Sistema prisional: quais são os planos de Sergio Moro e sua equipe para os presos sem 'colarinho branco'?
Ministro da Justiça e Segurança Pública - que, como juiz ou acadêmico, não havia se debruçado até então sobre o sistema prisional - quer entregar cerca de 60 mil novas vagas em cadeias e endurecer a lei penal.
Se você já viu qualquer entrevista ou discurso do ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro, provavelmente conhece as ideias dele sobre o combate à corrupção, lavagem de dinheiro e a Operação Mãos Limpas, que desarticulou um grande esquema de corrupção envolvendo a máfia na Itália dos anos 1990.
Em seu primeiro discurso à frente do ministério, por exemplo, Moro citou o jurista baiano Rui Barbosa (1849-1923), mas também os "juízes heróis" da megainvestigação italiana, Giovanni Falcone e Paolo Borsellino.
Mas o que Moro pensa sobre os presos sem colarinho branco, que formam a maioria absoluta dos cerca de 840 mil presos que se estima existirem hoje no Brasil? Como o ministro e sua equipe pretendem lidar com um excesso de detentos que é hoje de 358 mil pessoas - e isso sem levar em conta os mais de meio milhão de mandados de prisão em aberto, não cumpridos ainda?
A população prisional do Brasil é uma verdadeira bomba-relógio, com o número de detentos crescendo pouco mais de 8% ao ano - tanto este dado quanto os do parágrafo acima constam no último balanço do próprio Ministério, divulgado no fim de 2018.
Se este ritmo continuar, disse o então ministro da Segurança Raul Jungmann ao apresentar o balanço, o Brasil terá em 2025 1,4 milhão de presos. É o mesmo que a população de Porto Alegre (RS). Hoje, 37% desses presos não foram sequer julgados, segundo os últimos dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Para Jungmann, antecessor de Sérgio Moro, a área prisional é o principal desafio do Ministério. "É lá que o crime organizado tem o seu 'home office' - lá estão os líderes e o comando, de lá partem as ordens e lá está o controle da violência nas ruas. Lá, também, é o centro de recrutamento das facções", disse o ex-ministro à BBC News Brasil.
A reportagem conversou com o chefe do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) na nova gestão, o delegado da Polícia Federal Fabiano Bordignon, e também com congressistas que se reuniram com Sérgio Moro recentemente. Também ouviu especialistas em Direito e pessoas que trabalharam com o ex-juiz para entender o pensamento e os planos de Moro para o sistema prisional.
Num primeiro momento, diz Bordignon, a ideia é tirar do papel cerca de 60 mil novas vagas em cadeias - o valor para a construção desses novos presídios já foi liberado para os governos dos Estados em anos anteriores, segundo Bordignon.
"Com raríssimas exceções, ninguém quer debater e buscar soluções para o sistema prisional e suas facções. Que são complementares à violência e insegurança nas ruas. Todos querem resolver o problema das ruas; ninguém quer (resolver) o sistema prisional", disse Jungmann. Quando falou à BBC, o ex-ministro estava na Espanha, onde aproveitava alguns dias de recesso.
"Isso (o predomínio das facções) está à mostra no Ceará (onde facções responderam com violência ao anúncio de mudanças na política prisional em meados de janeiro), e já esteve em outros lugares. Esse crescimento das facções de base prisional leva o crime organizado ao crescente confronto com o Estado, e à corrupção ou captura de agentes públicos, territórios, polícia, políticos, órgãos de controle, etc.", diz Jungmann.
Jungmann não quis fazer recomendações a Moro ("Seria deselegante", disse), mas encaminhou um artigo recente, publicado no jornal Folha de S. Paulo, no qual aprofunda o tema e diz que o governo deveria priorizar a prisão de criminosos de "maior impacto", como grandes traficantes, assassinos e barões do crime organizado, além de mudar a atual política de drogas - o tráfico é hoje o segundo crime que mais leva pessoas à cadeia, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Bordignon pensa de forma diferente do ex-ministro da Segurança de Temer. Para o delegado da PF, o MJ deve, sim, atuar para melhorar as condições das prisões - inclusive fortalecendo projetos como as audiências de custódia, quando as pessoas detidas têm seus casos revisados por juízes antes de ir para a cadeia, de forma a evitar prisões injustas.
Mas o Estado não pode tentar resolver o problema "soltando presos".
"Não dá para você criar uma política hoje de soltar. Você não pode resolver o déficit de vagas soltando presos. Isso é uma situação que ficou bem clara nas palavras do ministro (Sergio Moro). Claro que a gente vai ter políticas de alternativas penais, de desencarceramento, mas você não consegue hoje simplesmente criar 300 mil ou 400 mil vagas soltando preso. Tá bom?", disse Bordignon à BBC News Brasil.
"Prisão dos membros (das facções), isolamento carcerário das lideranças, identificação das estruturas e confisco dos bens", foi a receita apresentada pelo ministro para enfrentar as facções, no discurso aludido pelo chefe do Depen.
"Precisamos, com investimentos e inteligência, recuperar o controle do Estado sobre as prisões brasileiras", asseverou Moro no dia 2 de janeiro, quando recebeu o cargo de ministro.
O plano, até agora, é construir mais prisões
Em agosto de 2015, o plenário do STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que o sistema prisional brasileiro, como um todo, violava a Constituição de 1988.
"A maior parte desses detentos está sujeita às seguintes condições: superlotação dos presídios, torturas, homicídios, violência sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida imprestável (...) bem como amplo domínio dos cárceres por organizações criminosas", escreveu o ministro Marco Aurélio Mello, relator do caso.
O STF então determinou a realização das audiências de custódia e, talvez mais importante, proibiu o governo federal de segurar (o termo técnico é "contingenciar") o dinheiro do Fundo Penitenciário (Funpen).
Nos anos seguintes, um montante sem precedentes de verba federal do Funpen chegou aos governos estaduais - R$ 1,2 bilhão em 2016, e mais R$ 590 milhões em 2017.
O Funpen recebe dinheiro de loterias e de custas judiciais ganhas pela União, entre outras fontes, e aplica o dinheiro no sistema prisional, e também na segurança pública.
Se antes o problema era Brasília, que não liberava o recurso, depois de 2016 a dificuldade passou a ser nos Estados: a maior parte do dinheiro não foi usada por entraves burocráticos ou de licitação; e quando se trata de construir mais presídios, os problemas são maiores ainda.
Todos os projetos das novas cadeias precisam ser aprovados pelo MJ, por exemplo. Hoje, há 153 projetos de novas prisões enviados pelos Estados, e pendentes de análise, diz Bordignon.
Na conversa por telefone, o chefe do Depen repetiu duas vezes que o governo "está apenas em seu 18º dia". Mesmo assim, alguns planos já estão traçados.
Um estudo prévio do Depen sugere que só com o dinheiro já repassado aos Estados seria possível criar 65 mil novas vagas em presídios, caso todos os projetos ficassem prontos. Por isso, diz Bordignon, o Departamento agora terá uma área dedicada a cuidar destes projetos de engenharia, e outra exclusiva para ajudar os Estados a licitar obras.
Mais: a ideia é oferecer aos governadores e secretários dos Estados vários projetos já prontos de presídios.
"O que a gente quer ter é um portfólio de projetos de unidades prisionais, já adaptados para cada região", diz Bordignon. Segundo ele, seriam 20 ou 30 opções diferentes, criados em parcerias com universidades, como a Universidade de Brasília (UnB). Para tornar a construção mais rápida, Bordignon cogita usar a construção modular, técnica na qual partes do projeto chegam prontas e são "encaixadas" umas nas outras.
O MJ também tentará ampliar o acesso dos presos ao trabalho, inclusive com parcerias com empresas. A ideia é ter "unidades industriais ou unidades agrícolas (onde o preso possa) adquirir condições de, retornando à sociedade (...), custear a sua vida".
O trabalho dos presos também ajudaria a manter a cadeia e a "instituir um pecúlio (uma soma em dinheiro) para quando sair em liberdade", diz o diretor do Depen.
Além da construção de cadeias, Bordignon quer ampliar o uso de videoconferências para dar rapidez às audiências de custódia - de modo que o preso não precise sair da cadeia para reunir-se com o juiz do seu caso. Disse também que o MJ vai trabalhar junto com o CNJ para fortalecer os mutirões carcerários - quando defensores públicos e a Justiça fazem a revisão dos processos e penas dos detentos, de modo a evitar que pessoas fiquem presas de forma ilegal.
O pacote 'anticrime organizado'
No começo de fevereiro, Sergio Moro deverá enviar ao Congresso um pacote com um ou mais projetos de lei, tratando basicamente de endurecer o combate ao crime organizado e medidas contra a corrupção. O foco principal é dar mais agilidade ao processo judicial, disse Moro.
"Não haverá aqui a estratégia não muito eficaz de somente elevar penas. Pretende-se, sim enfrentar os pontos de estrangulamento da legislação penal e processual penal que impactam a eficácia do sistema de Justiça", discursou ele ao assumir o cargo.
É pouco provável que este primeiro pacote traga grandes novidades para a área prisional.
"Essa questão de presídios… Me parece que ele (Moro) está mais preocupado com a criminalidade do lado de fora da cadeia", diz um deputado federal cearense, Danilo Forte (PSDB), que esteve com Moro em meados de janeiro.
"Mas talvez eu tenha ficado com essa impressão porque este tema (prisões) não era bem a pauta do nosso encontro", diz ele. Fortes preside, na Câmara, a comissão que trata do novo Processo de Código Penal. Moro pediu a Forte um prazo para apresentar suas considerações sobre o novo código.
Segundo o deputado Joaquim Passarinho (PSD-PA), Moro vai reaproveitar algumas das propostas que estavam nas Dez Medidas Contra a Corrupção, um antigo projeto de lei de iniciativa popular impulsionado por integrantes do Ministério Público Federal e que foi enterrado pela Câmara em 2016.
Das Dez Medidas, Moro quer resgatar, por exemplo, a proposta do "denunciante do bem": trata-se de proteger e até premiar pessoas que denunciam certos tipos de crimes.
Haverá também propostas novas. "Por exemplo: a progressão de pena tem de acabar para quem é integrante de facção criminosa. Integrante de facção é criminoso e, portanto, não deve ter progressão penal", diz Joaquim Passarinho, que foi relator do projeto das Dez Medidas.
A progressão penal é a regra pela qual um preso em regime fechado pode, depois de cumprida parte da pena e sob certas condições, passar ao semiaberto (apenas dormindo na cadeia) e depois ao regime aberto. Assim, uma pessoa condenada a 30 anos de detenção nunca passa essas três décadas em regime fechado, no Brasil.
O pacote de Moro vai incluir uma versão do que é conhecido como "plea bargain" nos Estados Unidos - ou seja, a pessoa acusada pelo Ministério Público admite a culpa antes mesmo que haja um processo; em troca, obtém benefícios como a redução da pena.
O ministro também pretende oficializar o entendimento atual do STF, segundo o qual o preso pode começar a cumprir pena após a condenação em segunda instância.
Crime 'comum' nunca foi a praia de Moro
Antes de se tornar ministro da Justiça, Moro se notabilizou como o titular da 13ª Vara Federal de Curitiba - um ofício especializado no crime de lavagem de dinheiro. Foi investigando a lavagem de dinheiro (que acontece quando alguém tenta dar aparência legal a recursos de origem ilícita) que Moro embarcou nas duas principais investigações de sua carreira: o caso Banestado, nos anos 1990, e a Lava Jato, iniciada em 2014.
O tipo de delito que Moro investigava na Lava Jato e no Banestado pertence à área do conhecimento chamada "direito penal econômico" - e, embora seja fundamental combater esses crimes de colarinho branco, eles têm pouca relação com os delitos que mais lotam hoje as 1.456 cadeias do país.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, apresentados em agosto de 2018, os crimes que mais levam pessoas para a cadeia são os de roubo (27%) e tráfico de drogas (24%).
"Moro tem uma atuação acadêmica muito voltada para o direito penal econômico, o que de forma nenhuma tira o mérito dele como pensador do Direito. O direito penal econômico tem como foco punir e desmantelar as grandes facções organizadas", diz o advogado criminalista Fernando Castelo Branco.
"Corrupção, o crime de lavagem e o crime organizado. Este talvez seja o tripé das preocupações de Moro. A bandeira dele sempre foi essa. Na Justiça Federal, é muito razoável ele vestir essa camisa. Mas o Ministério da Justiça é muito mais amplo que isso", diz Castelo Branco, que é professor de processo penal da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e coordenador de pós-graduação do Instituto de Direito Público (IDP-SP).
"A massa carcerária não é de colarinho branco, é de negros e pobres. Não se vê o ministro, apesar do tempo ainda ser exíguo, muito preocupado com isto. Talvez se deva dar tempo para ele pensar e desenvolver um plano para essa situação de falência do sistema carcerário", pontua o criminalista.
Moro fez mestrado (2000) e doutorado (2002) na UFPR (Universidade Federal do Paraná), e ambos os trabalhos são sobre temas de direito constitucional. Mais recentemente, publicou artigos acadêmicos e coordenou projetos de pesquisa sobre direito penal - foi professor deste ramo do direito na UFPR, cargo que deixou em março deste ano.
Em seus textos acadêmicos mais recentes, o ex-juiz da Lava Jato trata de temas como corrupção no Brasil, lavagem de dinheiro e até o uso de bancos de dados de material genético para a investigação de crimes (2006) - outra proposta que ele pretende encampar no ministério.