STF suspende indulto de Bolsonaro a PMs do massacre do Carandiru
Decisão liminar da ministra Rosa Weber será julgada pelo plenário do STF. Perdão aos PMs envolvidos na chacina de 111 presos em 1992 havia sido concedido por Bolsonaro dias antes de deixar a Presidência.A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber suspendeu nesta terça-feira (17/01), em caráter provisório, o trecho do decreto de indulto de natal concedido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que beneficiava os policiais militares condenados pelo massacre no presídio do Carandiru, ocorrido em 1992 e que resultou no assassinato de 111 presos na antiga Casa de Detenção de São Paulo.
Bolsonaro concedeu o benefício em 22 de dezembro, pouco antes de encerrar seu mandato, através de um decreto.
O texto presidencial previa perdão a agentes de forças de seguranças condenados por crimes ocorridos há mais de 30 anos, mesmo que provisoriamente. Outro trecho previa que o perdão se aplica a crimes que não eram "considerados hediondos no momento de sua prática".
Os PMs condenados pelo massacre no presídio paulista se encaixavam diretamente nesse perfil. O massacre completou 30 anos em outubro de 2022. Além disso, em 1992, homicídios não estavam previstos na então redação da Lei dos Crimes Hediondos - só passaram a ser incluídos em 1994.
Ao todo, 74 PMs foram condenados a penas que variam de 48 a 624 anos. Cinco deles morreram antes que as penas começassem a ser cumpridas.
Nenhum deles chegou a cumprir pena pelos homicídios do Carandiru até hoje, graças a uma série de manobras jurídicas.
No entanto, a possibilidade de recursos foi esgotada em 2022, quando o Superior Tribunal de Justiça e o Superior Tribunal Federal decidiram pelo trânsito em julgado.
Dessa forma, antes do indulto, só restava uma etapa para que os PMs passassem a cumprir pena: uma análise do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) para verificar se as penas estão adequadas.
PGR questionou indulto
No dia 27 de dezembro, o procurador-geral da República, Augusto Aras, entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade no STF para questionar partes do indulto. Na ação, Aras sustentava que parte do decreto era inconstitucional por beneficiar agentes de segurança pública que estiveram envolvidos no massacre.
Nesta terça, Rosa Weber avaliou que para a concessão do indulto a data válida é aquela na qual o decreto que perdoa as penas foi assinado e não a data em que os crimes foram cometidos. A decisão liminar da ministra vai a julgamento no plenário do STF.
O órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) também avaliará a inconstitucionalidade do benefício concedido por Bolsonaro. Havia uma previsão para que o TJSP verificasse em janeiro desse ano se as penas estão adequadas, o que abriria o caminho para que os PMs cumprissem pena.
Caso o STF decida pela ilegalidade do benefício, a decisão passa a valer para qualquer caso de indulto cujo crime tenha sido cometido antes da lei que configura os crimes hediondos.
Se o TJSP também considerar inconstitucional o indulto, a suspensão será válida somente para o caso do massacre do Carandiru. Após o julgamento, 4ª Câmara Criminal do tribunal paulista avaliará os recursos das defesas dos PMs que pedem redução de pena.
Os advogados dos policiais alegam que eles abriram fogo em legítima defesa depois de serem atacados por presos com armas de fogo e facas que tentavam fugir do local.
O massacre
Em 2 de outubro de 1992, um sábado, véspera de eleições municipais, uma rebelião explodiu após uma briga entre presos no pavilhão nove da Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru. O complexo abrigava 7.500 presos, mais que o dobro da capacidade.
"Era um dia especial por causa das eleições. Não poderíamos permitir uma fuga em massa de mais de 7 mil criminosos", disse ainda naquele sábado Pedro Franco de Campos, responsável pela pasta da Segurança Pública do estado.
Duas horas após o início da rebelião, 362 homens de diferentes tropas da Polícia Militar paulista, sem nenhuma experiência em presídios, invadiram o pavilhão armados com revólveres, submetralhadoras alemãs, escopetas, fuzis M-16 e cães. "O ataque foi desfechado com precisão militar: rápido e letal. A violência da ação não deu chance para defesa", escreveu o médico Drauzio Varella, que trabalhava na prisão.
Pavilhão por pavilhão, cela por cela, os PMs dispararam contra os presos. A ação se estendeu por meia hora. Quando as armas silenciaram, os sobreviventes foram escoltados para fora e agredidos com cassetetes e mordidas de cachorros em um corredor polonês.
Dentro do pavilhão, 111 presos perderam a vida. Do lado da polícia, nenhum morto.
O governo estadual evitou num primeiro momento divulgar a escala do massacre. A contagem oficial naquele sábado indicou apenas oito mortos. O total só foi conhecido no domingo, meia hora antes do fim da eleição municipal. O então governador do estado, Luiz Antônio Fleury, foi acusado de segurar a contagem para não prejudicar os candidatos apoiados pelo governo.
Impunidade
Passaram-se quase dez anos até o primeiro júri do caso. O primeiro a ser condenado foi o coronel Ubiratan Guimarães, comandante da operação. Sua sentença em 2001 chegou a 623 anos de prisão. Entre 2013 e 2014, foi a vez do grosso da tropa. Cinco diferentes júris resultaram na condenação de mais de 70 PMs. Somadas, as penas passaram de 21 mil anos de prisão.
Mas nenhum deles chegou a passar um dia sequer na prisão até o momento por crimes relacionados ao Carandiru. Ubiratan foi o primeiro a se livrar. Em 2006, no julgamento de um recurso da sua defesa, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que ele havia apenas "cumprido seu dever" e decidiu pela absolvição.
Em setembro de 2016, o Tribunal de Justiça de São Paulo adicionou mais um elemento nessa saga de impunidade e morosidade: anulou todos os cinco júris dos 73 PMs condenados após recurso da defesa.
Em seu voto que anulou os júris, o relator do recurso, Ivan Sartori, que já foi presidente do TJ-SP, chegou a afirmar que "não houve massacre". "Houve sim uma contenção necessária à imposição da ordem e da disciplina, tratou-se de legítima defesa", disse.
Suas conclusões contrastaram com os elementos que apontavam para um massacre. Um deles foi exemplificado no segundo julgamento do caso, que abordou 52 das 78 mortes que ocorreram do terceiro pavimento do pavilhão nove do Carandiru.
O Ministério Público mostrou que 90% desses 52 presos levaram três tiros ou mais - 47 foram baleados na cabeça ou no pescoço. Laudos periciais também apontaram que não foram encontradas marcas de projéteis nas posições em que os PMs ocuparam no pavilhão, afastando a hipótese de um "confronto" ou disparos que partiram dos presos.
O MP também apontou que a conduta dos PMs não era exatamente nova, indicando que 24 dos 25 réus desse segundo júri já haviam matado 300 pessoas em ocorrências de resistência seguida de morte (sem relação com o Carandiru) desde o início da carreira de cada um até o ano 2000.
O recordista de casos era o tenente-coronel Carlos Alberto dos Santos, com 33 mortes. À época da decisão do tribunal de São Paulo, em sua conta no Facebook, Sartori respondeu aos críticos da sua decisão. "Outro infeliz, cooptado pelos pseudodefensores dos direitos humanos", disse a um usuário.
Em abril de 2018, o STJ mandou o TJ-SP julgar novamente o caso. Em 2021, no entanto, o STJ voltou a restabelecer as condenações dos júris originais. Em agosto de 2022, foi a vez de o STF negar seguimento aos recursos extraordinários, efetivamente determinando o trânsito em julgado das condenações. A possibilidade de um indulto era um dos últimos mecanismos que podiam ser usados pelos PMs para evitar a prisão.
Carreiras intocadas
Após deixar o cargo de governador, no final de 1994, Fleury continuou ativo politicamente. Em 2013, durante um dos julgamentos do caso, disse que a entrada da PM no pavilhão nove foi "legítima e necessária". Em 1998, foi eleito deputado federal. Ele morreu em novembro de 2022, sem nunca ter sido responsabilizado.
O coronel Ubiratan também seguiu na política. Em 2002, foi eleito deputado estadual em São Paulo. Seu número na urna era 11190, uma referência macabra aos mortos no Carandiru. Em 2006, foi encontrado morto em casa enquanto tentava a reeleição - desta vez usava o número 14111.
O secretário de Segurança Pedro Franco de Campos deixou o cargo dias após o massacre e se tornou diretor de uma faculdade. Michel Temer, que depois se tornou presidente da República, assumiu o lugar. Ele também nunca foi responsabilizado criminalmente pelo massacre.
Entre os policiais que executaram as ordens, quase todos permaneceram na PM nos anos seguintes. Durante o primeiro júri do caso em 2013, que envolveu 26 PMs, oito ainda estavam na ativa. Vários foram promovidos nos anos seguintes ao massacre. Dois participantes chegaram a chefiar a Rota, a temida tropa de elite da PM paulista, nos anos 2000: Salvador Modesto Madia, condenado no segundo júri do Carandiru por 52 homicídios; e Nivaldo César Restivo, acusado de tomar parte nas agressões aos sobreviventes após o massacre.
Apenas um PM que tomou parte na ação chegou a cumprir pena, mas não por crimes relacionados ao Carandiru. Cinco meses após o massacre, Cirineu Letang, soldado que tomou parte na ação que resultou na morte de 73 presos no terceiro pavimento do pavilhão nove, cometeu o primeiro de uma série de assassinatos em série de travestis em São Paulo.
Foi preso pouco depois e cumpriu pena até 2011. Solto, voltou a matar 71 dias depois. Letang, ou o "Matador de Travestis", como é conhecido na crônica policial, cumpre pena em semiaberto desde 2019.
rc (ots)