os espíritos e estender as mãos aos adversários, debater e construir pontes".
Já o deputado mais votado do país, o bolsonarista Nikolas Ferreira, gravou vídeo aos seus seguidores em que dizia que "hoje não elegemos um presidente de direita, talvez amanhã. Mas a luta continua". Assim como Ferreira, os deputados Ricardo Salles e Carla Zambelli e o senador Sergio Moro também prometeram ser oposição, reconhecendo a legitimidade da eleição de Lula.
Segundo Levitsky, ao agirem assim, os líderes da direita no Brasil estão dando uma espécie de "vacina" contra uma possível tentativa de ruptura democrática.
As manifestações dos aliados acontecem após meses de acusações infundadas do atual presidente brasileiro sobre fraudes nas urnas eletrônicas e parcialidade do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Reiteradas vezes, Bolsonaro afirmou que não aceitaria o resultado das urnas se fosse derrotado e espalhou o temor de que as cenas de insurreição dos trumpistas no Congresso dos EUA pudessem ser repetidas no Brasil.
"Quase ninguém na direita se levantou em 2020 e disse a Trump: 'não, você está errado, A eleição acabou, Biden venceu. Você tem que ir para casa'. Ninguém disse isso. Eles se calaram por dois meses e permitiram que todo o processo de tentar subverter o resultado crescesse. O que os políticos brasileiros fizeram até agora, aceitar publicamente a derrota para Lula, ajudará bastante a evitar qualquer tipo de aventura", argumenta Levitsky.
O cientista político antevê quatro anos difíceis de governo para Lula, mas afirma que a dificuldade de governabilidade não significa risco à democracia. Qualifica como "um gesto heroico" dos brasileiros a remoção de Bolsonaro do poder e diz que a "extrema-direita deverá seguir forte no país, com ou sem Bolsonaro à frente".
Leia a seguir os principais trechos da entrevista à BBC News Brasil, concedida por telefone no fim da noite de domingo (30/10).
BBC News Brasil - O Brasil elegeu Luiz Inácio Lula da Silva e não deu um segundo turno a Jair Bolsonaro, que se torna o primeiro presidente brasileiro a tentar e não se reeleger desde a redemocratização. O que isso significa para a democracia do Brasil?
Steven Levitsky - Bolsonaro já reconheceu sua derrota?
BBC News Brasil - Não, aparentemente não falará esta noite, mas o presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP) deu os parabéns ao presidente eleito e disse que "a vontade da maioria manifestada nas urnas jamais deverá ser contestada". O presidente do Senado também se manifestou. O senador Sérgio Moro e a deputada Carla Zambelli também anunciaram que serão oposição, reconhecendo a derrota e o governador eleito por São Paulo, Tarcísio de Freitas, disse que "trabalhará com o governo federal".
Levitsky - Isso é uma ótima notícia. Parece que o Brasil conseguiu lidar com essa eleição muito melhor que os Estados Unidos. Os Estados Unidos sofreram com um presidente derrotado que passou dois meses tentando derrubar os resultados eleitorais e no final lançou uma insurreição armada para tentar reverter a derrota na eleição, e fracassou. Parece, ao menos por enquanto, que isso não vai acontecer no Brasil.
BBC News Brasil - Sim, mas ainda não sabemos como o presidente vai reagir, se vai conceder a derrota. O que temos são aliados políticos e líderes partidários indicando que reconhecem a vitória e não estão dispostos a contestações eleitorais.
Levitsky - Os Estados Unidos foram realmente muito piores. Trump declarou desde o dia da eleição que o pleito tinha sido fraudado. E não houve um Arthur Lira nos Estados Unidos, todos os principais republicanos ecoaram as alegações de Trump sobre fraudes ou simplesmente permaneceram em silêncio. Eles se recusaram a parabenizar publicamente Biden, a reconhecer publicamente que a eleição havia sido justa e que Trump tinha perdido. E com isso eles permitiram que, ao longo de dois meses, Trump tentasse roubar a eleição. Então, a resposta brasileira, o fato de parte significativa dos aliados políticos de Bolsonaro já terem se manifestado e aceitado publicamente os resultados das eleições é uma grande diferença com o que ocorreu nos Estados Unidos. A resposta do Brasil é muito mais saudável.
BBC News Brasil - A diferença entre os candidatos porém foi muito pequena, pouco mais de 2 milhões de votos, o que significa que o país está dividido. Lula diz que "somos uma só nação". Como Lula pode tentar unir as pessoas em torno de seu projeto?
Levitsky - Não dá. É um fato: o Brasil está dividido. O Congresso eleito é conservador. Isso vai limitar as condições de Lula de implementar a agenda progressista do PT, vai limitá-lo para conseguir fazer quase qualquer coisa. Lula terá metade do país contra ele, assim como Biden tem metade do país contra ele.
Mas isso também não significa que a democracia esteja sob ameaça, ou que Lula estará constantemente sob risco de impeachment desde o início. Os únicos dois casos de impeachment que ocorreram no Brasil, Collor e Dilma, foram casos nos quais o país não estava dividido, 50% a 50%. A grande maioria dos brasileiros apoiou os impeachments, para bem ou para mal.
Se as coisas ficarem tão polarizadas a ponto de haver um movimento para o impeachment de Lula desde o início, então, sim, o Brasil está em apuros. Mas eu não vejo essa possibilidade até pelo que estamos vendo da reação da direita no Brasil agora. Acho que haverá vontade política dos diversos partidos de trabalharem juntos. Acho que Lula tem muita experiência, muita habilidade, muita habilidade para trabalhar com o Congresso. O Brasil é um país grande, desigual, heterogêneo. Nunca vai estar unido em torno de nada. No momento, está bem dividido, mas não está tão polarizado quanto os Estados Unidos, o que é um bom sinal.
Lula vai ter quatro anos difíceis de governo. E será um processo lento e constante de reconstrução da confiança nas instituições democráticas. Reconstruir a confiança na classe política, que é muito importante e, no caso de Lula, é absolutamente essencial que ele convença um número maior de brasileiros que seu governo leva a sério o combate à corrupção. Lula e o PT nunca fizeram uma autocrítica política à corrupção horrenda que derrubou a presidência de Dilma. Claro que nem tudo, mas parte (dos escândalos da Lava-Jato) estava ligada ao PT. Mas o partido nunca reconheceu essa corrupção, nunca fez uma autocrítica séria. E deve fazer isso.
Os brasileiros votaram majoritariamente contra Bolsonaro nesta eleição. É certo que Lula tem algum apoio, mas o resultado de hoje é, em última análise, um gesto heroico da maioria contra um governo desagradável, incompetente e autoritário de Bolsonaro, o que é uma coisa gigantesca, porque presidentes em mandato raramente perdem a reeleição, seja no Brasil ou em qualquer outro lugar da América Latina. O fato de os brasileiros removerem Bolsonaro foi uma grande conquista. Mas isso não foi um voto para Lula. Lula e o PT ainda são muito impopulares, então Lula tem muito trabalho a fazer não apenas para alcançar a governabilidade, mas para alcançar um mínimo de confiança pública na política, nos partidos, nos políticos e no governo. Porque há quatro anos, as condições que tornaram Bolsonaro viável foram uma desconfiança pública massiva e um desgosto com a classe política.
BBC News Brasil - Em seu discurso de vitória, Lula disse que pretende ser o presidente de todos os brasileiros e parabenizou mesmo aqueles que votaram em seu adversário. Já Biden tem dito que o movimento "Faça a América Grande outra vez", de Trump, é um risco à democracia. Qual é a melhor abordagem?
Levitsky - Para sermos justos, Biden disse exatamente as mesmas coisas que Lula quando foi eleito: que ele queria ser o presidente de todos os americanos, não apenas daqueles que votaram nele, mas também daqueles que votaram em Trump, que ele os representaria. Mas é muito difícil fazer isso quando você tem um movimento político ou um grande partido político que não tem compromisso com a democracia. É um verdadeiro desafio.
Acho que o problema é pior nos Estados Unidos porque Bolsonaro não tem partido político. Quero dizer, ele tem muitos aliados políticos, muitos e muitos apoiadores, mas ele não é tão popular no geral e ele não tem um grande partido político por trás de si, como Trump tem. O Partido Republicano inteiro, que representa metade do país, está completamente comprometido com o trumpismo e agora ataca abertamente a democracia. Não me parece que veremos algo semelhante no Brasil. Acho que não há muitos deputados, senadores ou governadores de direita dispostos a trabalhar em estreita colaboração com Bolsonaro por uma agenda abertamente autoritária. E na verdade acho que o bolsonarismo pode acabar sendo mais fraco que o trumpismo.
Mas respondendo a sua pergunta, eu acho que a estratégia do Lula de fazer um apelo amplo, se abrir, tentar representar um setor tão amplo da sociedade brasileira quanto possível, incluindo uma grande fatia do Sul e da classe média que ele perdeu é um tiro longo, mas ele precisa tentar despolarizar e reconquistar pelo menos um mínimo de apoio entre quem votou em Bolsonaro.
BBC News Brasil - Em sua mensagem a Lula, Lira falou sobre cooperação, trabalho em conjunto e evitar o revanchismo.
Levitsky - Sim, se podemos classificar essa eleição de alguma maneira, ela foi uma eleição especialmente boa para a direita. Então Lula vai ter que construir uma ampla coalizão, governar com a centro-direita. Não necessariamente o Centrão, mas o centro com certeza. Ele teve um relacionamento muito bom com a comunidade empresarial durante seus dois primeiros mandatos presidenciais, vai ter que reconstruir esses laços. As pessoas esquecem que o Lula de 2000 a 2010 foi um Lula bastante moderado, bem sucedido. Ele tem que voltar a isso, até para colocar um ponto final nessa histeria sobre Lula chavista e Venezuela, precisa reconstruir a confiança. E isso significa provavelmente um governo muito centrista e comprometido em dar alguns passos realmente críveis e sérios para combater a corrupção.
BBC News Brasil - Você disse que o bolsonarismo pode ser mais fraco do que o trumpismo, mas em 2022, Bolsonaro teve mais votos do que em 2018 e elegeu muitos nomes para o Congresso. É verdade que ele não tem um partido próprio, o que pode enfraquecê-lo, como o senhor sugere. Como vê esse movimento daqui pra frente?
Levitsky - Há uma crescente extrema-direita em grande parte da América Latina, em parte, em linha com as tendências de outras partes do mundo ocidental, onde há a emergência desse tipo de direita populista e iliberal. Em parte, esse movimento é um produto dos altos níveis de criminalidade, violência e insegurança. Em qualquer tempo, em qualquer democracia, quando há altos níveis de violência e as pessoas sentem medo, elas se voltam para a direita, especialmente a classe média. E isso aconteceu no Brasil. E ao mesmo tempo há o crescimento de um movimento evangélico cada vez mais politizado de direita iliberal no Brasil e na América Latina.
Essa direita se saiu muito, muito bem nesta última eleição, no primeiro turno, e vai continuar muito forte. E vai ser forte com ou sem Bolsonaro. Não consigo prever qual será exatamente o papel de Bolsonaro em tudo isso. Mas acho que ele estando à frente ou não, provavelmente continuará existindo uma extrema direita agressiva no Brasil, assim como há na Colômbia, na Argentina, no Chile, no Peru e em outros lugares.
- Texto originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63453815