Relatório brasileiro denuncia 'abuso de poder' da Otan na Líbia
- Daniel Favero
O relatório elaborado pela comitiva brasileira que viajou à Líbia para acompanhar os conflitos surgidos após manifestações contrárias ao regime do ditador Muammar Kadafi, em fevereiro deste ano, aponta "abuso de força" na intervenção da Otan naquele país. O documento elaborado com base em depoimentos de integrantes da chancelaria brasileira é assinado pelos deputados Protógenes de Queiroz (PCdoB-SP) e Brizola Neto (PDT-RJ), que viajaram a convite do governo líbio e de uma organização internacional.
De acordo com a interpretação dos parlamentares, o desfecho da situação na Líbia está muito mais relacionado com intervenção militar da Otan do que com o enfrentamento dos grupos contrários ou favoráveis ao regime de Kadafi.
"Mesmo com a impossibilidade de penetrarmos no território da Líbia, fizemos contatos com vários cidadãos daquele país, apoiadores ou opositores do regime e todos destacavam, não apenas o poder dos ataques da Otan como, até mesmo, o fato de muitas das operações de bombardeio atingirem alvos civis, a infraestrutura, e, ironicamente, até mesmo as tropas insurretas que visavam apoiar. Pelo que foi possível recolher de testemunhas não foi uma ação bélica condizente com a delegação internacional que a Otan recebeu da Onu", diz trecho do documento entregue ao presidente da Câmara de Deputados, Marco Maia (PT-RS), para que possa nortear o posicionamento da diplomacia brasileira.
A Otan passou a atuar na Líbia para evitar ataques contra civis que estariam sendo cometidos pelas tropas fiéis a Kadafi, mas, segundo os parlamentares, passou a armar as forças rebeldes (o Conselho Nacional de Transição) piorando a situação, sem dar oportunidade à população de decidir se quer manter ou derrubar o ditador. Segundo os observadores brasileiros, as resoluções da ONU ratificadas pelo governo brasileiro autorizam apenas ações militares que "visassem a proteger os direitos das populações civis e impedir o uso desproporcional de força, sobretudo a aérea, contra protestos desarmados".
"Houve, durante esses meses, inúmeras manifestações internacionais, sobretudo por parte da República Russa e da União Africana, de que tal mandato (ratificado pelas resoluções da ONU), ao ser extrapolado com ações bélicas que visavam enfraquecer e vulnerar o governo da Republica Líbia, estaria se configurando um ato de abuso de força e, na prática, de intervenção militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) naquele país", diz outro trecho do relatório.
Relatos da diplomacia brasileira obtidos pela delegação, composta ainda por representantes de países europeus, africanos e latino-americanos, davam conta de que os bombardeios promovidos pela Otan danificavam os serviços de infraestrutura de Trípoli, interrompendo o fornecimento de energia elétrica, telecomunicações, e provocando a elevação dos preços de alimentos e mercadorias em geral pela escassez de suprimentos.
"Numa explanação mais ampla, o secretário Márcio dos Anjos descreveu-nos a Líbia como uma sociedade onde a maioria da população gozava de bons níveis de bem-estar, inclusive com políticas públicas de educação, saúde, habitação gratuitas e como a maior renda per capita do continente Africano (...) Ressaltou que o governo possuía recursos derivados do fato de ter a exploração de petróleo regulada por contratos que garantiam que cerca de 90% do lucro obtido pelas petroleiras fosse recolhido aos cofres públicos", afirma outro trecho do documento.
Ainda segundo os relatos da diplomacia brasileira, mas sobre a situação atual, a chancelaria brasileira disse à delegação não ter observado manifestações populares, em Trípoli, de apoio ao movimento rebelde. "Havia, ao contrário, segundo seu relato (de Márcio dos Anjos), restrições ao chamado movimento rebelde mesmo entre aquelas pessoas que não apoiavam o comportamento de Muammar Gaddafi (Kadafi)".
Líbia: de protestos contra Kadafi a guerra civil e intervenção internacional
Motivados pela onda de protestos que levaram à queda os longevos presidentes da Tunísia e do Egito, os líbios começaram a sair às ruas das principais cidades do país em meados de fevereiro para contestar o líder Muammar Kadafi, no comando do país desde a revolução de 1969. Mais de um mês depois, no entanto, os protestos evoluíram para uma guerra civil que cindiu a Líbia em batalhas pelo controle de cidades estratégicas.
A violência dos confrontos entre as forças de Kadafi e a resistência rebelde, durante os quais milhares morreram e multidões fugiram do país, gerou a reação da comunidade internacional. Após medidas mais simbólicas que efetivas, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a instauração de uma zona de exclusão aérea no país. Menos de 48 horas depois, no dia 21 de março, começou a ofensiva da coalizão, com ataques de França, Reino Unido e Estados Unidos.