"Vi fantasma durante muito tempo", diz sniper brasileiro
Oficial do Batalhão de Operações Especiais da Bahia, o BOPE, revela com exclusividade ao Terra como é ser um atirador de precisão
Estou há 10 anos no BOPE [Batalhão de Operações Especiais]. Como atirador de precisão, estou aqui desde 2019, há três anos. Eu sempre fui um atirador acima da média, então uma coisa vai levando à outra. É meio natural, o processo vai conduzindo para isso.
Ser sniper é muito bonito de ver, mas dá trabalho e, às vezes, é chato pra caramba. A rotina é muito chata, todo dia tem que fazer a mesma coisa. O tiro de precisão se resume em constância. Não posso chegar um dia e dar dez tiros numa mosca e no outro dia chegar e botar um fora. Tem que ter todo dia dez tiros ali.
É muito treino para fazer tudo do mesmo jeito: deita do mesmo jeito, aciona o gatilho do mesmo jeito, respira do mesmo jeito. É muito metódico e o processo é chato e demorado. A pessoa não se forma no curso e diz 'ah, sou sniper'. Não. Se forma e vai ter a vivência operacional, passar as situações, estudar as ocorrências dos outros.
Temos, comigo, dez atiradores formados. Todos aqui [em Salvador], mas a nossa competência é na Bahia inteira. Inclusive, a gente já foi cumprir missões fora do estado, em parceria com outras co-irmãs que solicitam apoio – de Sergipe, Alagoas, a gente está sempre em contato com eles.
O sniper militar que vai pra Guerra, vai com objetivo de neutralizar alvos específicos e estratégicos. Neutralizar é matar. Por exemplo, uma guerra que está acontecendo, o chefe de uma força acha que vai ser bom para o andamento do conflito que certo oficial ou certo político seja neutralizado – lembrando que a gente está numa situação de guerra. O cara vai com o objetivo específico de matar. Necessariamente, ele não está oferecendo uma ameaça iminente.
Diferente do atirador policial de precisão, que é o nosso caso aqui do batalhão, a gente tem duas finalidades, como toda atividade policial: preservar a vida e aplicar a lei, nessa ordem de prioridade. Eu não vou para uma missão com o intuito de matar alguém.
Se construiu um estereótipo de que o sniper é um assassino, que está ali para matar. Noventa por cento da nossa atribuição é observar, munir de informação para que a vida seja preservada e a negociação dê certo. A outra é proteger nosso efetivo e a vítima. O um por cento vai ser neutralizar. A gente vai atirar uma vez para matar, mas com a intenção de proteger.
Não é para qualquer um
Para chegar a ser um sniper, um atirador policial de precisão, a primeira coisa que a gente precisa é ser de uma unidade de operações especiais e ter vivência operacional como grupo tático. Tenho que estar treinando outras atividades dentro do batalhão, para eu entender como é que funciona um cenário de crise, entender os riscos, ser testado.
A partir daí é avaliado se tenho o perfil para ser um atirador de precisão. Qual seria esse perfil? Primeiro, tem que ser tranquilo. Tem que ter capacidade de pensar durante uma crise, não se emocionar com o que está acontecendo. Você está ali com atribuição de proteger sua equipe, um refém, mas com atribuição também de matar alguém.
Matar uma pessoa não é uma coisa simples, do ponto de vista psicológico. Saber que tem que atirar em alguém é complicado, seja esse cara um sequestrador com arma e que oferece risco para sua equipe ou para aquele refém; seja, por exemplo, um cara que está em crise e pegou a esposa ou um filho e oferece ameaça àquela pessoa ali naquele momento. Você não pode se dar ao luxo de analisar aquela situação emocionalmente.
"Ser sniper é muito bonito de ver, mas dá trabalho e, às vezes, é chato pra caramba. A rotina é muito chata, todo dia tem que fazer a mesma coisa"
Tem que ser discreto, não pode ser uma pessoa ansiosa de maneira nenhuma. Tem que ser pessoa com a vida familiar bem estruturada, porque isso influencia muito; livre de vícios; boa capacidade de leitura de cenário e preparo físico.
Dentro das qualificações que você tem que ter, há também: ser uma pessoa capaz de agir sob pressão, ser extremamente disciplinado, entender que você está ali para cumprir uma missão e atender a ordens determinadas pelo gerente da crise, que está ali tentando negociar e fazer com que a ocorrência termine na negociação – porque o objetivo de toda unidade que trabalha com refém é demolir o cara da intenção de praticar o crime através da negociação.
Então, você tem que estar focado nas ordens e ter capacidade de observação muito grande. No momento que eu estou ali numa ocorrência de crise observando, eu estou lendo os sinais psicológicos que o sequestrador está dando: comportamento, batimentos cardíacos; se ele está com características de rendição, se está dentro da realidade, se ele está buscando fuga. Tenho que saber interpretar esses sinais para passar para o gerente da crise.
Risco de morte iminente
A depender da missão, tem que carregar muito equipamento. Seu fuzil é maior que o de todo mundo, seu equipamento pesa mais que o de todo mundo. Meu equipamento completo, entre fuzil, munição, rádio, luneta e outras coisas, dá mais de 30 quilos.
A mesma rotina que te prepara para ter essa frieza pode te levar para um caminho de você ficar até meio perturbado. Se eu for fazer uma contagem rápida, já dispararam pelo menos uns vinte ou trinta tiros contra mim em ocorrências diversas. Cada disparo daquele traz um pouco de trauma. Para usar isso a seu favor, o ideal é que você tenha um acompanhamento psicológico, senão você fica maluco. É muita coisa ruim que a gente vê durante a vida profissional.
"A ideia de que cada ato seu vai ser julgado e você vai ter que prestar contas é o que ainda me traz um pouco de conforto"
O sniper, por estar numa posição privilegiada, consegue ver as coisas com mais detalhes. Durante a ocorrência, consegue ver coisas que ninguém mais viu e isso vai somatizando de forma inconsciente. Em um momento a conta chega, a panela explode. Se não tiver um acompanhamento psicológico para tratar, acaba enlouquecendo.
Nenhum ser humano é preparado para enfrentar a morte de forma natural. A partir do momento que você começa a achar que é natural o risco de morrer e não se preocupa mais com isso, é porque você já está entrando num estágio de doença mental. A situação já não é boa.
O sentimento após atingir alguém
Já atirei em alguém, e já atingi. O antes e durante a ocorrência, você não deve e não tem tempo de ficar refletindo. Não posso atuar baseado em emoção, então, até o momento do disparo, quando a ocorrência se resolve e é dado providência – vai para hospital quem tem que ir pra hospital, vai para delegacia quem tem que ir pra delegacia –, você está ali meio que numa bolha, só está pensando na parte técnica, está fazendo observação e está tentando ler o momento correto que deve atirar depois que a ordem é dada. O pós… Se você não sente nada é porque alguma coisa está errada.
Matar uma pessoa não é uma coisa simples. Se eu te disser que na primeira vez eu me lembro como me senti… Eu lembro que eu vi fantasmas durante muito tempo. Hoje, o que eu trabalho na minha mente é que eu não matei uma pessoa; eu salvei alguém. A partir do momento que eu precisei atirar em alguém foi porque o outro, que não tinha nada a ver com a história, estava em risco. Esse é o trabalho mental que eu faço e a gente tem que fazer.
Atirar numa pessoa sem ter esse motivo, salvar outra, se eu faço isso é porque já estou num estágio de doença. Você pensar numa pessoa que tem filho, tem família, toda uma vida pela frente e você matou aquela pessoa ali por nada e não sentir nada… Então você já está doente.
"Tem um ditado que a gente fala que é o seguinte: 'De onde você não vê virá um barulho que você não ouvirá'"
Hoje o trabalho que eu faço é pensar nisso: não estou matando alguém porque eu gosto de matar alguém ou porque eu me sinto bem com isso. Eu estou atirando nessa pessoa porque ela ia atirar em outra. Tem que pensar em salvar, fica mais fácil de digerir. Mas não é fácil; não é sair para comprar pão, não.
Todo dia sempre igual
A gente trabalha para não errar. Pode acontecer erros, porque uma crise é um cenário muito complexo. Tem que entender de balística, de estruturas, saber se o tiro vai passar por alguma estrutura; tem que ter uma leitura de cenário diferenciada. Gosto de dizer que a gente tem que entender tudo de muita coisa. A função do sniper, ao mesmo tempo que é bonita, é complexa.
O atirador já chega de manhã, a primeira coisa que ele faz é aferir a arma dele, se está com a mesma consistência do serviço passado, e deixa o equipamento pronto para atender qualquer ocorrência. Se for acionado, pega o equipamento, que vai desde um radiocomunicador até uma estação meteorológica portátil, para fazer a leitura do tempo naquele ambiente que a gente vai operar – tenho que saber como está o tempo naquele local para saber como vou ajustar minha arma.
O atirador de precisão nesse cenário não vai só para o local, mas já fica separado do grupo que está negociando e se preparando para uma entrada, se for necessário. Ele procura um ponto estratégico onde possa ter uma visão melhor do cenário, para que possa passar para o gerente da crise.
"Apertar o gatilho é a parte mais simples. Mas estar pronto para responder à consequência daquele ato é complicado. Não é fácil."
Vamos dizer que 80% de tudo o que a gente faz numa ocorrência de crise é observar, e acho que até mais que isso. De todas as ocorrências que a gente já participou, 90% ou mais foi só observação. Uma ou duas a gente precisou atirar.
O principal papel do atirador numa ocorrência é munir de informações o grupo que está na zona quente da crise. A gente trabalha dentro de um triângulo: observar, proteger e neutralizar. A gente vai para observar primeiramente, proteger quem está ali no cenário e por último neutralizar o perpetrador.
Não iria para guerra
Eu não sei se eu recusaria a oportunidade de ir, não, mas não vou pedir. Acredito muito que uma guerra é uma coisa que só traz prejuízo para todo mundo. No final das contas, só a população vai sofrer. Eu jamais iria para uma guerra dos outros. Não vou porque não tem sentido. Uma guerra aqui no Brasil, que estivesse ameaçando nossa soberania, meu estilo de vida, minha liberdade, meu país, o lugar onde eu vivi, eu ficaria. Jamais iria correr.
Mas para eu sair daqui e ir lutar uma guerra de outro… Eu não iria nunca. Mas nas operações dos outros estados eu participo porque estão ameaçando meus irmãos e a ocorrência que tem em Sergipe, Alagoas, Minas Gerais, Piauí, Tocantins ou Goiás ameaça a gente. Estamos cercados por um cordão de estados que toda vez que acontece uma ocorrência lá, a tendência é que eles migrem para cá. Então meio que a guerra deles é minha guerra também. Só estou antecipando. Antes de eles chegarem aqui, eu vou atrás deles.
Qualquer pessoa pode atirar?
Apertar o gatilho é a parte mais simples. Qualquer criança consegue apertar o gatilho. Mas você estar pronto para responder psicologicamente à consequência daquele ato é complicado. Qualquer pessoa consegue? Eu creio que não.
O sniper está atirando em alguém que nem vai ver que você atirou nele. Tem um ditado que a gente fala que é o seguinte: "De onde você não vê virá um barulho que você não ouvirá", porque a bala é mais rápida que o som. Se o cara for atingido por um disparo de um sniper, ele não vai ouvir nem saber o que aconteceu.
"Já dispararam pelo menos uns vinte ou trinta tiros contra mim. Cada disparo daquele traz um pouco de trauma"
Acredito que pra estar preparado para fazer isso, atirar em alguém que não tem nenhuma relação emocional com você, atirar em alguém… Não é simples. Não é qualquer um que consegue, não, e lidar com as consequências de matar alguém não é fácil. Se a pessoa não tiver preparo psicológico anterior àquilo, vai sofrer por muito tempo. Vai ver os fantasmas que eu falei… Ficar vendo o rosto da pessoa… Porque aquilo fica marcado em você. Hoje eu nem lembro mais, mas já internalizei que o que eu fiz foi pra proteger alguém. No início você não carrega consigo essa ideia.
Uma fé: nada acaba aqui
Assim, sou Cristão, mas sem religião. A espiritualidade para mim, é o meu travesseiro, meu conforto diário. Eu tento viver com a certeza de que as coisas não acabam aqui, não, porque, se eu imaginar que os caras que estavam tentando arrancar a cabeça do outro com facão numa rebelião não vão ter consequência nenhuma quando for para o outro plano, acho que a vida perde o sentido.
Pra mim, é mais difícil acreditar que acaba tudo aqui quando a gente morre do que acreditar que existe alguma coisa maior por trás disso tudo. A espiritualidade é reconfortante. A ideia de que cada ato seu vai ser julgado e você vai ter que prestar contas é o que ainda me traz um pouco de conforto. Quem trabalha nessa área sabe que está puxado, é muita ruindade no mundo, muita maldade. Tem muita gente ruim nesse mundo. Não é possível que acabe aqui.
O relato foi concedido à jornalista Estela Marques, na última terça-feira, 15, na sede do batalhão. A identidade do oficial foi preservada por questão de segurança.