'Tive filho de um estupro e hoje coordeno serviço de aborto por WhatsApp'
Jovem, que não conseguiu interromper gravidez legalmente porque pai da criança era 'pessoa influente', decidiu criar uma 'clínica virtual' para que mulheres possam abortar se não quiserem ter o filho.
Abigail* criou um serviço de aborto por WhatsApp que já atendeu mais de 300 mulheres que queriam interromper a gestação. Ela vende pílulas abortivas e, juntamente com outras três jovens, acompanha as mulheres do começo ao fim do procedimento, dando instruções por vídeo, texto e áudio.
A BBC Brasil conseguiu entrar no grupo e acompanhou as conversas por cinco meses.
A jovem sabe que corre um risco alto - pode ser presa por "provocar aborto com o consentimento da gestante" e por vender um remédio proibido no Brasil. Mas diz que optou por encarar os riscos, para evitar que mulheres interrompam a gravidez em circunstâncias mais perigosas do que as que oferece.
"Não vou dizer que não pensei em parar de fazer isso. Às vezes, ainda penso. Mas quando vejo que uma mulher tem as oportunidades que eu não tive eu me sinto melhor. Eu gosto de ver as mulheres seguirem em frente", disse ela, em entrevista à BBC Brasil.
A decisão de criar a "clínica de aborto" virtual veio após uma experiência pessoal traumática. Ela contou que engravidou em decorrência de um estupro, quando tinha 19 anos. Foi humilhada quando tentou registrar o Boletim de Ocorrência, na Delegacia da Mulher, e diz que não conseguiu fazer um aborto legal, embora a interrupção da gravidez seja permitida em casos de estupro.
"Em outubro de 2013, eu fui sequestrada e estuprada", afirmou. Ela conhecia o agressor, uma pessoa influente em sua região. Após sofrer a violência, ela diz que procurou acolhimento na casa de uma amiga. Ficou duas semanas de cama, até que reuniu forças para ir à delegacia denunciar o abuso.
"Eu fui ignorada. Eu fui à Delegacia da Mulher, eu estava ferida, e passei por todo tipo de humilhação. E infelizmente o que a delegada me disse foi que ela não podia fazer nada por mim. Quando eu disse o nome da pessoa que fez isso comigo, ela disse que não podia fazer nada", relata.
Mas a pior notícia chegaria três meses depois. "Após eu ser estuprada, desenvolvi depressão. Eu tentei suicídio algumas vezes. Mas aí eu fiquei pensando. Pelo menos eu estou viva. Eu vou realizar meus sonhos. Eu vou ficar bem. E aí eu descobri que estava grávida e foi como se a vida tivesse acabado."
Ao procurar um hospital para interromper a gravidez, esbarrou em novas barreiras. "Eles duvidaram de mim. Pediram Boletim de Ocorrência (BO) e eu não tinha."
O aborto no Brasil só é permitido em caso de estupro, risco de vida para a mãe e feto com anencefalia. A lei não exige que as mulheres denunciem a violência sexual na polícia para que possam abortar. Mas há diversos relatos de hospitais que exigem o Boletim de Ocorrência para realizar o procedimento.
Abigail afirma que, na época em que tentou interromper a gravidez, não tinha a mesma consciência que tem hoje sobre seus direitos.
"Eu estava vulnerável. Não tinha mais forças para lutar contra o que me diziam", conta ela, que deu à luz uma criança saudável.
"Eu amo meu filho. Mas a gravidez não é uma coisa que eu queria para mim. A maternidade não é uma coisa que eu queria para mim. Mudou minha vida completamente."
Ela conta que passou a ser discriminada por vizinhos e familiares por ser "mãe solteira".
"A maioria das pessoas não sabe, então elas acham que eu tenho um filho e eu não sei quem é o pai. Eu sentia que eu tinha uma vida inteira pela frente e parece que roubaram isso de mim", relata.
O fato de ter sido obrigada a seguir adiante com uma gravidez indesejada impulsionou a decisão de criar um serviço de aborto clandestino. "Por causa disso que eu comecei. Não acho justo que a gente seja obrigada a isso, independente do motivo de não querer ter o filho."
Ele conheceu fornecedores de um remédio capaz de expelir o feto, ao provocar contrações no útero. É o mesmo medicamento usado como um dos métodos de aborto legal nos hospitais.
Passou a revender as pílulas a um preço que varia de R$ 900 a R$ 1.500, dependendo da fase da gravidez. Com dicas dadas por médicos que conhece, ela dá o passo a passo do procedimento de aborto. Quer acompanhar as mulheres do começo ao fim, para se certificar de que estão bem.
O serviço cresceu, e ela contratou outras três mulheres de diferentes regiões do Brasil para atuarem como "auxiliares", orientando as gestantes durante o aborto. Nenhuma é médica. Todas as instruções se baseiam em buscas pela internet, experiência própria e conselhos de profissionais de saúde que conhecem.
Os riscos
A médica Alessandra Giovanini, coordenadora do núcleo de Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, alerta para os riscos de tomar o remédio abortivo, sem orientação médica.
"Acredito que elas têm a intenção de ajudar. Mas essas mulheres correm o risco de ter uma hemorragia muito grande e de ficarem com restos ovulares que podem levar a uma infecção e até à morte, se não procurarem um hospital."
A médica reconhece, porém, que as mulheres que procuram o grupo de WhatsApp não têm, por causa das restrições da lei brasileira, a opção de interromper a gestação nos hospitais.
Abigail também admite que há riscos em tomar o remédio abortivo sem orientação médica, mas diz que oferece o serviço de aborto para evitar que as mulheres procurem métodos ainda mais inseguros ou façam o procedimento completamente sozinhas.
"A gente orienta que todas procurem o hospital depois, para se certificar de que deu certo e fazer a curetagem", diz ela, destacando que, embora receba uma margem de lucro com a venda dos remédios, queria que o aborto fosse legalizado.
Ela conta que fica com uma parte da receita da venda das pílulas, distribui uma parcela para as auxiliares contratadas e usa o restante para a doação de abortivos a mulheres que não podem pagar.
Grupo
Mais de 80 mulheres integram o grupo de WhatsApp criado por Abigail atualmente. Mas o entra e sai é constante, já que muitas decidem deixar quando terminam o procedimento. Cerca de 20 novas grávidas entram a cada mês.
"Meninas, muito obrigada pelo apoio. Mas quero agora esquecer esse momento da minha vida e seguir em frente. Por isso, vou deixar o grupo", disse uma jovem que havia feito um aborto duas semanas antes.
"Eu vejo o grupo renovado a cada 45 dias. É o tempo de elas entrarem, demoram uma, duas semanas para comprar, realizam o procedimento, esperam um mês e saem. Saem pelos motivos delas, para não ficar lembrando ou se expondo."
A "clínica virtual de aborto" acabou se tornando mais que um espaço de venda de abortivo - funciona uma espécie de grupo de apoio.
"O grupo é de venda de medicamento, mas o principal intuito dele é ser uma rede de troca. Às vezes, a pessoa está angustiada, que desabafar, e o grupo serve para isso. Tornou-se um espaço de terapia em grupo, um espaço de troca. O lugar seguro delas", diz Abigail.
O medo de ser presa
A legislação brasileira prevê pena de um a quatro anos de prisão para quem provoca aborto com o consentimento da gestante.
O advogado criminalista Conrado Almeida Gontijo disse à BBC Brasil que as jovens que administram o grupo de WhatsApp também correm o risco de serem denunciadas por comercializarem um remédio que não tem autorização da Anvisa (de 10 a 15 anos de prisão) para ser vendido e por formação de quadrilha.
"O fato de fazerem isso por uma questão ideológica não altera esse risco", afirmou.
Perguntada pela BBC Brasil se não tem medo de ser presa, Abigail disse que sim. "Talvez algum dia cheguem até mim. Eu espero que demore. Eu espero que nunca aconteça. Infelizmente, se acontecer, eu não vou saber lidar com a prisão."
Mesmo assim, ela pretende continuar. "Eu gosto de ver mulheres seguirem em frente."