Seria possível haver vida em torno de um buraco negro?
Prêmio Nobel de Física 2020, anunciado nesta terça-feira, premiou três cientistas com pesquisas sobre buracos negros.
A Terra está com problemas. Safras morrendo e tempestades de poeira mortais estão colocando o planeta sob tensão, deixando a raça humana com grande necessidade de um novo lar.
Em uma tentativa desesperada de encontrar esse novo lar, uma equipe de bravos astronautas liderados por Joseph Cooper se aventuram em um buraco de minhoca perto de Saturno, emergindo a anos-luz de distância em Miller, um planeta oceânico orbitando um buraco negro supermassivo conhecido como Gargantua.
Essa é a trama do filme Interestelar, de 2014. No entanto, de acordo com pesquisas recentes, essa ideia pode não ser tão rebuscada quanto parece à primeira vista.
A capacidade de localizar outros planetas no espaço teve um progresso impressionante no último quarto de século. Agora sabemos da existência de mais de 4 mil exoplanetas — mundos além do nosso Sistema Solar orbitando estrelas distantes.
Para aqueles que procuram vida extraterrestre, a sabedoria convencional diz que devemos procurar uma Terra 2.0: um planeta como o nosso, orbitando a uma distância segura de uma estrela semelhante ao Sol. Só aí encontraremos o que a vida precisa: água.
Ao contrário das estrelas, os buracos negros são vistos como arautos de morte e destruição. O Prêmio Nobel de Física 2020, anunciado nesta terça-feira (6/10), premiou três cientistas com pesquisas sobre buracos negros, um lugar no espaço onde a gravidade é tão forte que nem a luz consegue escapar.
Os vencedores, Roger Penrose, Reinhard Genzel e Andrea Ghez, dividirão o valor de 10 milhões de coroas suecas (cerca de R$ 6,3 milhões), conforme anunciou a Academia Real das Ciências da Suécia.
Mesmo antes de o tema ganhar destaque no Nobel, o que a ciência já sabia era que os buracos negros se formam quando grandes estrelas morrem e sua atração gravitacional é tão extrema que agem como gigantescas portas cósmicas. Caia lá e você será dilacerado sem chance de fuga. Isso dificilmente parece ser o cenário ideal para o desenvolvimento da vida, mas será que estamos deixando de ver algo?
Planetas de buracos negros
Keiichi Wada, do Observatório Astronômico Nacional do Japão, pensa que sim. Ele trabalha com a física de buracos negros, mas se juntou a colegas que pesquisam a formação de planetas para ver se a ideia é plausível.
"Os dois campos (formação de planetas e buracos negros) são tão diferentes que geralmente não há interação entre eles", diz Wada.
Agora eles começaram a mudar isso combinando seus conhecimentos para modelar a formação de planetas em torno de buracos negros supermassivos, assim como Gargantua, no filme Interestelar.
Os planetas se formam ao redor das estrelas quando a gravidade começa a reunir grãos de poeira em pequenas bolas, que então colidem gradualmente entre si para formar objetos cada vez maiores.
Wada e sua equipe queriam descobrir se isso poderia acontecer em torno de um buraco negro.
O modelo deles, publicado em novembro de 2019, mostra que a distâncias suficientes do buraco negro (pelo menos 10 anos-luz), o ambiente gravitacional é estável o suficiente para os planetas se formarem da mesma forma que em torno de estrelas como o nosso Sol .
"Este é o primeiro estudo que abre a possibilidade de formação direta de objetos semelhantes a planetas em torno de buracos negros supermassivos", diz Wada. "Esperamos mais de 10 mil planetas em torno de um buraco negro supermassivo porque a quantidade total de poeira lá é enorme."
Isso é muito espaço cósmico inexplorado.
Os planetas podem potencialmente se formar em torno de buracos negros, mas isso não é garantia de que eles ofereçam um ambiente favorável à vida. Na Terra, os seres vivos são extremamente dependentes da luz e do calor do Sol para sobreviver. Sem o brilho de uma estrela, a vida ao redor de um buraco negro provavelmente precisaria de uma fonte alternativa de energia.
Felizmente, é provável que isso não seja tão difícil de acontecer. De acordo com um artigo publicado por Jeremy Schnittman, da agência espacial dos Estados Unidos, NASA, em outubro de 2019, uma característica de muitos buracos negros — o disco de acreção — poderia representar o sol.
O disco de acreção é uma faixa plana de material enfileirado ao redor do buraco negro, esperando para ser devorado. À medida que o material desce em espiral para a desintegração, ele acaba viajando incrivelmente rápido e emite grandes quantidades de energia antes de desaparecer além do ponto sem retorno.
"Todos os buracos negros que conhecemos têm discos de acreção e são incrivelmente brilhantes", diz Schnittman.
De acordo com seus cálculos, com um planeta à distância certa do buraco negro, o disco de acreção teria o mesmo tamanho e brilho que o Sol em nosso céu. "Seria muito semelhante ao nosso Sistema Solar", diz ele.
O céu diurno em tal planeta poderia ser familiar, mas o céu noturno não seria nada disso. Os centros das galáxias onde geralmente residem buracos negros supermassivos estão tão abarrotados de estrelas que, de acordo com Schnittman, o céu noturno seria 100 mil vezes mais brilhante que o nosso.
No entanto, essas estrelas não estão bem espalhadas pelos céus. A gravidade do buraco negro acelera o planeta a velocidades tão elevadas que a luz das estrelas parece vir de um único ponto à sua frente que é menor que o Sol.
"É como dirigir na chuva", diz Schnittman. Imagine uma nave espacial atingindo velocidade máxima em um filme de ficção científica. "Certamente seria espetacular."
Há um problema, entretanto, com um planeta sendo aquecido por um disco de acreção. "Eles emitem muito mais radiação ultravioleta e de raios-X do que o Sol", diz Schnittman. Esse tipo de radiação poderia potencialmente esterilizar um planeta habitável. "Você precisaria de uma atmosfera nublada para bloqueá-lo", acrescenta.
Mas isso não é impossível, dado o que já sabemos sobre os exoplanetas que encontramos orbitando outras estrelas. "Atmosferas densas e nebulosas parecem ser bastante comuns", diz ele. Então é possível que haja sobrevivência a essa radiação dessa forma, tendo algo equivalente a um dia quente e úmido constante aqui na Terra.
Luz de um buraco negro
Considerando esses perigos e restrições, pode haver uma maneira mais segura de aquecer mundos ao redor dos buracos negros: a energia que sobrou do Big Bang. Os astrônomos a chamam de radiação cósmica de fundo em micro-ondas (CMB, na sigla em inglês), e foi liberada cerca de 380 mil anos após a criação do cosmos.
Segundo o Pavel Bakala, da Universidade da Silésia, na República Tcheca, ela poderia ocupar o lugar de uma estrela, graças a um efeito chamado de lente gravitacional. Devido à sua enorme massa, os buracos negros distorcem o espaço ao seu redor a tal ponto que atuam como lentes.
Assim como uma lupa pode atear fogo a um palito focalizando a luz do Sol, a extrema gravidade do buraco negro pode concentrar a energia da CMB em um planeta em órbita.
No entanto, Bakala diz que, por si só, isso não é suficiente, apontando para o fato de que na Terra passamos por ciclos, com os períodos do dia e da noite, graças à rotação da Terra. "Isso ajuda a circular a energia pelo planeta", diz ele.
A trégua da noite é tão importante para um mundo habitável quanto o brilho do dia.
Mas Bakala também tem uma solução para esse problema: a sombra do buraco negro. Conforme a luz atravessa o espaço extremamente deformado em torno de um buraco negro, ela cria um anel, com uma área escura (a sombra) dentro dele.
Isso pode ser visto na agora famosa foto de um buraco negro divulgada por cientistas por trás do Event Horizon Telescope, em abril de 2019. Um planeta que passasse por essa sombra mergulharia na noite. "Isso poderia torná-lo muito semelhante à nossa experiência na Terra", diz Bakala.
Porém, nem todo buraco negro é viável. "Você precisa de um buraco negro de rotação muito rápida", diz Bakala. "Ele precisa estar girando próximo à velocidade da luz."
Isso porque quanto mais devagar um buraco negro gira, mais longe você tem que viajar para alcançar uma órbita estável.
Aventure-se longe demais e você não terá mais o ciclo diurno e noturno fornecido pelo fundo de micro-ondas cósmico e a sombra do buraco negro. Não está descartado, principalmente se olharmos para os antigos buracos negros. Quanto mais antigo um buraco negro, maior a chance de ele girar ao engolir coisas.
A idade de um buraco negro não é a única questão relacionada ao tempo a ser considerada ao avaliar se é provável que se encontre vida orbitando um. Os buracos negros mexem com o próprio tempo. Em sua Teoria Geral da Relatividade, Albert Einstein nos disse que o espaço e o tempo estão entrelaçados em um tecido chamado espaço-tempo contínuo.
Portanto, um buraco negro não apenas distorce o espaço ao seu redor, mas também o tempo. Para cada 1.000 dias que passam na Terra (um pouco mais de três anos ), apenas um dia se passa no planeta do buraco negro. Este efeito, conhecido como "dilatação do tempo", constitui um ponto importante da trama em Interestelar, com uma hora passando no planeta de Miller a cada sete anos na Terra.
A vida na Terra começou relativamente cedo - dentro do primeiro meio bilhão de anos ou mais.
Para que meio bilhão de anos passasse no planeta do buraco negro, o Universo teria que ter 500 bilhões de anos. Mas, na verdade, formou-se há pouco menos de 14 bilhões de anos.
Portanto, se for encontrada no mundo real a vida em um planeta de Miller, ela precisaria surgir consideravelmente mais rápido do que aqui.
Rotação do buraco negro
Segundo Lorenzo Iorio, do Ministério da Educação e Pesquisa da Itália, essa vida teria que lidar com mais uma consequência severa da Relatividade Geral tão próxima de um monstro gravitacional.
Um buraco negro pode causar estragos na obliquidade de um planeta (o quanto seu eixo de rotação é inclinado em relação à vertical). A obliquidade da Terra é atualmente de pouco mais de 23° e é essa inclinação que nos dá as estações (verão quando estamos inclinados em direção ao Sol e inverno quando estamos afastados).
Essa inclinação varia entre 22,1° e 24,5° ao longo de um ciclo que dura 41 mil anos, conforme somos puxados pela gravidade de nossos planetas vizinhos. É uma mudança relativamente pequena durante um longo período de tempo e, portanto, obtemos estações estáveis com variações mínimas de temperatura entre elas.
Ao contrário, a obliquidade de um planeta perto de um buraco negro é muito menos estável à medida que se move através do espaço deformado ao redor de seu hospedeiro. "Pode variar várias dezenas de graus em apenas 400 anos", diz Iorio.
Seus cálculos, publicados em fevereiro de 2020, representam a primeira vez que os efeitos da Relatividade Geral foram levados em consideração dessa forma. "É prejudicial para a possibilidade de que se formem e cresçam formas de vida e civilizações estáveis", diz ele.
Tudo isso não tem sentido, a menos que possamos realmente encontrar planetas orbitando buracos negros.
Em 2034, a Agência Espacial Europeia (ESA) planeja lançar a Missão da Antena Espacial de Interferometria a Laser (LISA, na sigla em inglês). Trata-se de um detector incrivelmente sensível para captar ondas gravitacionais — as ondulações criadas conforme os objetos se movem e distorcem o espaço-tempo.
"LISA será sensível o suficiente para ver um planeta de buraco negro do tamanho da Terra na Via Láctea", diz Schnittman. "Para um planeta do tamanho de Júpiter, você está olhando mil vezes mais longe do que isso", diz ele.
Isso traz outras 50 ou mais galáxias locais para a briga, incluindo Andromeda e Triangulum. Talvez então possamos finalmente saber se esses mundos sem sol e sem estrelas da ficção científica estão realmente por aí.