Hamas, Fatah e ANP: entenda a divisão política da Palestina atual
Desde que ataques recentes intensificaram o conflito entre o Hamas e Israel, as redes brasileiras foram tomadas por publicações desinformativas que ignoram o contexto político da região. Fotos que mostram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao lado de jogadores do time de refugiados da Palestina e posts alegando que o governo teria feito doações ou assinado acordos com o Hamas viralizaram nas últimas semanas para sugerir que todos os palestinos têm relação com o grupo extremista, o que não é verdade.
Todas essas mentiras ignoram que a Palestina vive uma cisão política há décadas: de um lado, está a ANP (Autoridade Nacional Palestina), que serve como governo provisório na região e tenta negociar a paz com Israel; do outro, está o Hamas, grupo extremista militarizado que controla a Faixa de Gaza e ordenou o ataque do último dia 8 em Israel. Há ainda diversas organizações menores, ligadas ou não aos dois grupos.
Para esclarecer pontos abordados pelas peças desinformativas e mostrar que nem todo palestino é ligado ao Hamas ou defende o último ataque a Israel, Aos Fatos explica o contexto político atual da região:
- Quem governa a Palestina?
- Quais outras organizações atuam na região?
- Qual a relação entre o Brasil e a Palestina?
1. QUEM GOVERNA A PALESTINA?
Não há, atualmente, um governo que controla todo o território palestino. A região é dividida em duas:
- A Cisjordânia, uma área de 5.640 km², que faz fronteira com a Jordânia e tem população estimada de 3,1 milhões de habitantes. Essa localidade é governada pela ANP (Autoridade Nacional Palestina), mas ocupada militarmente por Israel;
- E a Faixa de Gaza, território de 360 km², que faz fronteira com o Egito e é hoje ocupada por cerca de 2 milhões de palestinos. Atualmente, ela é controlada pelo Hamas, grupo extremista islâmico.
A ANP é uma organização laica criada em 1994 pelo Acordo de Oslo — firmado entre Israel e a entidade multipartidária OLP (Organização para a Libertação da Palestina) — para representar um governo de transição palestino até que fosse estabelecido o Estado Palestino. Segundo os termos acordados, a ANP deveria existir até 1999, prazo dado para que a situação política da região se resolvesse. Isso, no entanto, nunca ocorreu, e a organização atua até hoje como uma espécie de autogoverno da Palestina.
O primeiro presidente da ANP foi Yasser Arafat, do partido Fatah (sigla árabe para Movimento de Libertação Nacional da Palestina), maior organização política da região. Arafat foi assassinado em 2004 e sucedido por Mahmoud Abbas, também do Fatah, que preside a ANP até o momento.
- O Fatah foi fundado em 1959 e chegou a organizar ações violentas e armadas, o que o fez ser considerado um grupo terrorista por Israel;
- Em 1988, no entanto, o grupo renunciou à luta armada e reconheceu a existência de Israel. A partir de então, o Fatah passou a realizar a interlocução das negociações de paz;
- O partido tinha maioria até 2006, ano em que o Hamas conseguiu a maior parte das cadeiras do Conselho Legislativo Palestino durante as eleições;
- Naquele momento, o Fatah e o Hamas chegaram a dialogar para tentar formar um governo de coalizão, mas desentendimentos acabaram resultando na expulsão da ANP da Faixa de Gaza em 2007 e na retirada dos cargos legislativos conquistados pelo Hamas.
- "Os dois grupos entraram em uma guerra civil em 2007, que terminou com a expulsão do Fatah da Faixa de Gaza e do Hamas da Cisjordânia. Evidentemente, há ainda algumas fortalezas de cada um dos grupos em território alheio, sobretudo do Hamas na Cisjordânia. A mais conhecida é Hebron, capital do Hamas", explicou João Miragaya, historiador e colaborador do Instituto Brasil-Israel ao Aos Fatos.
Já o Hamas é uma organização palestina islâmica criada em 1987, que se opôs ao Acordo de Oslo. Em resumo, o grupo extremista defende a substituição de Israel por um Estado islâmico e, por isso, travou diversos conflitos com o país nas últimas décadas. Financiado pelo Irã, o Hamas é considerado um grupo terrorista por Israel, EUA e União Europeia.
O Fatah e o Hamas chegaram a tentar se reconciliar. Em 2016, por exemplo, Mahmoud Abbas anunciou que os dois haviam selado um acordo para que a ANP voltasse a controlar a Faixa de Gaza, mas isso não se concretizou.
"Houve uma série de tentativas de reaproximação, todas elas frustradas. O abismo entre Hamas e ANP é grande demais. Tiveram uma série de desentendimentos a respeito do calendário para a transferência de poder. O Hamas se negou também a desarmar milícias e entregar armas para a ANP", explicou Diogo Bercito, jornalista e doutorando em história do Oriente Médio na Universidade de Georgetown, ao Aos Fatos.
A ANP, hoje, não considera o Hamas um aliado. Abbas, inclusive, declarou-se contrário aos recentes ataques do grupo extremista a Israel durante uma conversa com o presidente venezuelano, Nicolás Maduro. Segundo a imprensa palestina, o líder da ANP teria dito que "as políticas e ações do Hamas não representam o povo palestino".
2. QUAIS OUTRAS ORGANIZAÇÕES ATUAM NA REGIÃO?
Além de tratar o Hamas e a ANP como se fossem uma mesma organização, as peças de desinformação que circulam nas redes brasileiras também sugerem que diversos outros grupos seriam representantes do povo palestino ou estariam ligados à organização extremista:
- A Jihad Islâmica, por exemplo, atua na Palestina, apoia o Hamas e também é financiada pelo Irã, mas é outro movimento. Fundada em 1981 por estudantes da Universidade Islâmica de Gaza, ela também tem um braço armado e foi responsável por diversos ataques a Israel, principalmente entre 2000 e 2005. Atualmente, o grupo defende o ataque orquestrado pelo Hamas e afirma estar em posse de 30 reféns israelenses;
- Já o Hezbollah, outra organização apoiada pelo Irã, é um partido político e grupo armado xiita libanês. Eles também apoiam o Hamas e consideram Israel um inimigo que tenta tomar as terras dos muçulmanos. No conflito atual, o Hezbollah realizou inclusive ataques a Israel;
- Outra organização que causa confusão é a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), muitas vezes tratada como sinônimo da ANP, o que é incorreto. A OLP, na verdade, é uma organização criada em 1964 e composta por 11 grupos políticos palestinos. Assim como a ANP, ela é presidida por Mahmoud Abbas, do Fatah. A OLP não tem o Hamas em sua composição;
- Há, por fim, publicações nas redes que afirmam que a UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo) seria ligada ao Hamas, o que não é verdade. Subordinada à ONU (Organização das Nações Unidas), essa organização oferece assistência humanitária à população palestina na Faixa de Gaza, na Cisjordânia e nos países vizinhos.
Apontado como "aliado do Hamas" pelas peças de desinformação, o governo Lula (PT), na verdade, possui relações diplomáticas e institucionais com a ANP. Em 2010, por exemplo, durante o segundo mandato do presidente, o governo federal destinou cerca de US$ 10 milhões (ou R$ 25 milhões, na cotação da época) à ANP com o objetivo de ajudar na reconstrução da Faixa de Gaza. Apesar de controlar o território, o Hamas não participou das negociações e declarou não ter interesse na doação.
Foi nesse ano também que o Brasil reconheceu oficialmente a existência do Estado Palestino, fazendo com que a delegação especial brasileira em Ramallah, na Cisjordânia, fosse alçada ao status de Embaixada.
Em setembro de 2023, o governo federal promulgou um tratado de cooperação com a OLP, em nome da ANP, que havia sido assinado em 2010 e referendado pelo Congresso em 2012. O texto prevê, entre outras medidas, ações que facilitem a circulação de pessoas e equipamentos para a execução de projetos que tragam benefícios às duas regiões e até medidas que facilitem a repatriação em situações de crise. Mais uma vez, o acordo não foi feito com o Hamas.
As relações entre Brasil e Palestina precedem, inclusive, o governo petista. A Embaixada Palestina no Brasil foi criada em 1998, mas os palestinos já tinham um representante em Brasília desde 1975.
Bilateral. Lula se encontrou com presidente da ANP, Mahmoud Abbas, em setembro deste ano, durante a Assembleia Geral da ONU (Ricardo Stuckert/PR)
PT-Hamas. É fato, no entanto, que o Hamas já fez tentativas de se aproximar de Lula e que parlamentares petistas se manifestaram contra a classificação de movimento terrorista atribuída ao grupo:
- Após Lula sair vitorioso na disputa das eleições de 2022, o líder do Hamas, Basim Naim, enviou uma nota para parabenizar o petista pela vitória. Na carta, que consta no site oficial do movimento, Naim diz que Lula "é conhecido pelo seu apoio forte e contínuo aos palestinos em todos os fóruns internacionais";
- Antes disso, em 2021, Naim concedeu uma entrevista à TV 247 na qual disse que "Lula é um amigo do povo palestino e esperamos sua volta";
- Em 2021, dez parlamentares do PT assinaram uma nota para se declarar contrários à classificação de "movimento terrorista" atribuída ao Hamas. Na época, os então deputados disseram que "resistência não é terrorismo" e que essa nomenclatura "atinge a legítima resistência palestina contra a ocupação e o apartheid israelense, numa clara posição tendenciosa em favor de Israel";
- Um dos signatários, Alexandre Padilha, hoje ministro das Relações Institucionais, disse, após os ataques recentes, que defendia o povo palestino e que "em nenhuma hipótese essa decisão pode ser confundida com apoio a qualquer tipo de violência. Já deixei claro meu absoluto repúdio aos atos terroristas".
É importante lembrar que Lula também condenou os ataques realizados pelo Hamas ao Estado de Israel no início de outubro. "Reafirmo meu repúdio ao terrorismo em qualquer de suas formas. O Brasil não poupará esforços para evitar a escalada do conflito", disse ele, em publicação no X (ex-Twitter).
Fiquei chocado com os ataques terroristas realizados hoje contra civis em Israel, que causaram numerosas vítimas. Ao expressar minhas condolências aos familiares das vítimas, reafirmo meu repúdio ao terrorismo em qualquer de suas formas.
O Brasil não poupará esforços para…
— Lula (@LulaOficial) October 7, 2023
Também vale ressaltar que, segundo o próprio governo, o Brasil não considera o Hamas como uma organização terrorista, já que segue as avaliações do Conselho de Segurança da ONU, que não classifica o grupo extremista como tal.
Referências:
5. ONU
9. BBC Brasil
10. Departamento de Estado dos EUA
11. El País
12. Jornal Oficial da União Europeia
15. Veja
16. ECFR
17. UNRWA
19. Estadão
22. Hamas
23. Brasil247
24. Twitter (@LulaOficial)
25. EBC