Trabalho infantil: crianças trocam escola pelas ruas em busca de sustento para a família
Especialistas alertam que falta de políticas públicas eficazes agrava o cenário do trabalho infantil, que piora com a pandemia de Covid-19
Na contramão do que propõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o número de menores de idade em situação de trabalho infantil ainda é alto no país. Milhares de brasileiros abaixo dos 18 anos que fazem parte de grupos socialmente vulneráveis deixam sonhos, estudos e o futuro em segundo plano para tentar melhorar o presente.
João*, de 14 anos, faz parte desta estatística. Ele vende balas nas ruas desde os sete anos. Junto com ele também trabalha o amigo, Marcus*, de 16 anos, que vende doces desde os 14. O motivo que fez com que eles trabalhassem desde tão novos é o mesmo: sobrevivência.
Apesar da pouca idade, o trabalho nas ruas é o que faz a diferença em casa no final do mês, segundo contam os adolescentes, que vivem na comunidade do México 70, em São Vicente, litoral de São Paulo. João, por exemplo, é o irmão mais velho de três filhos e trabalha desde muito novo para ter seu próprio dinheiro e ajudar a família em casa.
Hoje cursando o 9º ano do ensino fundamental no período da manhã, ele ganha as balas que vende e fica com todo o lucro. O adolescente, que é negro, diz que ganha cerca de R$ 100 por dia e que já foi alvo de preconceito enquanto vendia suas balas.
"Às vezes eu venho de tarde [vender as balas], Às vezes de manhã, tanto faz. Mas meu sonho mesmo é ser bombeiro", conta ele ao Terra.
Já Marcus divide o que lucra com dois irmãos mais velhos e uma irmã mais nova. Todos os dias, ele conta, encontra os amigos e pega o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) de São Vicente a Santos, cidade vizinha, para trabalhar. O estudo à noite permite que ele passe todo o dia dedicado à venda das balas.
"Eu trabalho para ajudar minha mãe, comprar minhas coisas também", conta.
Assim como João, Marcus também tem um sonho: trabalhar em uma concessionária de motos e comprar sua própria motocicleta.
Abandono aos estudos
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define o trabalho infantil como aquele que é perigoso e prejudicial para a saúde e desenvolvimento mental, físico, social ou moral das crianças e que interfere em sua escolarização – seja porque as priva desta, seja porque as conduz ao abandono precoce da escola, ou ainda porque as obriga a conciliar a frequência escolar com longas horas de trabalho. O jovem Samuel Randis, hoje com 18 anos, é um exemplo do que o trabalho infantil pode provocar.
"Quando eu era criança, estava com fome e às vezes não tinha nem geladeira em casa para eu abrir e olhar se tinha alguma coisa pra comer", conta ele, que começou a trabalhar nas ruas com a mãe. "Ela ia no BNH [conjunto habitacional], pedia alimentos para a gente levar para casa, aí conheci o bairro Gonzaga e passei a vender bala aqui".
Isso aconteceu quando Samuel tinha cerca de 8 anos. Ele interrompeu os estudos quando estava no 9º ano e agora corre atrás da documentação para voltar à escola e tentar realizar o sonho de fazer faculdade de Música. Hoje, o jovem tenta ganhar dinheiro com sua arte, tocando flauta nas ruas da cidade.
A luta é também contra o preconceito social para conseguir um emprego de carteira assinada, já que a ficha suja afasta as oportunidades.
"Quando eu vendia bala, conheci uns meninos que faziam coisa errada, aí fui para a Avenida Paulista e fui preso roubando lá. Daí fui para a Febem", relembra o jovem, que migrou do regime semiaberto para o fechado após determinação judicial. "Lá eu fiquei quase ano, daí eu pedi perdão para Deus e nunca mais quis roubar. Já vi amigo meu, que começou a roubar, morrer com 14 anos em troca de tiros. Já vi menino de 15 anos falar que já fumava crack, é uma realidade muito triste".
Foi o trabalho precoce que também fez com que outro jovem abandonasse os estudos. Sentado no chão da calçada com as balas que vende, o olhar triste revela a vulnerabilidade social à qual é exposto. Ele, que prefere não se identificar, conta que trabalha desde os 15 anos, idade em que sua mãe morreu. "Com 15 já trabalhava como ajudante de pedreiro, mas estava difícil arrumar trabalho e aí vim vender bala aqui há uns dois anos", conta o rapaz de 18 anos.
Suporte do pai na criação dos cinco irmãos, ele revela que já repetiu de ano na escola duas vezes, por causa da rotina exaustiva de trabalho. O cansaço diário também afasta até mesmo a possibilidade de ele sonhar.
"Eu acho que faculdade ainda é um sonho distante para mim, porque financeiramente as coisas estão difíceis agora. Hoje trabalho 12 horas por dia e parei de estudar. Tem umas pessoas que vê a gente assim trabalhando na rua e humilha, não olha, isso machuca. Mas também tem pessoas de coração bom", desabafa.
Faltam políticas públicas eficazes
A idade mínima para o trabalho no Brasil é de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos. O ministro Evandro Valadão, do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem da Justiça do Trabalho, reforça que o Estado, a família e a sociedade têm como dever, estabelecido na Constituição, assegurar lazer, segurança e educação à criança, ao adolescente e ao jovem.
"O compromisso com nossas crianças é também o compromisso do nosso futuro. O trabalho infantil precoce rouba a infância e o direito das crianças de serem felizes, de sonhar, e isso é cruel. E quem não sonha não tem desejos, o que leva à desesperança e a infelicidade. Além disso, no trabalho infantil a criança trabalha muitas horas por dia, e, na sua totalidade, em um serviço informal", diz.
De acordo com Valadão, o trabalho infantil gera uma tríplice exclusão: da infância, do aprendizado e do futuro econômico e social.
"Ele perpetua a pobreza e reproduz mazelas sociais. E a pandemia trouxe um agravamento nesse cenário da desigualdade econômica no país", acrescenta.
Na avaliação do ministro, faltam políticas públicas eficazes no combate ao problema que assola o Brasil. Um levantamento do Valor Econômico, por exemplo, apontou que o governo Jair Bolsonaro (PL) zerou em 2020 e 2021 repasses de recursos para implementação de ações estratégicas do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI).
"O estado deve promover políticas públicas consistentes que propiciem educação básica de qualidade à população mais vulnerável, assim como ações que garantam a essas famílias condições de manter suas crianças nas escolas", destaca Valadão.
Violação de direitos humanos
A coordenadora nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância) do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ana Maria Villa Real, ressalta que é preciso sanar a vulnerabilidade econômica para que a criança tenha uma infância digna e possa se desenvolver integralmente. Em sua avaliação, o trabalho infantil é uma grave violação dos direitos humanos e nenhuma forma de trabalho infantil deve ser normalizada.
"É preciso proteger socialmente essas famílias. Contudo, as políticas sociais precisam ser devidamente contextualizadas e atender às reais necessidades da família. O Estado precisa concretizar o princípio da prioridade absoluta e fazer valer os direitos de crianças e adolescentes. O trabalho infantil deixa danos irreversíveis, tanto emocionais quanto físicos", argumenta.
A procuradora destaca que são direitos da criança e do adolescente estudar, brincar, socializar com outras pessoas, ter acesso à educação e à cultura. E que, além disso, todas as infâncias devem ser iguais em direitos, de acordo com a Constituição Federal e o ECA.
"Para criança negra, para criança pobre, a sociedade vê o caminho do trabalho infantil como se ela só tivesse dois caminhos: ou vai trabalhar ou vai roubar. Quando, na verdade, ela tem o caminho que é garantido pela Constituição Federal: o caminho dos direitos fundamentais. Essas crianças que estão trabalhando de forma precoce deveriam estar na escola, no ensino integral, com educação de qualidade, porque o que as leva ao trabalho infantil é a vulnerabilidade socioeconômica. E nas ruas elas estão expostas à violência, ao tráfico de drogas, à exploração sexual, dentre muitas outras violações. Todos nós temos que batalhar por infânciais iguais", destaca.
*Nome fictício para preservar a identidade dos entrevistados menores de idade.
**Com coordenação de Aline Küller e edição de Estela Marques