Cidade que contratou Gusttavo Lima tem 38% da população na pobreza
Especialistas questionam uso da verba de compensação por mineração para contratar a apresentação, que acabou cancelada pela prefeitura de Conceição do Mato Dentro (MG)
Dos 17.908 habitantes de Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais, 6.868 vivem em situação de extrema pobreza, conforme dados do CadÚnico, fornecidos pelo Ministério da Cidadania. A cidade ganhou o noticiário na semana passada, após a prefeitura cancelar um show do cantor Gusttavo Lima, que havia sido contratado por R$ 1,2 milhão com verba da Compensação Financeira pela Exploração Mineral - CFEM.
O Ministério Público do Estado abriu procedimento para investigar uso indevido de verba para a contratação da apresentação, marcada para o dia 20 de junho como parte da programação da 30ª Cavalgada do Senhor Bom Jesus do Matosinhos. Em nota, a prefeitura diz ter recebido a notícia "com perplexidade''. Especialistas ouvidos pelo Estadão questionam o uso do recurso com esse fim.
A CFEM funciona como uma contrapartida a ser paga por pessoas físicas e jurídicas pelo uso de recursos minerais e é administrada pela Agência Nacional de Mineração (ANM).
No Brasil, o município que mais arrecada a CFEM é Parauapebas (PA), que em 2021 recebeu R$ 1,48 bilhão.
Conceição do Mato Dentro ocupa o terceiro lugar do ranking. Em 2021, o valor recebido pelo município foi de R$ 387 milhões.
"É um dinheiro muito grande que chega para a gestão das prefeituras de cidades com pouquíssima estrutura e pessoal qualificado para gerir", afirma a mestre em Ciências Sociais e coordenadora do projeto De Olho na CFEM, Júlia Castro. "De que forma esse show do Gusttavo Lima vai colaborar para o fim da dependência mineral do município, que é a finalidade desse recurso?", questiona.
Pela lei, não há impedimento em relação à aplicação da verba em eventos como o show, mas juristas afirmam que o correto é investir em projetos que de fato contribuam para diversificar o perfil econômico das regiões economicamente dependentes da extração de minérios, justamente por esta ser uma atividade cujo recurso é finito.
O prefeito do município, José Fernando Aparecido de Oliveira (MDB), defende que a Cavalgada é um exemplo de diversificação econômica da atividade de mineração.
"Ainda que literalmente o dispositivo legal faça restrição só à despesa corrente e ao pagamento das dívidas, se você olhar para o ordenamento jurídico como um todo a destinação do recurso é indevida", diz o pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da FGV Direito, Leonel Cesarino Pessôa. "É preciso olhar para o conjunto e não só para um dispositivo isolado da lei", diz.
Extrema pobreza
Localizada a 160km da capital Belo Horizonte, Conceição do Mato Dentro tem 12.373 pessoas inscritas no CadÚnico, que reúne dados sobre famílias brasileiras de baixa renda.
Mais da metade, 6.868, corresponde a pessoas em situação de extrema pobreza, com renda até R$ 100 por mês, e 10% estão em situação de pobreza, com renda mensal de R$200.
"Embora o peso da CFEM no orçamento municipal seja bastante significativo, verifica-se que esta riqueza não é convertida em bem-estar para a população", afirma a nota técnica do De Olho na CFEM.
Os pesquisadores ainda concluem que a situação é ainda mais grave no contexto da pandemia de covid-19, pois mesmo nos momentos mais críticos a mineração operou enquanto atividade essencial, o que intensificou a exposição e vulnerabilidade de trabalhadores e população local.
"É escandaloso num contexto de crise, de inflação, e enquanto a arrecadação da CFEM tem aumentado consideravelmente", afirma a coordenadora do projeto, Júlia Castro.
Brechas na lei
Estabelecida pela Constituição em seu artigo 20, o texto que dispõe sobre a CFEM afirma que a compensação deve ser aplicada em projetos que direta ou indiretamente revertam em prol da comunidade local em melhorias da infraestrutura, qualidade ambiental, saúde e educação.
"É como se fosse uma compensação pela perda do patrimônio", explica a economista e pesquisadora da Universidade Federal do Pará, Maria Amélia da Silva Henriquez, que trabalhou entre 2008 e 2012 no Ministério de Minas e Energia e coordenou o grupo que revisou o texto da CFEM. "O que deveria haver é um plano de uso desse recurso, porque quando a mineração acabar será preciso uma atividade alternativa para a cidade não virar uma cidade fantasma", diz.
Segundo a coordenadora do projeto De Olho na CFEM, o texto é vago, o que permite episódios como a contratação do show milionário de Gusttavo Lima. "A lei estabelece de forma clara como a CFEM não deve ser usada, para pagar pessoal e dívidas, mas ao se referir aos usos da contribuição, o tom é de orientação", diz.
"É preciso mudar a lei. "Enquanto não houver mudança, esse tipo de coisa acontecerá", afirma o professor de Direito Tributário da USP, Fernando Facury Scaff.
Entenda o caso
No dia 11 de abril a prefeitura de Conceição do Mato Dentro assinou um contrato com a empresa Balada Eventos e Produções LTDA, cujo sócio é Nivaldo Batista Lima (Gusttavo Lima). De acordo com o documento, o pagamento seria efetuado em duas parcelas, sendo a primeira, de 50%, paga no ato da assinatura e a fonte de recurso seria a CFEM.
Pelo contrato, a prefeitura também seria responsável por disponibilizar a estrutura do palco, dois camarins e transporte do artista e equipe, hospedagem "no melhor hotel da região" para 40 pessoas e pagamento de diárias de alimentação, no valor de R$ 4 mil.
Após o Ministério Público de Minas Gerais abrir uma notícia de fato para investigar o uso indevido da verba, a prefeitura de Conceição do Mato Dentro decidiu cancelar o evento. Em nota, o prefeito diz ter recebido "com perplexidade" a notícia de que o evento estaria sendo pago com verba da saúde e da educação.
"Referidas assertivas levianas e tendenciosas, demonstram absoluto desconhecimento sobre as formas de utilização dos recursos advindos da mineração, reguladas pela Lei Federal nº 13.540, que autoriza gastos com fomento econômico, bem-estar social, turismo, diversificação econômica, saúde, educação e outros", afirma o prefeito.
Questionada por qual motivo o show foi cancelado, a prefeitura respondeu que a razão foi a "conveniência da administração pública, súmula 473 STF". Em relação ao pagamento da primeira parcela, estabelecido pelo contrato, a informação é de que ela não foi paga pois "procedimentos prévios ao pagamento" não foram supridos.
Na última segunda-feira,30, o cantor fez um pronunciamento em rede social, em que afirmou ser vítima de "perseguições e inverdades". "Não é porque é uma prefeitura que vou deixar de cobrar o meu valor", disse. Ainda na live, Gusttavo Lima chorou e disse estar a ponto de "jogar a toalha".
Em Roraima, o Ministério Público estadual também abriu procedimento para investigar a contratação de um show do cantor em São Luiz, por R$ 800 mil.
O Ministério Público do Rio de Janeiro também investiga irregularidades e superfaturamento na contratação de artistas, dentre eles Gusttavo Lima.
A reportagem não conseguiu contato com a assessoria do cantor.