'Vivemos na realidade do medo', diz moradora sobre assédio a mulheres em favela do Rio
Sou nascida e criada na favela da Maré, na zona norte do Rio. A quantidade de assédio que sofremos na favela pode parecer surpreendente aos olhos dos outros, mas para quem vive no dia a dia, não é.
Já ouvi cantadas grosseiras de todo tipo de homem enquanto voltava pra casa. Mesmo ignorando todas as vezes, não é fácil lidar com isso. A gente aprende a lei da convivência, vivendo mesmo.
Como boa parte das mulheres, penso em reagir, mas acabo seguindo em frente. Não tenho alternativa. Independente do poder armado, o morador sabe que reagir a qualquer coisa desse tipo é burrice.
Foi isso que fiz no dia em que um militar mexeu comigo. Ele queria que eu respondesse "bom dia, soldado" após ouvir o que ele disse. Cheguei a tremer. Quando aconteceu a ocupação militar na Maré, houve muitas reclamações de abuso de autoridade.
Mas quanto mais a gente se acostuma com a realidade do medo que nos é colocada, pior ela fica. Afinal, se fosse fácil mudar de uma hora para outra, as coisas seriam diferentes depois dos protestos realizados por mulheres em vários Estados.
A limitação de um favelado por ser favelado começa na falta de direitos. Faltam os direitos que em teoria até temos, mas não podemos usar e, os que nunca foram oferecidos.
A criação que recebi dos meus pais foi quase a mesma que minhas vizinhas receberam. O tempo livre era só para brincar no beco. Pulava elástico, corria pique-esconde, alerta cor, bola de gude e outros. Nossas mães acompanhavam a gente até chegar à escola, que ficava perto de casa.
Mesmo com a vida parecida com a minha, algumas amigas engravidaram. E no lugar de estudos e trabalho, formar uma família passou a ser prioridade. Isso continua sendo comum na vida de jovens mulheres moradoras de favelas.
A independência e a maternidade precoce estão ligadas. Quando o futuro não é focado em trabalho ou estudo, a escolha de viver pela tradição é feita por si só.
Independente do motivo, acho que ter um filho antes dos 18 anos não é um sonho.
Mas nós sofremos pressão de qualquer maneira. Se engravidou, tem que se juntar com o namorado e buscar formas de sustento. Se quer estudar, vai ter que trabalhar ao mesmo tempo e ralar muito pra conseguir uma bolsa na faculdade.
E quando se formar, vai chegar do trabalho debaixo de sol, chuva ou tiroteio.
A maior característica de uma mulher cria da favela é ser lutadora. Por vencer o preconceito, trabalhar os sentimentos e o que enfrenta no dia a dia. Temos que lutar até para sermos identificadas.
As pessoas esperam de nós alguém de pouco estudo, pobre e ignorante intelectualmente. É muito fácil dizer o que todo mundo diz. Só parece difícil lembrar que os nossos espaços receberam pessoas de todos os Estados, e a diversidade sempre existiu.
Lembro de uma das minhas primeiras noites num luau na praia da zona sul. Fui com um amigo, afinal andar sozinha por aí a noite em um lugar que você mal conhece não traz segurança.
Depois de conhecer uma galera e bater um papo, me perguntam de onde eu era. "Da Favela da Maré", respondo. Um garoto diz: "Não acredito. Você, desse jeito, é da favela? Não parece".
Depois de não entender por que ele dizia aquilo, fiquei tentando fazer o cara entender, mesmo surpresa com a situação.
Eu sou branca, magra e tenho cabelos lisos. Pensei: "Será que se eu disser que tenho sangue nordestino e favelado vai provar quem sou?"
Chateada com isso, me afastei um pouco do grupo. Mesmo assim, um garoto que estava na roda me ajudou a carregar um amigo bêbado. Ele foi até a Maré só para isso, apesar de nunca ter entrado.
Se isso acontecesse anos atrás, eu não teria me assumido como favelada na frente de todo mundo. Eu tinha medo de me misturar com outras meninas da favela na adolescência porque somos estereotipadas.
Andar de short curto é ser vagabunda, e rebolar até o chão é dizer que está na pista. Mentira! Tem homens que só precisam de uma oportunidade para fazer o que sempre quiseram fazer ─ independente de a mulher tomar qualquer atitude.
A revolução de mulheres contra o assédio que se vê nas ruas é um grito guardado dentro do peito há muito tempo. Seja mulher da favela ou do asfalto, sinto que ainda falta a oportunidade de demonstrar essa dor do jeito certo.
*Thaís Cavalcante é moradora da Favela da Maré e coordenadora do jornal comunitário "O Cidadão"