Três morrem por hora no trânsito no Brasil; veja quem corre mais risco
Apesar de uma diminuição importante, o país não atingiu a meta de reduzir em 50% os óbitos relacionados a acidentes entre 2011 e 2020. Conheça o perfil das vítimas e o que pode ser feito para melhorar a segurança em ruas, avenidas e estradas.
Localizado na Zona Oeste da cidade, o Instituto de Ortopedia e Traumatologia (IOT) do Hospital das Clínicas de São Paulo é responsável por atender os casos mais graves de acidentes que ocorrem nas vias públicas da capital paulista.
Para lá, são enviadas apenas aquelas vítimas que precisam de cirurgias muito complexas, relacionadas a fraturas expostas, traumatismos cranianos ou amputações.
"Mesmo assim, recebemos entre dois e três pacientes nesse nível de gravidade todos os dias", relata a fisiatra Júlia Greve, que trabalha no IOT e é professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Esse é apenas um pequeno retrato de um sério problema de saúde pública que afeta todo o país: os acidentes de trânsito estão entre os eventos que mais tiram anos de vida das pessoas.
Falamos de um problema que mata 89 brasileiros todos os dias, três a cada hora.
De acordo com o Instituto para a Avaliação de Métricas em Saúde da Universidade Washington, nos Estados Unidos, batidas e atropelamentos são a oitava principal causa de morte no país. Se subtrairmos as doenças desse ranking, os acidentes figuram em segundo lugar, atrás apenas da violência interpessoal.
Nas últimas duas décadas, o número de vítimas do trânsito no país vem caindo aos poucos: entre 2011 e 2020, essa taxa foi reduzida em 30%. Mas isso não foi suficiente para que o Brasil cumprisse a meta de cortar em 50% esse tipo de fatalidade, como estipulado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas (ONU).
Um levantamento feito pela BBC News Brasil a partir do DataSUS — o banco de dados públicos do Sistema Único de Saúde — revela que existe um perfil de quem mais morreu nas ruas, avenidas e estradas nos últimos anos.
"Essas mortes costumam seguir um padrão claro: em sua maioria são motociclistas, jovens e indivíduos do sexo masculino", analisa José Aurelio Ramalho, diretor presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária.
Uma febre nacional
De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possuía em 2006 um total de 45 milhões de veículos de todos os tipos — destes, 27 milhões (61% do total) eram carros e 9 milhões (20%) eram motocicletas.
Em 2020, esses números mais que dobraram. A frota nacional passou a contar com 107 milhões de veículos, com 58 milhões (53%) de carros e 28 milhões (26%) de motos.
Esses números revelam que a participação relativa dos carros caiu oito pontos percentuais, enquanto das motocicletas cresceu seis. Nesses 14 anos, o tamanho da frota de duas rodas triplicou.
"A moto é barata, econômica e rápida. Em tempos recentes, era mais em conta para um indivíduo comprar um veículo desses e pagar as prestações mensais do que andar de ônibus", compara Greve.
"Para completar, nesses últimos anos vimos a explosão dos serviços de entrega por aplicativo, em que a própria condição de trabalho, onde a velocidade e a rapidez são fatores importantes, favorece a ocorrência de acidentes", lembra o médico epidemiologista Roberto Marini Ladeira, que em 2017 publicou uma pesquisa sobre o impacto dos acidentes de trânsito na qualidade e na expectativa de vida dos brasileiros.
"E a grande questão é que, quando você está numa moto e cai ou colide em alta velocidade, o para-choque costuma ser o próprio rosto do condutor", complementa Ramalho.
O aumento do número de motociclistas e a própria situação de vulnerabilidade desse tipo de direção são fatores que ajudam a explicar por que eles se tornaram as principais vítimas do trânsito no Brasil nas últimas décadas.
Em 1996, foram registradas 725 mortes de motociclistas, o que representa 2% do total de óbitos ocorridos em vias públicas naquele ano.
Essa taxa cresceu de forma contínua desde então: em 2020, 11.583 motociclistas morreram no Brasil, que passaram a representar 36% das vítimas do trânsito — um crescimento de 18 vezes na proporção num intervalo de 24 anos.
Nesse mesmo período, a proporção de mortes entre ocupantes de carros dobrou: eles representavam 10% das ocorrências fatais em 1996 (com 3,7 mil óbitos) e agora são 20% (6,7 mil).
A mudança positiva aconteceu entre os pedestres. Há duas décadas e meia, foram notificadas 12,9 mil mortes (36% do total) neste grupo. Essa taxa foi se reduzindo aos poucos e, mais recentemente, foram 5,1 mil óbitos (15%) entre quem anda a pé.
O epidemiologista Ladeira levanta algumas possíveis explicações para esse fenômeno. "O próprio adensamento de veículos no espaço urbano, pelo aumento da frota observada nesses últimos anos, diminui a velocidade média de carros e motos. E isso já reduz a probabilidade ou a gravidade dos atropelamentos."
"Também tivemos várias outras intervenções que contribuíram, como a melhora da sinalização, o aumento de tempo dos semáforos para pedestres, a instalação de passarelas…", lista o médico.
Detectado o problema e suas principais vítimas, o que pode ser feito para melhorar a situação do trânsito brasileiro?
Legislação de primeira linha
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil entendem que a legislação de trânsito em voga no país é uma das mais avançadas e completas do mundo.
"O Brasil tem até o costume de fazer a lei da lei. Por exemplo: o Código de Trânsito Brasileiro já estipula a proibição de dirigir alcoolizado, mas há alguns anos tivemos a aprovação da Lei Seca, que fala justamente sobre essa mesma questão", analisa Ramalho.
Num relatório sobre segurança viária publicado em 2018 pela OMS, o Brasil é encarado como exemplo positivo em três aspectos principais: a política de zero tolerância de álcool e direção, o uso de cinto de segurança nos carros e a obrigação de botar o capacete entre os usuários de motocicletas.
O país, porém, peca em outros dois quesitos fundamentais analisados pela instituição: o limite de velocidade e a adoção de cadeirinhas para menores de 10 anos no banco traseiro dos automóveis.
A OMS estipula que a velocidade dos veículos deveria chegar a, no máximo, 50 km/h em perímetros urbanos. "Pedestres que são atropelados por um carro a 65 km/h tem um risco cinco vezes maior de morrer em comparação com aqueles que são atingidos a 50 km/h", calcula a entidade.
Já a cadeirinha é tida como peça essencial de segurança para as crianças, pois os cintos de segurança não são capazes de segurá-las e mantê-las mais protegidas durante uma colisão.
Ramalho aponta que, passados quatro anos desde a publicação deste relatório da OMS, o Brasil avançou um pouco nesses dois pontos que deixavam a desejar — a cadeirinha, por exemplo, ganhou mais atenção entre pais, mães e autoridades públicas.
"O que falta, portanto, é uma fiscalização eficiente e constante", acredita Greve.
"Nós, brasileiros, temos essa crença de que existe uma 'indústria da multa', como se as prefeituras só autuassem os condutores porque estão precisando de dinheiro", complementa a médica.
"E nós deveríamos encarar a multa como o alerta para um acidente que não aconteceu. Pois naquele momento em que eu estava dirigindo em alta velocidade, falando no celular, fazendo uma manobra fora da regra ou conduzindo embriagado eu poderia ter morrido ou matado alguém", concorda Ramalho.
Uma questão de educação
Quem acompanha essa área também entende que a violência no trânsito brasileiro não será resolvida de vez apenas com uma fiscalização mais dura.
"Do jeito que é feita a formação do condutor no Brasil, precisaríamos colocar um agente de trânsito dentro de cada carro", brinca Ramalho.
O diretor presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária critica a forma como se obtém uma carteira de habilitação no país.
"Geralmente, a primeira vez que ouvimos falar nas leis de trânsito é quando chegamos aos 18 anos, ou só se tivermos o desejo de virar motorista."
"E as autoescolas praticamente 'adestram' os alunos para passar numa prova, e não para entender a responsabilidade que eles assumem quando conduzem um veículo motorizado", continua o especialista.
A educação, portanto, seria a principal ferramenta para mudar a mentalidade de todos que circulam por ruas, avenidas e estradas — até porque a maioria absoluta dos acidentes está relacionada à imprudência, imperícia ou negligência de uma ou mais pessoas.
"Calculamos que 90% dos acidentes de trânsito sejam causados por erros humanos", estipula Greve.
Melhora da estrutura (e das estatísticas)
Por fim, os pesquisadores apontam que é possível realizar ajustes nas vias do país, com melhora da sinalização e das condições do asfalto.
"As rodovias precisam ser pensadas de modo que, se um ser humano falhar, isso não representará a perda de uma ou mais vidas", diz Ramalho.
"E isso muitas vezes representa um investimento pequeno, como colocar linhas de bordo que fazem barulho nas rodas caso o motorista saia da pista sem perceber, ou instalar absorvedores de impacto em locais com maior risco de colisão", exemplifica.
Ladeira também destaca que é necessário aprimorar a qualidade das estatísticas disponíveis sobre os acometidos por acidentes de trânsito no Brasil.
"Em 1996, 48% das mortes não tinham especificação da vítima: não sabemos se eram pedestres, ciclistas, ocupantes de automóvel… Em 2020, essa taxa caiu para 20%, mas ainda é muito alta", compara.
Nesse sentido, há uma iniciativa em curso no país que pretende entender muito mais a fundo essa realidade: o Projeto Trauma (sigla para Tecnologia de Rápido Acesso Unificado para Mitigação da Acidentalidade) nasceu no Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), que envolve o Ministério da Saúde e seis grandes hospitais privados localizados nas cidades de São Paulo e Porto Alegre.
O objetivo do Projeto Trauma é unificar todos os bancos de dados disponíveis que trazem detalhes sobre lesões relacionadas à violência ou aos acidentes de trânsito — aqui entram informações obtidas por policiais, bombeiros, socorristas, profissionais de saúde…
"Esse enorme volume de dados permitirá que as autoridades analisem o que está acontecendo numa determinada região e busquem soluções específicas e personalizadas", explica Bruno Zocca, coordenador do projeto, que trabalha no Hospital Israelita Albert Einstein, a instituição que lidera a iniciativa.
"Se for detectado um alto volume de atropelamentos numa rua, por exemplo, será possível instalar lombadas ou semáforos para trazer mais segurança aos transeuntes", conta.
Atualmente, o Projeto Trauma acontece em cinco locais: Distrito Federal, Amazonas, Paraíba, Espírito Santo e Rio Grande do Sul.
"Terminaremos essa primeira rodada de implementação em 2023 e pretendemos expandir a ferramenta para todo o país em breve", informa Zola.
A BBC News Brasil entrou em contato com o Ministério da Saúde e com o Ministério da Infraestrutura (responsável pela Secretaria Nacional de Trânsito) para obter mais informações, mas não foram enviadas respostas até o fechamento desta reportagem.