Sem visitas e com menos adoções, abrigos de crianças tentam reinventar rotina em meio à pandemia
Crianças que moram longe de seus familiares tentam manter seus vínculos por meio de videochamadas e se ocupam com novas atividades nos lares temporários.
Havia uma grande expectativa em torno de 13 de junho, o próximo sábado, em um abrigo municipal de 16 crianças e adolescentes na zona leste de São Paulo.
Na data, seria celebrada a festa junina anual da casa, reunindo as crianças com seus padrinhos, voluntários, familiares e pessoas da comunidade.
Como é de costume em todos os sábados, seria também a oportunidade de algumas crianças reverem seus pais e outros parentes próximos, de quem estão (ao menos temporariamente) afastados.
Os planos, é claro, foram mudados pela pandemia do novo coronavírus.
"Nas festas, costumamos encher a casa de amigos e voluntários", conta à BBC News Brasil Deise (nome fictício), uma funcionária do local. "Mas vamos fazer a festa junina mesmo assim. A gente está se reinventando a cada dia, com festas e atividades, para este período não ser maçante para as crianças."
As danças, brincadeiras e guloseimas juninas ficarão restritas às crianças e à parcela da equipe do abrigo que se mantém trabalhando. As famílias vão assistir via chamadas de vídeo, "para que possam participar da diversão e fazer com que se sintam perto das crianças", conta Deise.
Assim como em qualquer lar sob quarentena, os abrigos infantis tiveram sua rotina bastante alterada pela pandemia, com o agravante de que, nesses locais, existe uma preocupação especial em fazer com que as crianças preservem os vínculos com seus familiares, padrinhos e amigos – vínculos que costumam já estar fragilizados pelo fato de as crianças não estarem morando sob o mesmo teto que suas famílias.
Esses serviços de acolhimento abrigam crianças e adolescentes que foram afastadas do convívio familiar por decisão judicial, em decorrência de alguma violação grave de seus direitos – violência física doméstica ou negligência estão entre os motivos mais comuns.
Na maioria dos casos, a meta é que se criem condições para que elas possam a voltar a viver com as suas famílias. Na impossibilidade disso, as crianças permanecem abrigadas.
Uma minoria está à espera de adoção: das cerca de 34,5 mil crianças abrigadas do Brasil, ao redor de 8,7 mil aguardam serem adotadas por uma família.
"Temos por princípio trabalhar a manutenção do vínculo das crianças com suas famílias, para a reintegração familiar", explica à BBC News Brasil Maria José Geremias, coordenadora de proteção social na Secretaria de Assistência Social de Campinas (SP), cidade que tem atualmente 339 crianças e adolescentes em abrigos.
"Normalmente, as crianças receberiam as visitas das famílias ou passariam os finais de semana com elas, e isso não está sendo possível no momento. Mas manter esse contato é primordial. Há as relações de afeto, a saudade, a necessidade de contato com a família. Na pandemia, temos feito videochamadas para os familiares e, para as crianças que têm o próprio celular, trocas de mensagens com as famílias."
Sessões de fotos e autoestima
Sem passeios ou visitas externas e com as crianças passando a totalidade do tempo dentro dos abrigos, educadoras e assistentes sociais dos locais consultados pela BBC News Brasil estão, além de reforçando as medidas de limpeza e segurança, se desdobrando para criar novas atividades que mantenham as crianças entretidas e animadas.
"As adolescentes costumavam se arrumar e se maquiar (para passear ou verem seus familiares no fim de semana). Agora, se arrumam quando têm vontade, e por que não? Incentivamos e aproveitamos para fazer desfile de moda, sessão de beleza, tirar fotos diferentes, para cuidar da autoestima delas", conta Mariza Abrão, coordenadora do abrigo Conviva Aparecida 1, que atende atualmente 15 crianças entre 3 e 14 anos em Campinas.
"Estamos fazendo piquenique no quintal, festas temáticas, sessões de culinária. As próprias crianças estão planejando as refeições e amando isso", agrega Deise, do abrigo paulistano.
Adoções e famílias acolhedoras
Logo no início da pandemia e da quarentena, o Conselho Nacional de Justiça emitiu diretrizes excepcionais para os serviços de acolhimento, pedindo "prioridade" para que crianças que tivessem o aval de equipes técnicas e da Justiça pudessem deixar os abrigos e voltar a conviver com suas famílias ou serem adotadas.
Com isso, reintegrações familiares e adoções que já estavam em processo adiantado foram agilizadas no início da pandemia.
"Conseguimos reintegrar dois pares de irmãos a suas famílias, porque o processo já estava sendo finalizado. A gente só acelerou o processo de saída", comemora Abrão.
Em outros abrigos paulistas, "algumas crianças que tinham padrinhos foram passar a quarentena com eles. Mas nem todas quiseram isso. Alguns abrigos mandaram as crianças para a casa dos educadores (com autorização judicial), para evitar que esses funcionários se deslocassem diariamente para trabalhar", explica Lara Naddeo, da ONG Instituto Fazendo História, que atua em abrigos do Estado de São Paulo.
Ela conta também que mais crianças foram passar o período de isolamento com famílias acolhedoras – modalidade em que crianças de zero a 6 anos moram temporariamente com famílias voluntárias, capacitadas e sob supervisão, até que chegue o momento de sua reintegração familiar ou adoção.
No entanto, passado esse momento inicial, como ficou praticamente impossível fazer visitas e reforçar pessoalmente o vínculo com as famílias biológicas ou adotivas, muitos dos processos de adoção, acolhimento ou reintegração familiar estão agora andando a passos mais lentos - cautela que é necessária para garantir o sucesso dos procedimentos e o bem-estar das próprias crianças, explica Naddeo.
Nesse contexto, a falta de contato presencial com as famílias é a parte mais dura da pandemia para as crianças abrigadas, conta Abrão, em Campinas.
"Com os voluntários, as crianças veem os vídeos que eles mandam e sabem que eles estão lembrando delas. Mas com as famílias é mais difícil. Tem a vontade de querer tocar, abraçar, e nada substitui isso", diz ela.
"Não acho que elas estejam tristes. Teve um período, no início da pandemia, em que sentiram mais (o isolamento). Agora estão mais ocupadas com as aulas online da escola e com novas atividades, como crochê e trabalhos manuais, mas é claro que nada substitui a presença da família."
Aulas à distância
Igual a muitas outras crianças, algumas das que moram em abrigo também têm tido receio com as aulas à distância.
"Muitos abrigos não têm recursos tecnológicos - às vezes falta internet ou só tem um ou dois computadores disponíveis para todos. As crianças estão sem a escola e sem muitos espaços de convivência", explica Naddeo, do Instituto Fazendo História.
No abrigo da zona leste de São Paulo, a funcionária Deise tem visto suas crianças mais ansiosas quanto às aulas.
"Já ouvi de uma delas que 'mesmo na escola a gente já não aprende muito, como a gente vai estudar agora?'. Tenho visto nossos adolescentes bem preocupados em entregar seus trabalhos escolares."
Para Maria José Geremias, da Secretaria de Assistência Social de Campinas, as crianças em abrigos da cidade estão com acesso à internet e equipamentos, e dificuldades não são diferentes das demais crianças do país estudando remotamente.
Outra questão adicional é lidar com os anseios dos adolescentes em sair, passear e ver os amigos.
"'Que vontade de sair', eles me dizem", relata Deise. "Mas estão entendendo que a situação é séria e estão bem tranquilos."
O lado positivo é que o período de isolamento tem reforçado o vínculo entre as crianças e a equipe do abrigo, conta Mariza Abrão, do Conviva.
"Temos feito muitas rodas de conversa, trabalhando os sentimentos das crianças, para ouvi-las e cuidar de suas angústias, muitas das quais naturais na adolescência", diz ela. "É um momento de muita escuta e muito acolhimento."