Volta às aulas: escolas enfrentam abandono de crianças que ainda não aprenderam a ler, indica estudo sobre educação na pandemia
Vacinação dessa faixa etária pode ajudar a trazê-la de volta à escola, indica pesquisa da FGV Social; tempo de estudos de alunos de baixa renda caiu à metade do que era há 15 anos.
Crianças na fase de alfabetização (5 a 9 anos) e crianças mais pobres estão entre as mais afetadas pelas perdas de tempo de ensino ocorridas durante a pandemia, aponta um novo estudo recém-publicado pela FGV Social, que levanta a preocupação com "sequelas de longo prazo bastante fortes" nas futuras gerações.
A partir de dados do IBGE (das pesquisas Pnad Covid e Pnad Contínua trimestral), os pesquisadores Marcelo Neri e Manuel Camillo Osorio observaram que, entre as crianças de 5 a 9 anos, houve o maior aumento de evasão escolar, ou seja, de crianças que deixaram de ser matriculadas na rede de ensino - fazendo o Brasil retroceder mais de uma década nesse indicador.
É nessa faixa etária que as crianças estão finalizando a educação infantil e cursando os primeiros anos do ensino fundamental - portanto, passando pelo período crítico da alfabetização.
A evasão, que antes da pandemia (até o último trimestre de 2019) era de 1,41% entre as crianças de 5 a 9 anos, subiu para 5,51% no último trimestre de 2020.
Quase um ano depois, no terceiro trimestre de 2021, quando muitas escolas já estavam ao menos parcialmente abertas, mesmo assim a evasão se manteve em patamares bem acima do nível pré-pandemia, em 4,25%.
"Os mais novos saíram mais da escola e retornaram menos aos bancos escolares", adverte Neri à BBC News Brasil.
Na fase de alfabetização, a presença próxima do professor costuma ser particularmente importante. Além disso, as crianças dessa faixa etária são as mais afetadas pela pobreza e pela desconectividade no Brasil, aponta o pesquisador - e esses fatores podem ajudar a explicar o distanciamento da escola no momento em que o ensino migrou para o ambiente remoto.
Para Marcelo Neri, que é diretor do FGV Social, especialista em mensuração de desigualdades e ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, o fato de tantas crianças dessa idade terem saído da escola e muitas não terem voltado ainda reforça a importância de se vacinar essa faixa etária.
Ter os filhos vacinados pode dar segurança para os pais voltarem a matriculá-los e para favorecer a recuperação escolar das crianças mais vulneráveis e que mais perderam aulas e estímulos, avalia o pesquisador.
"Mas não temos todo o tempo do mundo para isso", argumenta ele, lembrando que, historicamente, poucas matrículas são feitas depois do primeiro trimestre.
Então, quanto mais crianças dessa faixa etária forem vacinadas nos próximos dois meses, maiores as chances de mitigar a evasão, pondera.
Tempo de estudos dos mais pobres cai pela metade em relação há 15 anos
De uma perspectiva otimista, as crianças de 5 a 9 anos ainda têm muitos anos de ensino básico pela frente, então há tempo para recuperar as perdas sofridas nos últimos dois anos, afirma Neri.
Mas, por enquanto, do ponto de vista do tempo de aula que deixou de ocorrer, "o epicentro do impacto (da pandemia sobre a educação) é onde ele é mais danoso no longo prazo: entre as crianças menores e entre as mais pobres", afirma Neri.
Isso porque outro dado preocupante levantado pelos pesquisadores é que, entre os alunos de 6 a 15 anos pertencentes ao Bolsa Família - portanto, os alunos de menor renda -, o tempo médio dedicado para os estudos em setembro de 2020, no auge da pandemia, foi de apenas 2 horas e um minuto.
Para efeitos comparativos, isso é a metade do tempo médio (de 4 horas e um minuto) que alunos da mesma faixa etária e de renda dedicavam aos estudos diariamente em setembro de 2006.
Os alunos da rede privada também tiveram perdas significativas de horas de aula, embora menores: dedicaram por dia em média 3 horas e 6 minutos aos estudos em setembro de 2006, quase uma hora e meia a menos do que 15 anos atrás (4h e 30 minutos).
Os alunos de menor renda também relataram dez vezes mais problemas de oferta de materiais didáticos e atividades escolares, em comparação com alunos das classes mais altas - e esse problema foi mais grave em Estados do Norte do país.
A soma desses impactos em grupos vulneráveis na educação "é realmente um passo para trás, que deixará sequelas de longo prazo bastante fortes", afirma Neri.
Como isso prejudica o Brasil
As consequências ainda precisarão ser mensuradas no futuro - e, como pesquisadores se esforçam em ressaltar, ainda podem ser mitigadas, com investimentos e políticas de apoio à educação -, mas trata-se de menos estímulos, menos oportunidades de acumular conhecimento e de reduzir as desigualdades sociais que recaem sobre as crianças de baixa renda.
Se já havia preocupação com a baixa produtividade do Brasil mesmo diante de décadas de avanços na educação básica, "como vai ser agora que a educação andou para trás?", questiona o pesquisador Marcelo Neri.
As crianças na etapa correspondente ao ensino fundamental 1, em particular, precisarão de atenção especial das políticas públicas.
A Unicef (braço da ONU para a infância) e a Cenpec Educação estimaram que, das mais de 5 milhões de crianças e adolescentes que estavam sem acesso à educação no Brasil em novembro de 2020, cerca de 40% tinham entre 6 e 10 anos de idade.
Um ponto importante é que, antes da pandemia, essa era a etapa de ensino que mais havia avançado no Brasil, tanto em universalização de acesso - ou seja, quase todas as crianças dessa idade estavam frequentando a escola - quanto em progressos no ensino, superando metas oficiais em grande parte do país.
"Em todas as séries para as crianças mais novas, a tendência (até a pandemia) era de redução da evasão. Mas agora paramos de melhorar e também andamos para trás", afirma Marcelo Neri.
O preocupante é que os períodos da educação infantil e dos primeiros anos do ensino fundamental são fases importantíssimas do desenvolvimento da criança - seja cerebral, cognitivo e comportamental. "É uma grande janela de oportunidade do desenvolvimento", prossegue Neri - o que explica a importância de desenvolver estratégias para reverter as perdas da pandemia.
Percepção sobre educação de qualidade
Embora o ensino do mundo inteiro tenha sofrido duramente com a pandemia, os dados coletados pela FGV Social indicam que as crianças brasileiras foram mais prejudicadas do que a média global - tanto porque as escolas passaram mais tempo fechadas por aqui do que em grande parte do mundo, como porque não foram destinados recursos públicos suficientes para ajudar a mitigar as perdas.
Pelo contrário: segundo a ONG Todos Pela Educação, o orçamento e a execução do Ministério da Educação com a etapa básica de ensino foram, em 2020, os menores em uma década.
Uma pesquisa feita pela Gallup em 40 países sobre percepção da qualidade da educação durante a pandemia, em 2020, em comparação com o ano anterior, mostra que essa percepção piorou em todo o mundo, mas em índices quatro vezes maiores no Brasil do que na média mundial.
E caiu, particularmente entre os brasileiros mais pobres, a percepção de que as crianças estavam tendo oportunidades de crescer e aprender durante a pandemia - em índices também superiores à média global.
"O Brasil nos tempos da pandemia ampliou uma série de desigualdades presentes, com consequências futuras", conclui Marcelo Neri.
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