Reformas são mais importantes para elite econômica do que a preservação de Temer, diz analista
Um dia após as denúncias da delação de Joesley Batista, dono da JBS, milhares de brasileiros foram às ruas para protestar contra o presidente Michel Temer (PMDB) e pedir a convocação de eleições diretas. Com baixíssimo respaldo popular - segundo a mais recente pesquisa Ibope, a avalição positiva do governo é de só 10% -, o futuro político de Temer está nas mãos tanto de partidos da base quanto de setores da economia.
Se aliados do presidente começarem a abandoná-lo à própria sorte, ele não vai ter para onde fugir. Essa é a avaliação do cientista político Christian Edward Cyrill Lynch, doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Para Lynch, é bem provável que o establishment econômico já tenha um "curinga" na manga para o caso de cassação ou impeachment de Temer.
"Pode-se imaginar que, hoje, as cartas na mesa sejam personalidades como a ministra Cármen Lúcia (STF) ou o ministro Henrique Meirelles (Fazenda). De preferência, alguém que não esteja sendo investigado nem que tenha risco de ser investigado pela Lava Jato", afirma Lynch.
Quanto à convocação de eleições diretas, o cientista político admite que a possibilidade é remota. Só seria possível se o Congresso aprovasse uma emenda constitucional, em dois turnos e por três quintos dos parlamentares da Câmara e do Senado. Veja os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil - Como o senhor analisa o impacto das denúncias do dono da JBS? Em sua opinião, Michel Temer pode sofrer impeachment ou ser cassado?
Christian Lynch - Temer nunca gozou de popularidade. Os índices dele são muito baixos. De alguma maneira, ficou dependendo dos programas de reforma econômica para sobreviver. A partir do momento em que ele não teve apoio da rua, teve de buscá-lo na classe política, que, de alguma maneira, o apoiava na expectativa de que pudesse ser blindada contra as investigações da Lava Jato. Temer adotou um reformismo radical para mostrar aos setores sociais e econômicos comprometidos com a pauta liberal no Brasil que valeria a pena protegê-lo contra a impopularidade. Então, tudo o que acontecer nas próximas 48 horas terá a ver com sua capacidade de dar uma explicação plausível sobre o que aconteceu e essa explicação ser levada em consideração pelas forças que o sustentam no Congresso e pelos setores econômicos.
BBC Brasil - O senhor acreditava na hipótese de renúncia?
Lynch - Não. Imaginava que, com foro privilegiado, Temer não fosse renunciar. O que acontece agora? Se os partidos da base começarem a abandoná-lo, ele não vai ter para onde fugir. E, aí, abrem-se alguns cenários.
BBC Brasil - Quais?
Lynch - Um deles é a cassação da chapa Dilma-Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) daqui a duas semanas. A gente sabe que o voto do relator é pela cassação da chapa. Então, se a crise não for solucionada até lá, a tendência do TSE pode ser oferecer uma saída "digna", a cassação da chapa. Aí, Temer seria obrigado a sair. O segundo cenário é o impeachment. Mas não acredito muito nisso.
BBC Brasil - Caso haja eleições diretas, quem sairia fortalecido na disputa?
Lynch - Existe expectativa, por parte do PT, de que, numa eventual eleição direta, o Lula possa vencer e, assim, escapar do julgamento na Lava Jato, em que se espera sua condenação. Pessoalmente, apesar de desejável, não acho que a eleição direta prevaleça como meio de resolução da crise.
BBC Brasil - E candidatos outsiders , como João Dória e Luciano Huck, têm chance numa eventual eleição direta?
Lynch - Os outsiders vão competir de qualquer jeito na eleição do ano que vem. Mas acho que nenhum deles está interessado em eleição agora. O establishment prefere ter mais tempo e uma eleição indireta como opção mais segura para continuar tocando as reformas liberais.
BBC Brasil - Qual é o impacto das manifestações de quinta-feira nos desdobramentos dessa crise política?
Lynch - Gostaria que essas manifestações fizessem diferença, mas sou cético. Quem vai para as ruas provavelmente está nos extremos do espectro político, já não gostam ou gostavam do Temer. Ou é gente ultraliberal ou é militante da esquerda. Por outro lado, esse Congresso é notoriamente insensível às manifestações de rua. Então, acho que elas tendem a não produzir grande impacto.
BBC Brasil - Como ficam as reformas trabalhistas e da Previdência? Tendem ao fracasso?
Lynch - As reformas são mais importantes para o establishment do que a preservação do Temer. Por isso, a partir do momento em que (a elite econômica) abandona Temer, é lícito supor que tenha um plano B, ou seja, que tenha em mira outra pessoa, que se preste ao papel de "novo Temer", comprometida em tocar as reformas.
BBC Brasil - Que figura seria essa? A presidente do STF, Cármen Lúcia, talvez?
Lynch - Com a queda do Temer, assumiria (interinamente até a nova eleição, o presidente da Câmara, Rodrigo) Maia, que já está comprometido com as reformas. Não é possível imaginar, agora, quem seria o ungido. Mas pode-se imaginar que as cartas na mesa sejam personalidades como a ministra Cármen Lúcia ou o ministro Henrique Meirelles. De preferência, alguém que não esteja sendo investigado nem que tenha risco de ser investigado pela Lava Jato. Cármen Lucia seria um nome perfeito, porque não só está fora das investigações, como tem um perfil "republicano" e "liberal", acima de qualquer suspeita, é chefe do único poder que restou de pé e por isso está absoluto no país, que é o Judiciário. O STF é hoje o fiador da "revolução judiciária" promovida pelo Ministério Público Federal, que derrubou a Nova República de 1985/88.
BBC Brasil - Há quem sustente, um ano depois, que a presidente Dilma Rousseff foi vítima de golpe. A denúncia de quarta-feira reforça essa tese?
Lynch - Entendo que a tese de que a Dilma foi vítima de um golpe não faz sentido, porque o instituto do impeachment é, em si mesmo, um golpe constitucionalizado, isto é, um instituto que permite a uma maioria do Congresso adversária do presidente, em contexto de clamor público, removê-lo a pretexto de ter ele cometido um delito político, que ele mesmo qualifica, acusa e julga. Então, não faz sentido dizer que um presidente foi vítima de golpe, já que o impeachment é uma forma legalizada de golpe. O que eu posso dizer é que a ação da Lava Jato enfraquece a tese de que a operação é toda voltada com o fito exclusivo de perseguir o PT, o que evidentemente não é verdade.
BBC Brasil - Pode-se dizer que, com as revelações de quarta-feira, a investigação ganhou mais força?
Lynch - Acredito que sim. Na minha opinião, a Lava Jato não é uma investigação direcionada contra o PT e, sim, contra toda a classe política como um todo. Os promotores se percebem como iluminados, tenentes encarregados da missão providencial de livrar o Brasil da corrupção. Não à toa, muitos deles professam orientações religiosas que moralmente os guiam nessa concepção de missão pública. É claro que o PT e o PMDB ficam no centro do fogo porque, nos últimos 12 anos, eles eram o establishment do sistema político. Então, são mais afetados. Mas não parece haver um recorte específico no sentido de poupar os demais partidos. No fundo, o que os "tenentes togados" fazem é o processo da vida política brasileira como um todo: querem, em nome da ética jurídica, dos "valores republicanos", erradicar a "politicagem" da cena brasileira. Mas é inegável que existe também um viés antipetista, às vezes por questão de classe, às vezes por perceberem a mistura de socialismo com corrupção como satânica ou herética. É esse viés que seus detratores exploram, não sem alguma razão.
BBC Brasil - O fato de a operação ter atingido nomes de outros partidos como o senador Aécio Neves, pode reduzir a polarização da sociedade?
Lynch - Acho improvável. O único fator que pode reduzir a divisão do país entre "coxinhas" e "mortadelas" ou "tucanos" e "petralhas", para a esquerda, é o Lula poder concorrer a presidente em uma eleição honesta e ser claramente derrotado. São dois fatores, portanto. Mas o cenário seria catastrófico para o PT, que perderia o discurso do golpe e a perspectiva de poder. O partido teria que ser reconstruído do zero, fazer autocrítica, que é tudo o que por enquanto o grupo no poder dentro do partido evita fazer, para evitar, entre outras coisas, o esfacelamento da legenda, que só permanece unida em torno da esperança de vitória do Lula.
BBC Brasil - O senhor está otimista quanto ao futuro político do Brasil?
Lynch - Não. Vamos ter continuidade deste governo zumbi, destituído de legitimidade, ou outro governo, eleito indiretamente por um Congresso desmoralizado, de viés igualmente oligárquico. Quem for escolhido para o lugar do Temer, se ele sair, vai continuar tocando essas reformas, a economia vai seguir ressabiada, a tensão política e a polarização vão continuar até a eleição de um novo presidente e um novo Congresso. Quando isso acontecer, a situação vai melhorar, mas a polarização vai continuar, embora em grau menor, porque o presidente será de direita ou de esquerda. Quem perder, vai continuar batendo panela. Além disso, a eleição de 2018 oferece claros riscos, o pior dos quais é o da vitória de um aventureiro e/ou voluntarista. A cena pode ser semelhante à de 1989, que elegeu Fernando Collor. Esse candidato não vem para fazer a paz, mas para viver da guerra e do conflito político já instalado entre nós.
BBC Brasil - Poderia citar alguns exemplos?
Lynch - Pode ser um aventureiro voluntarista, como Jair Bolsonaro ou João Dória, ou alguém que está longe de ser um aventureiro político, mas de pavio curto, como Ciro Gomes. Então, não sei se as coisas vão melhorar do ponto de vista do ambiente. Nenhum deles tem as qualidades conciliatórias de um FHC ou um Lula. Então, não vejo sossego em um futuro próximo.
BBC Brasil - Em um futuro não muito distante, como o episódio de quarta-feira deverá será retratado nos livros de História?
Lynch - O incidente só entrará nos livros de História se ele provocar a queda de Temer. Nesse caso, ainda assim, ele será visto como um incidente dentro da "revolução" começada nas chamadas jornadas de 2013 e avolumadas pela operação Lava Jato , que pôs fim à Nova República, isto é, ao regime político instalado entre 1985, consagrado juridicamente em 1988 e consolidado em 1994. Aquilo que o Tancredo, o avô, ajudou a construir, o neto, Aécio, ajudou a destruir. Raro caso de início e fim provocados por uma mesma família.
BBC Brasil - Como o senhor resumiria o dia de quarta-feira em uma só palavra ou frase?
Lynch - Todo poder ao STF. Até a posse do novo presidente por eleições diretas, estamos inteiramente nas mãos do STF. O ideal é que nós tivéssemos um presidente da República razoável, eleito, legítimo e um Congresso, novo, igualmente eleito e legítimo. Era o que gostaria como cidadão. Mas, como cientista político, não acho que isso vai acontecer. Como você vê, separo aquilo que acho que vai acontecer daquilo que eu gostaria que acontecesse. Triste destino para uma hoje triste profissão.