Violência extrema da facção responsável por matança em Manaus tem origem em gangues de bairros
Esquartejamentos, vídeos de extrema violência, hegemonia do tráfico e muita disposição para combater a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC).
É dessa forma que pesquisadores entrevistados pela BBC Brasil definem a Família do Norte (FDN), grupo criminoso que ganhou destaque no noticiário nacional após ser apontado como responsável pela morte de 56 detentos que estavam em celas destinadas a membros do PCC no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus.
A matança, ocorrida no último final de semana, foi a maior em cadeias no país desde o massacre do Carandiru, em 1992, quando 111 detentos foram executados por policiais. A crise obrigou o governo Temer a lançar um plano emergencial para conter a violência no sistema penitenciário.
De acordo com os pesquisadores, a facção foi criada em 2006 para conter a tentativa do PCC de monopolizar o comércio de drogas no Norte do país, importante área de escoamento de cocaína para a Europa.
"Em 2016, no cenário de ruptura entre o CV e o PCC, o que a gente viu foi uma tensão crescente e uma declaração de guerra. Nesse tabuleiro, o Comando Vermelho se aliou com a Família do Norte e formou uma nova configuração do crime organizado na região", diz a pesquisadora e professora da UFABC Camila Nunes Dias, que estuda facções criminosas.
O sociólogo Ítalo Lima, que fez um mestrado sobre agentes de segurança penitenciária do Amazonas e conhece a fundo a história da facção, afirma que a Família do Norte se mostra muito forte, mas ainda está em processo de consolidação.
Segundo ele, o histórico de violência, exibido em vídeos divulgados pelas redes sociais, é uma herança das gangues manauaras surgidas na década de 1980, chamadas de "galeras".
Nos anos 2000, a atuação dessas gangues ganhou visibilidade após jovens que negavam pagar uma espécie de pedágio serem assassinados.
As "galeras" exigiam o pagamento de R$ 2 ou R$ 5 para permitir a circulação de pedestres em algumas regiões. Quem não desse o dinheiro era morto.
A polícia chegou a fazer uma operação antigalera. Prendeu 27 jovens em menos de dois dias e identificou 738, mas não adiantou nada", disse o pesquisador.
O "galeroso", como é chamado o criminoso pobre de Manaus, é conhecido por fazer pequenos furtos e matar suas vítimas de forma covarde e violenta, inclusive com armas brancas. Ao serem presos, esses indivíduos passam a formar a base da FDN.
Um outro efeito disso, afirmou Lima, foi o aumento do preconceito contra os jovens pobres em geral, que passaram a ser rotulados como "galerosos".
Narcotráfico
O crescimento do mercado de drogas em Manaus fortaleceu a Família do Norte e a fez buscar novas formas de organização e poder.
Os integrantes da facção perceberam isso em 2006, quando os presos mais perigosos de Manaus foram transferidos para presídios federais, onde conheceram as lideranças do PCC e do Comando Vermelho.
Esses membros voltaram para a capital do Amazonas com muitas ideias impedir o avanço do PCC.
Além disso, o narcotráfico passou a ser visto como uma grande fonte de renda.
"A atuação da Família do Norte é muito forte na Tríplice Fronteira. Ela atua na travessia da cocaína do Peru para o Brasil e faz a distribuição da droga em parte do território brasileiro", diz a pesquisadora Camila Nunes Dias.
A facção também começou a exigir que os pequenos traficantes que vendiam drogas há décadas na cidade virassem seus soldados - aqueles que negaram o acordo e insistiram no comércio independente foram mortos.
Um dos assassinatos mais simbólicos, segundo o pesquisador, foi o de um personagem conhecido como Bebeto da 14. Liderança do narcotráfico na região, ele tinha contato com policiais, era padrinho de escola de samba e representava a velha ordem familiar do tráfico em Manaus.
Bebeto da 14 foi morto, esquartejado e seu corpo só foi encontrado dias depois em uma mala no rio Negro. Um sobrinho seu também foi morto brutalmente tempos depois - foram ao menos 20 tiros.
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Segundo o pesquisador, em 2013 começaram a surgir os primeiros estatutos da facção, com uma descrição dos direitos e deveres que deveriam ser seguidos por todos os seus integrantes.
Além disso, pichações começaram a surgir em diversos locais. Uma das intenções era deixar claro quem eram seus aliados por meio das inscrições "FDN - CV".
Na mesma época, os funks conhecidos como "proibidões" começaram a se popularizar em Manaus. As letras exaltavam o FDN, falavam da união com o Comando Vermelho e exaltava os assassinatos brutais cometidos contra seus desafetos.
Uma sequência de crimes ocorreu para eliminar pistoleiros e narcotraficantes que dominavam a região. Alguns desses assassinatos eram "assinados" pela facção com papelões colocados ao lado dos corpos com a inscrição "FDN".
Para o pesquisador, a intenção era demonstrar que o grupo estava no poder.
Os mandantes desses crimes e os próprios assassinos se tornaram algumas das lideranças da FDN.
A facção ainda conseguiu a simpatia de alguns pistoleiros para que eles atuassem como seu braço armado. As brigas de galera perderam espaço, dando lugar às brigas entre os narcotraficantes.
A polícia relatava que os membros da facção esquartejavam as pessoas vivas, com música alta para abafar os gritos. As cenas de tortura também são relatadas nas músicas.
Arrecadação
Além do narcotráfico, o grupo criminoso começou a se organizar e, assim como o PCC, procurar outras fontes de renda.
Documentos obtidos pela polícia revelam a exigência do pagamento mensal de R$ 100 por membro da facção.
O dinheiro, segundo o pesquisador Ítalo Lima, é usado para bancar assistência jurídica e para definir a prioridades. Quem paga mensalidade tem prioridade no recebimento de drogas, armas e outras mercadorias que abastecem o crime organizado.
A chamada Operação A Muralha, da Polícia Federal, encontrou em 2015 um software em Manaus com o cadastro de 200 mil pessoas supostamente ligadas à facção - cada um dos inscritos tinha uma senha no sistema.
Dez anos após sua criação, a Família do Norte hoje tem a certeza de que está com domínio pleno da maior parte dos presídios do Norte.
Lideranças do PCC na região passaram a ser transferidos para prisões do interior do Pará e do Amazonas em busca do conhecido "seguro", celas onde estariam protegidos.
Presídios de Roraima, Pará e Rondônia também são marcados pela presença majoritária da FDN.
"O massacre do domingo foi uma demonstração de força não só nas prisões, mas também fora. Demonstrando que não há mais espaço para a concorrência", definiu Ítalo Lima.