'Técnicas brasileiras sangrentas de luta': autor paulista é surpreendido com livro ligado a ataque terrorista em Londres
'A internet é um terreno selvagem', reagiu instrutor ao saber que livro de defesa pessoal escrito há mais de 20 anos foi traduzido junto a tutoriais de bombas e drogas caseiras e apareceu entre os pertences de autor de atentado no último domingo.
Quando escreveu o guia Defesa com Facas, um manual de 96 páginas que ensina técnicas de autodefesa com lâminas, adagas e punhais junto a textos, ilustrações e fotografias de si próprio e seus alunos, o instrutor de artes marciais Ricardo Nakayama não imaginava que seu livro dividiria espaço com tutoriais para produção de bombas caseiras, drogas sintéticas e gases letais no catálogo de uma editora dirigida por um químico preso pelo menos duas vezes nos EUA.
Nakayama também não esperava que a publicação, escrita em 1998 e disponibilizada online sem proteção de direitos autorais, fosse renomeada como Bloody Brazilian Knife Fighting Techniques — ou literalmente "Técnicas brasileiras sangrentas de luta com faca" — e ganhasse destaque nos principais jornais do mundo após um ataque classificado pela polícia como terrorista, no último domingo, em Londres.
A obra do brasileiro foi citada em várias reportagens sobre Sudesh Amman, o britânico de 20 anos morto polícia após esfaquear um homem e uma mulher em uma movimentada rua do sul da capital inglesa.
Ele havia sido libertado há cerca de uma semana, depois de cumprir metade de sua sentença de três anos e quatro meses por crimes relacionados ao terrorismo. Em novembro de 2018, Amman se declarou culpado por seis acusações de posse de documentos com informações terroristas e sete acusações de divulgação de publicações terroristas.
Segundo a corte central criminal da Inglaterra e do País de Gales, o manual de uso de facas escrito há mais de duas décadas pelo brasileiro estava entre elas.
"A internet é um terreno selvagem", reagiu Nakayama após ser informado pela reportagem, por telefone, que uma tradução de seu livro havia sido citada entre os pertences do autor do atentado. "Fico muito surpreso."
A BBC News Brasil teve acesso às versões completas em inglês e português. A tradução inclui tópicos nunca explorados na versão original, como referências racistas sugerindo que negros seriam mais violentos que brancos.
E esta não é a primeira vez em que o livro é ligado a atividades extremistas por autoridades britânicas.
Defesa ou ataque
Em junho do ano passado, um homem foi preso em Edimburgo por colecionar materiais associados a terrorismo — incluindo a tradução do livro escrito pelo brasileiro.
Em setembro, um jovem de Middlesbrough, no norte da Inglaterra, foi a julgamento acusado por terrorismo e posse de explosivos — uma cópia de Bloody Brazilian Knife Fighting Techniques também foi encontrada em seus HDs.
"Acima de tudo, o livro é um tratado sobre o uso da faca como instrumento de defesa e não de ataque", disse o brasileiro à BBC News Brasil. "O que posso dizer é que este é um livro até ruim, que foi escrito há muitos anos."
Surpreso com o contato da reportagem, o autor continua.
"A faca é um instrumento que, se usado com segurança e responsabilidade, se você souber operar, é capaz de nivelar pessoas mais fracas contra mais fortes, ou contra múltiplos adversários, e pode trazer segurança, por exemplo, a mulheres que precisem se defender de invasões em casa ou tentativas de estupro."
Segundo a BBC News Brasil apurou com o governo inglês, a Inglaterra "não proíbe a livros ou materiais impressos".
"Mas é um crime possuir material que possa ser usado para o preparo de atos terroristas", diz uma fonte.
O uso de materiais como o livro atribuído ao brasileiro é avaliado caso a caso. "Cabe a polícia investigar suspeitos em casos particulares e aos tribunais tomarem uma decisão em caso de acusações. A decisão sobre se um crime foi cometido ou não depende das circunstâncias particulares de cada caso."
Procurada, a polícia metropolitana de Londres disse que não comentaria o caso por conta do volume de trabalho ligado às investigações do episódio, ainda em andamento.
'Distorção e sensacionalismo'
Especialista em defesa pessoal com mais de 30 anos de carreira, graduado faixa preta em nove artes marciais e instrutor em três modalidades, com mais de 50 mil alunos no currículo e treinamentos para militares das Forças Armadas, policiais de pelo menos 8 Estados brasileiros e funcionários de empresas como Itaú e Pfizer, Nakayama classifica a tradução do livro como "distorcida e sensacionalista".
"Quando se busca knife fighting (luta com armas), você encontra o meu livro. Eu já tinha visto porque pesquiso sobre o tema, mas nunca entrei em contato com a pessoa que fez a tradução", diz.
"Provavelmente a pessoa traduziu porque encontrou o conteúdo online. A distribuição era gratuita. Eu não tenho nenhum tipo de problema com isso."
Na versão em inglês, Ricardo Nakayama aparece como "Rick Kamakaze Nakayama".
"Presumo que o autor fez isso para chamar atenção, nunca houve troca de mensagens da minha parte com ele", diz. "Essa tradução tem sentido sensacionalista. O bloody (sangrento) chama atenção e mostra uma imagem violenta e que eu não concordo. A finalidade do livro está sendo distorcida. Até porque o nosso povo é pacífico", afirma o instrutor.
A tradução foi publicada pela "Uncle Fester Books" — editora administrada por um químico que se classifica como "a pessoa mais perigosa da América".
'Editora maldita'
Steve Preisler, o tradutor, usa o pseudônimo "Uncle Fester" — o "tio Fester", o personagem da Família Addams conhecido por ser especialista em explosivos.
Descrito como um "editor maldito" por blogues americanos, Preisler foi preso pelo menos duas vezes por posse de metanfetamina, droga sintética altamente viciante.
Na cadeia, usando uma máquina de escrever emprestada, ele teria escrito seu livro mais conhecido - Secrets of Methamphetamine Manufacture (ou segredos da produção de metanfetamina), que está em sua oitava edição.
O químico também é autor de manuais para a produção caseira de gases venenosos como sarim e tabun e outras drogas, como o LSD.
Bloody Brazilian Knife Fightin' Techniques é a primeira tradução co-assinada pelo americano. Publicado em inglês em 2004, o livro foi descrito em entrevistas de Preisler como seu único arrependimento na carreira. "Nunca saia do seu gênero", disse ele em entrevista à emissora americana Fox, justificando as baixas vendas do único livro não relacionado à química em seu repertório.
"Evite", diz um leitor do livro em um conhecido site de resenhas dos EUA.
"O livro é mal organizado e editado — e estou sendo gentil na minha avaliação. As imagens e gráficos não correspondem às descrições. Ilustrações aparecem do nada sem referências (...) É uma bagunça."
Medidas legais
A versão em inglês traz longos trechos inexistentes na publicação original, incluindo comentários racistas associando violência a populações negras e colocando brancos como suas vítimas.
"O componente racial dos crimes não deve ser ignorado, mesmo com a lavagem cerebral da mídia deixando as pessoas brancas desconfortáveis para encarar fatos da vida", diz o texto.
No site da editora, o Brasil é descrito como uma "terra selvagem".
"As ruas do Brasil são uma terra selvagem de ninguém, onde a vida é barata e as armas pertencem a duas classes opressoras: criminosos e militares. Como as pessoas decentes sobrevivem nesse lugar? Eles se treinam nos métodos de ataque e defesa, usando uma das ferramentas mais antigas do homem - a faca (...() Nas páginas deste livro, você aprenderá os métodos que os mantêm vivos em um dos lugares mais perigosos do mundo", diz a resenha.
Além do instrutor de artes marciais, o livro original é assinado por Pedro Cavalcanti, autor das fotos, e J. R. Abrahão, responsável por negociar a publicação, segundo Nakayama. Os dois também tiveram seus nomes alterados na tradução.
A reportagem pergunta se Nakayama pretende tomar alguma medida legal contra versão americana.
"Houve mudanças no texto e no título que não eram do meu conhecimento. Eu não li toda a obra porque a gente tem o problema de não falar tão bem a língua inglesa", diz.
"Eu até tomaria medidas legais, mas tem alguns problemas", prossegue o brasileiro, "principalmente porque eu teria que mover um processo internacional, já que a editora fica nos Estados Unidos. Então seria muito caro e eu não tenho esses recursos. Além disso, eu disponibilizei o material gratuitamente e não sei como ficaria isso legalmente."
Mudança na lei
Após o ataque, classificado como terrorista pela polícia de Londres, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, anunciou que pretende endurecer leis antiterrorismo e a concessão de benefícios a pessoas presas por envolvimento com atos de terror.
De acordo com a legislação atual, presos nestas condições podem ganhar liberdade condicional após cumprirem metade de suas penas em regime fechado — as decisões dependem do comportamento dos presos e das circunstâncias da prisão.
Caso sejam libertados, como aconteceu com Sudesh Amman, os acusados passam ter suas atividades monitoradas por forças de segurança. O objetivo é evitar que eles sejam reincidentes ou agir com velocidade em caso de episódios como o recém-registrado no sul de Londres.
O governo tenta agora aumentar para pelo menos dois terços da pena o período mínimo para a oferta de liberdade condicional — mas o caso ainda enfrenta resistência de parlamentares e obstáculos legais para ser decidido.