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Chacinas: uma visão acadêmica sobre como execuções em massa acontecem e impactam a sociedade

Estudo analisa a evolução do modus operandi e os perfis de vítimas e executores de 138 chacinas ocorridas em são Paulo entre 2009 e 2020.

26 nov 2024 - 10h13
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O ano era 1938. No bairro do Brás, em São Paulo, ocorria um crime que chocava o país: quatro pessoas foram brutalmente assassinadas a golpes de pilão durante o carnaval. O episódio ganhou grande repercussão na mídia da época e simboliza um período em que homicídios múltiplos eram tratados como tragédias excepcionais. Quase 80 anos depois, em 2015, as cidades de Osasco e Barueri foram palco da maior chacina do estado de São Paulo, quando pelo menos 20 jovens foram executados a tiros por homens encapuzados em menos de 3 horas. Nas reportagens, agentes de segurança pública estavam entre os suspeitos das execuções.

Das chamadas chacinas "encapuzadas", onde os responsáveis escondem suas identidades, o padrão tem evoluído para execuções "desencapuzadas". Isso foi visto no Massacre de Paraisópolis, em 2019, quando nove pessoas morreram encurraladas por policiais em uma viela, e nas Operações Escudo e Verão, em 2023, na Baixada Santista, marcadas pela violência e letalidade, com evidências de execuções sumárias e tortura. No total, foram mais de 80 vítimas.

Essas cenas se tornaram comuns no cotidiano da cidade de São Paulo e na Região Metropolitana. Popularmente chamadas de chacinas, o assassinato de três ou mais pessoas em um mesmo local e pela mesma causa, recebe o nome técnico de homicídios múltiplos.

Para analisar essa forma de homicídios, investiguei diversos dados de chacinas em minha tese de Doutorado em Sociologia pela Unicamp "Quem sangra na fábrica de cadáveres? As chacinas em São Paulo e RMSP e a Chacina da Torcida Organizada Pavilhão Nove". Parte dos resultados foram discutidos no artigo "Chacinas urbanas na cidade e na Região Metropolitana de São Paulo (2009 - 2020)", publicado na Revista Cadernos Metrópole.

Na pesquisa, foram investigados os homicídios múltiplos a partir de notícias de jornais e de entrevistas com jornalistas, delegados, investigadores e ouvidores da polícia, como as chacinas acontecem e em quais locais há maior incidência de casos. Foram encontradas e analisadas 138 chacinas, contendo 536 vítimas fatais, entre os anos de 2009 e 2020. Com os dados, realizei a espacialização dessas mortes múltiplas através de mapeamentos.

As vinganças do Esquadrão da Morte e as chacinas

A ação do Esquadrão da Morte durante da Ditadura Militar é um dos elementos que apresento em minha pesquisa para analisar as chacinas urbanas paulistas. Esse grupo era formado por policiais civis, que realizavam execuções sumárias e homicídios múltiplos, em atuações extralegais.

Durante o expediente de trabalho, em que desempenhavam o papel de agentes do estado, esses policiais atuavam na repressão política, prendendo e torturando os militantes contrários ao regime autoritário, no Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), um centro de repressão e tortura da época. Ao finalizar o horário de trabalho, esses policiais se engajavam em execuções e chacinas de suspeitos pelas periferias paulistanas, além de retirarem presos do Presídio Tiradentes para executá-los.

Os corpos das vítimas eram deixados ao relento e os jornais avisados através de uma espécie de Relações Públicas do grupo. As execuções do Esquadrão da Morte estavam relacionadas às vinganças institucionais e, para realizar essas vinganças havia uma métrica: para cada policial assassinado, dez civis deveriam ser executados.

Além dessa métrica de vingança, os policiais também atuavam na proteção de grupos criminais ligados ao tráfico de drogas. Essa forma de proteção na qual os policiais obtêm vantagens financeiras ao utilizar seu papel institucional para auxiliar grupos criminais em suas ações, é chamada de mercadorias políticas.

As mercadorias políticas estão relacionadas às extorsões, venda de informações, proteção policial a grupos criminosos, dentre outras corrupções. São mercados de ilegalidades. O conceito desenvolvido pelo sociólogo Michel Misse é utilizado para analisar como as chacinas do Esquadrão da Morte reorganizou as violências letais urbanas, em especial as ações de policiais nas execuções de chacinas.

Executores, vítimas e territórios

Segundo os dados da minha pesquisa, em 24,6% das notícias analisadas, PMs, ex-PMs, guardas civis metropolitanos e policiais civis aparecem como suspeitos de terem realizado as execuções. Em 78,17% das mortes, as vítimas eram do sexo masculino, assim 419 dos executados eram homens. Sobre a idade, 110 vítimas tinham entre 18 e 24 anos e 52 entre 25 e 29. As execuções das chacinas vitimam, em sua maioria, homens e jovens.

Um ponto que me chamou a atenção foi a falta de dados sobre raça/cor das pessoas executadas nas chacinas. Para preencher essa lacuna, analisei o território onde os casos mais ocorriam, comparando o local com mapas do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) que detalham o percentual de população branca, parda e preta na cidade de São Paulo e nas cidades da Região Metropolitana.

Ao acrescentar aos dados dos territórios atingidos o mapeamento racial do CEM, foi possível compreender que os locais nos quais as chacinas costumavam ocorrer com maior frequência no período analisado eram bairros com maior concentração de população parda e preta. A análise socioespacial das chacinas, através de mapas georreferenciados, permitiu detalhar algo que movimentos negros, movimentos de familiares e ativistas de direitos humanos já relatavam: as mortes se concentram nas periferias.

São os locais públicos das periferias e de circulação urbana que as chacinas ocorrem. Em 24 desses eventos, o local das execuções eram bares, pizzarias, bailes funk, restaurantes, padarias, praças, salões e quadras de torcidas organizadas. Há uma tentativa de asfixiamento da sociabilidade urbana nas periferias pelas ações das chacinas. As vitimizações das chacinas e os territórios em que ocorrem, apontam para como essa violência letal exprime o genocídio da juventude negra, denunciado pelos movimentos negros e movimentos de familiares de vítimas.

Modus operandi e mudanças de padrões das chacinas

Os dados levantados sobre as chacinas entre 2009 e 2020, permitiu que, a partir das similaridades encontradas nas descrições das execuções, fosse possível construir um modus operandi dessas violências.

Através dessa análise, pude identificar que as chacinas possuem elementos de ação muito similares, como a chegada em carros e motos, o uso de coturnos, toucas ninjas e armas de fogo. Imposição da presença com a frase: "é a polícia" e o recolhimento de cápsulas ao final. Esses elementos são encontrados ao longo da série histórica levantada pela minha pesquisa.

Algo, no entanto, tem mudado. Há uma quebra no modus operandi analisado até 2020. Já em 2019, o Massacre de Paraisópolis demonstra uma ação na qual o elemento do capuz sai de cena e, as mortes múltiplas são realizadas sem o uso de arma de fogo e em operação oficial da polícia. Nas Operações Escudo e Verão (2023/2024), as ações são realizadas desencapuzadas e com verniz de legitimidade estatal.

Essa modificação no padrão de operacionalização das chacinas demonstra reorganizações das práticas de extermínio no urbano. Se as chacinas eram realizadas de modo extralegal e velado, nas recentes operações há a legalidade, a defesa estatal e o rosto descoberto.

Apesar dessas alterações, alguns elementos não se modificaram: as vitimizações e territórios. São os jovens negros, que estão e/ou residem nas periferias, que continuam sendo executados, a partir de vinganças institucionais e de mercadorias políticas, com seus corpos expostos para demonstrar quem possui poder no território.

A permanência do padrão de vitimização e de territórios de incidências dos homicídios múltiplos, reforça as conclusões da minha tese de que as chacinas são modos de produções de mortes ligados ao "genocídio da juventude negra", como uma ferramenta que se reinventa, a partir das instituições estatais, para seguir o propósito do extermínio da negritude brasileira.

The Conversation
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Foto: The Conversation

Camila Vedovello não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

The Conversation Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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