Tamanho continental e desigualdade social aumentam desafios do Brasil no controle da covid-19
Estudo liderado por pesquisadores da UFMG prevê que o sistema de saúde do Estado ficará sobrecarregado em um mês se houver registro de 1% de casos graves.
Não bastassem as desavenças entre setores do governo sobre como lidar com a covid-19 e parte da população desobedecendo as medidas de isolamento social recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil tem outro desafio para controlar a epidemia do novo coronavírus: seu tamanho continental.
Sua extensão de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, além das desigualdades sociais e regionais, tem como consequência grandes distâncias entre as pequenas cidades do interior - com poucos recursos para tratamentos da doença - e as capitais e grandes centros urbanos, onde estão os principais hospitais e o maior número de equipamentos e profissionais da área médica.
Um estudo, liderado por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), prevê que o sistema de saúde daquele Estado ficará sobrecarregado em um mês se houver 1% de casos graves entre o total.
A pesquisa também mostra que essa situação não é muito diferente da nacional, se a mesma taxa de infecção da população for alcançada em igual período.
Longas distâncias
Nas regiões onde há pouca oferta de leitos e respiradores, por exemplo, os pacientes graves precisarão ser encaminhados para outras cidades, algumas a até 200 km de distância, que ofereçam o tratamento necessário.
O virologista Paulo Michel Roehe, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), diz que, naturalmente, um país do tamanho do Brasil tem o controle de qualquer enfermidade, de caráter epidêmico ou não, prejudicado.
"Tudo é longe para quem está fora dos grandes centros", explica. "Postos de saúde, assistência médica, acesso a medicamentos, hospitais adequados, laboratórios para diagnóstico e tudo o que se refere à saúde é complicado para quem está distantes dos municípios maiores. Então, para estas pessoas, o acesso a assistência vai sempre ser difícil."
Para a pesquisadora Margareth Portela, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), os desafios no combate à covid-19 são a necessidade de enfrentar dificuldades diferentes em cada local e trabalhar sobre múltiplas estratégias.
"Temos hoje partes do país em distintos momentos da pandemia, com locais já vislumbrando o risco de propagação descontrolada e outros em que a percepção sobre ela talvez ainda não dê conta da ameaça que pode representar", diz.
A historiadora Anny Jackeline Torres Silveira, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), pensa de maneira semelhante. "A extensão do país interfere na capacidade de ação das autoridades na tentativa de controlar a expansão e o impacto da doença", diz.
"Gerenciar uma crise sanitária em um país continental, que tem historicamente negligenciado a saúde da população, não é fácil em tempos de bonança econômica e certamente será ainda mais complicado na situação na qual nos encontramos atualmente."
Diversidade e desigualdade
O pesquisador Christovam Barcelos, do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (ICICT, da Fiocruz), acrescenta mais um obstáculo à lista.
De acordo com ele, que coordena a plataforma MonitoraCovid-19, que agrupa e integra dados sobre o novo coronavírus no Brasil e no mundo, o Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1988, tem como princípios a universalidade, a integralidade e a equidade dos serviços de saúde, de forma descentralizada, hierarquizada e com participação popular.
Tudo isso, diz Barcelos, está em jogo, mais do que nunca, nesta pandemia. "Como garantir que os serviços sejam ofertados à população, considerando a diversidade nacional e ao mesmo tempo as particularidades de cada lugar e grupo social?", indaga. "Este é o nosso grande desafio no momento."
O gigantismo do Brasil não é, no entanto, o único problema que dificulta o controle da epidemia no país. O médico Expedito José de Albuquerque Luna, da área de epidemiologia e controle das doenças transmissíveis do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP), aponta ainda "a diferente distribuição da população e da riqueza entre as distintas regiões brasileiras".
"A distribuição dos recursos médico-sanitários acompanha a da riqueza", explica. "Há maior concentração de profissionais de saúde e de equipamentos (hospitais, laboratórios, leitos hospitalares e de UTI) nas regiões mais ricas. E dentro de cada uma a distribuição também é desigual, com recursos se concentrando nas cidades maiores."
De acordo com geógrafa Luiza Losco, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Demografia, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o maior problema para o controle da covid-19 no Brasil são as profundas desigualdades regionais, encontradas na extensão territorial do país, com os recursos financeiros e econômicos e de saúde concentrados em poucos municípios.
"Os três que apresentam maior número de leitos se encontram na região Sudeste: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte", diz.
Ela cita dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, segundo os quais, essas três capitas tinham, em fevereiro de 2020, respectivamente, 6.669, 4.043 e 1.816 leitos de cuidados intensivos (UTI). "Além disso, dentre os 5.571 municípios brasileiros, 4.221 não apresentam nenhum", lamenta.
A pesquisadora Helena Akemi Wada Watanabe, do Departamento de Política, Gestão e Saúde, da Faculdade de Saúde Pública da USP, reforça que os "diferentes Brasis", ou as distintas de condições de vida, prejudicam o acesso à informação de uma forma que todos realmente consigam entender os desdobramentos da pandemia. "Há ainda muitos analfabetos funcionais no país".
Além disso, um grande contingente tem dificuldade de acesso à água potável, ou as condições de moradia são insalubres, sem possibilidade de manter os cômodos ensolarados e ventilados, ou que possibilitem o isolamento domiciliar.
"E há ainda, a questão financeira, que acaba muitas vezes 'empurrando' a pessoa para fora de casa na busca de alimento", diz. "Por isso, as políticas públicas de distribuição de renda neste momento são tão importantes."
Diante desse quadro, não seria absurdo afirmar que as pessoas têm menos chance de serem infectadas no interior, mas se o forem possuem menos oportunidade de tratamento e terão de se deslocar para cidades maiores.
"Há de fato menor possibilidade de contaminação nas pequenas cidades, mas só até certo ponto, já que depende de seu grau de articulação com municípios maiores e os grandes centros", diz o geógrafo e doutor em demografia Ricardo Dantas, do ICICT, da Fiocruz, no qual atua no projeto de Avaliação do Desempenho do Sistema de Saúde (Proadess).
Por isso, defende ele, é fundamental manter o isolamento social e restringir os deslocamentos às necessidades e aos serviços fundamentais. "Outro ponto problemático é se o número de infectados que necessitam de leitos clínicos for maior do que a capacidade desses pequenos municípios", alerta.
"Além disso, cabe recordar que outras questões que podem requerer internações (complicações de doenças crônicas, acidentes, agressões, entre outras) não necessariamente reduzirão nesse período."
Para Luna, pode-se esperar que a transmissão seja mais intensa nas maiores cidades, o que pode significar uma duração mais curta dessa primeira onda da pandemia, dependendo também da adesão maior ou menor às medidas de distanciamento social.
"Deve ocorrer nos grandes centros uma maior concentração de casos graves, mas com melhores oportunidades de cuidado de alta complexidade, o que pode contribuir para uma redução da letalidade da doença", prevê.
"Nas cidades menores, pode-se esperar menor risco de transmissão, com mais dificuldade de acesso ao cuidado terciário, o que pode levar a uma maior mortalidade. Lembrando ainda as grandes diferenças regionais, com maior concentração de serviços de alta complexidade nas grandes metrópoles das regiões Sudeste e Sul."
Ministério defende o distanciamento social
Em nota, o Ministério da Saúde reconhece que o tamanho continental do Brasil é um grande desafio para o combate ao coronavírus. "Temos cenários epidemiológicos distintos nas diferentes regiões geográficas do país", diz em comunicado.
"Dessa forma, a curva de transmissão pode ser impactada de maneira diferente em cada região, principalmente no Sudeste e Sul, durante a sazonalidade das doenças respiratórias, principalmente relacionadas à densidade populacional nessas regiões e variações climáticas."
"O Ministério da Saúde", continua a nota, "orienta as ações de acordo com parâmetros criados para o enfrentamento da circulação do vírus no território nacional. É preciso esclarecer que as recomendações não farmacológicas valem para todo o Brasil, mas devem ser adotadas pelos gestores estaduais e municipais de acordo com realidade em cada localidade. As autoridades locais devem observar a situação em sua região e modular as ações, levando em consideração o cenário epidemiológico, quantidade de insumos, além da capacidade de leitos e profissionais de saúde para o enfrentamento à pandemia."
"Ou seja", acrescenta o texto "cabe aos gestores locais avaliarem o momento de adotar as ações e o Ministério da Saúde está à disposição para discutir as medidas. Por isso, para evitar a circulação do vírus entre as localidades, como dos grandes centros para o interior, o Ministério da Saúde recomenda o distanciamento social. No entanto, a decisão é sempre do gestor local. Mas é bom lembrar que não adianta fazer isso no pico da curva. (...) Sendo assim, o momento é de manter distanciamento social e medidas de higiene, que são as armas mais eficientes à disposição para o enfrentamento ao vírus."