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Garimpo como modo de vida: o drama ambiental que assola o Rio Madeira

Região do Amazonas assistiu à 'corrida do ouro' promovida por garimpeiros na última semana. Aparato policial conduziu operação que culminou com destruição de balsas

30 nov 2021 - 15h11
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Foi pela janela de sua casa de madeira, na pequena comunidade do Remanso, que Jair Cabral Silveira viu uma horda de garimpeiros avançar com suas balsas ladeadas pelas águas do Rio Madeira. Correu para o terreiro para tentar entender o que estava acontecendo. Em seus 74 anos, o ribeirinho que vive em Autazes acostumara-se à rotina das balsas clandestinas que cortam o rio para dragar o leito do rio amazônico em busca de ouro. Mas daquela forma, agrupadas em filas de um lado a outro do rio, não.

De dia, Jair via as embarcações de madeira paradas na frente de seu povoado encravado no município de Autazes e onde vivem cerca de 50 indígenas do povo Mura. De noite, assistia assustado, pela televisão, as imagens daquela imensa curva de rio que corriam o mundo. "Já vi muita balsa nessa vida, mas daquele jeito, nunca tinha visto", diz Silveira.

Espanto maior ainda estava por vir, quando a pequena comunidade de Remanso se deparou, cinco dias depois, com a paisagem transformada em rota de helicópteros, navios da Marinha, lanchas em alta velocidade e uma balsa gigantesca da Polícia Federal, carregada de tudo quanto é tipo de suprimento. Era a caça ao garimpo que havia iniciado, uma resposta que as autoridades se viram forçadas a dar, depois de toda a repercussão causada pela audácia dos garimpeiros.

Na manhã do sábado, 27, teve início a operação que, em dois dias, queimaria e afundaria nas águas turvas do Rio Madeira 131 dragas do garimpo ilegal. "Nunca teve isso aqui no Madeira. Então, o povo ficou muito assustado. O que aconteceu aqui foi uma humilhação para o garimpeiro. Ele é trabalhador, vive na balsa com a família dele."

As palavras do ribeirinho são repetidas pelos povoados que margeiam a calha do rio. A poucos quilômetros dali, na Vila do Rosarinho, Maria Barros Vieira conta que, na manhã domingo, 28, o posto flutuante de sua comunidade, que é usado como uma estação para desembarque de quem chega com os barcos, foi transformado em um alojamento improvisado. "Ficaram sem ter pra onde ir. Tinha mulher, criança de colo. O povo estava sem ter o que comer, nem lugar pra dormir. Passaram a noite ali no flutuante. No outro dia, arrumaram umas doações pra eles. Depois, deram um jeito de ir embora", diz.

A Polícia Federal afirma que, em cada uma das abordagens que realizou, deu algum tempo para que os garimpeiros, seus familiares e ajudantes retirassem seus pertences pessoais das embarcações, para então destruir a balsa, um tipo de ação que foi informada ao Ministério Público Federal e que está prevista nas próprias leis ambientais, em situações como essa. Entre os municípios de Autazes, Nova Olinda do Norte e Borba, porém, o que predomina é o entendimento de que os garimpeiros foram injustiçados.

"A gente sabe que tem gente que aluga balsa de outro pra fazer o serviço, que freta o barco pra empurrar as balsas, mas também tem gente que é dona da draga, que depende daquilo ali pra viver, então é uma coisa difícil de aceitar, ver sua balsa afundando, sem ter como fazer nada", diz Maria.

Em Borba, município mais ao Norte do Rio Madeira e do qual a Operação Uiara chegou a se aproximar, houve uma manifestação dos garimpeiros na orla do rio, no último domingo, contra a destruição dos equipamentos. Ao menos 15 balsas estavam atracadas em frente ao acesso da cidade. O movimento foi pacífico, mas o clima é tenso nas populações locais. Em Humaitá, município mais ao sul do Madeira, a prefeitura chegou a falar em "indenização" aos garimpeiros.

Rio sujo

Esqueça os riscos de contaminação pelo mercúrio utilizado pelos garimpeiros na separação do ouro de outros elementos químicos, quando o metal passa pelo processo de filtragem na dragagem do rio. O que agora preocupa os moradores locais é a suposta contaminação da água pelas 131 máquinas e balsas que foram queimadas e afundaram nas águas do Madeira.

Apesar de tudo queimar rapidamente, os moradores afirmam que a água fica ruim para ser consumida. "Fica ruim. O rio fica sujo com esse diesel espalhado, essas máquinas, as coisas todas que eles afundaram. Queimaram balsa demais. Daqui de casa, a gente só via a fumaça subindo na beira do rio", diz Maria.

Ao receberem mais informações sobre os riscos de contaminação que são trazidos pelo mercúrio, substância que pode comprometer o consumo do curimatã, do pacu e de tantos outros peixes abundantes na região, além da própria água, a reação geral é marcada por uma certa desconfiança. "Eles não jogam o mercúrio no rio. Isso é conversa. Aquilo é muito caro. Eles vão reutilizando sempre, porque também sabem que aquilo polui tudo", diz o ribeirinho Silveira.

A última etapa da operação liderada pela Polícia Federal pretende responder se os ribeirinhos e garimpeiros estão livres de altas doses de mercúrio circulando em seus organismos ou se o material cancerígeno "é uma coisa que falam só para não deixar o povo trabalhar", como afirma Maria.

Resposta na ciência

Nesta segunda-feira, 29, peritos da PF visitaram as vilas que presenciaram, por mais de uma semana, a cidade flutuante formada por mais de 300 balsas de garimpo. Os policiais colheram amostras da água do rio, plantas das margens e catalogaram o material. Depois, foram até as casas dos ribeirinhos, bateram à porta, explicaram o objetivo da pesquisa e cortaram pequenos tufos de cabelo de oito moradores. Cada amostra foi catalogada com os dados pessoais de cada um, colocada em um saco e lacrado.

"Vamos fazer essa perícia em toda a calha do Rio Madeira, desde Humaitá até a foz. As pessoas precisam entender que o preço disso tudo pode sair muito caro, no futuro, comprometendo não só o meio ambiente, mas a saúde da população", diz o superintendente da PF no Amazonas, Leandro Almada.

Os fios dos ribeirinhos e indígenas que vivem na orla do Madeira foram enviados para o Setor Técnico da Superintendência da PF no Amazonas, que vai analisar as amostras. Os peritos dizem que o trabalho será feito com uso de uma tecnologia inédita em todo o País.

Os cabelos brancos de Jair Cabral Silveira estão entre aqueles que foram colhidos pelos peritos e guardados numa caixa. "Pode cortar, fica à vontade", disse o ribeirinho, sentado à sombra de uma árvore, próxima à beira do rio. "Só preciso de um pouquinho, não vou cortar muito, não", respondeu o agente policial. Cordial, Jair agradeceu aos agentes. "Acho bom fazerem isso". Sorriu. O olhar desconfiado.

Estadão
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