Ricardo Galvão: exportações serão 'violentamente afetadas' se Inpe parar de medir desmatamento
Ex-diretor do Inpe diz que Ministério parou de considerar alertas produzidos pelo Instituto, e que consequências poderão ser graves
O físico Ricardo Magnus Osório Galvão, 71 anos, deixou na sexta-feira (02) o comando do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O instituto é a principal ferramenta do governo brasileiro para estudos de sensoriamento remoto - que são usados, entre outras coisas, para medir o desmatamento na Amazônia e outros biomas.
Agora, em entrevista à BBC News Brasil, Galvão diz que a crise que culminou com sua demissão é fruto de um longo desgaste com o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) - o ministro chegou a anunciar que poderia contratar uma empresa privada para substituir o Inpe no monitoramento.
Para Galvão, afastar o Inpe das medições do desmatamento pode afetar "violentamente nossas exportações". Isto porque há grande pressão de consumidores e governos de países desenvolvidos (como países europeus) contra produtos agrícolas que sejam produzidos às custas do desmatamento da Amazônia.
O ex-diretor disse ainda que o ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, ignorou alertas feitos por ele desde janeiro deste ano, de que havia um problema de interlocução entre o Inpe e Salles.
A crise se tornou mais aguda a partir do dia 19 de julho, quando o presidente Jair Bolsonaro pôs em dúvida os dados do Instituto e disse que Galvão estaria "a serviço de alguma ONG".
No dia seguinte, o diretor do Inpe concedeu entrevista defendendo as informações produzidas pelo instituto e criticando as declarações do presidente. Finalmente, na manhã da sexta-feira (02), Galvão foi informado por Marcos Pontes de que seria demitido.
Leia abaixo a entrevista na íntegra.
BBC News Brasil - Como foi a cadeia de eventos que terminou com a demissão do senhor?
Ricardo Galvão - Essa história é meio longa. Vem desde que o governo assumiu, em janeiro, com um posicionamento bastante forte de críticas do ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) aos dados providos pelo Inpe sobre o desmatamento da Amazônia.
Essas críticas elas foram respondidas sempre pelo Inpe de forma bastante cortês, com documentos. Colocamos na página (do instituto) notas técnicas e etc.
Mas as críticas (de Salles) continuaram.
Ao contrário do que havia nos anos passados, desde há muito tempo, que nós tínhamos uma grande interação com o MMA (Ministério do Meio Ambiente), com o Ibama, desde a entrada deste governo essa interação foi cortada.
E nós já tínhamos alertado várias vezes o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações sobre esse embate que estava havendo entre o MMA e nós (do Inpe), e que isso ia trazer problemas sérios no futuro. Sugerimos ao Ministro do Meio Ambiente que voltasse a abrir canais de comunicação nossa com o MMA para explicar os dados etc.
Mas isso não ocorreu. E na verdade, quando chegou em junho, o Inpe começou a publicar mais dados mostrando que os nossos alertas de desmatamento estavam tendo um aumento substancial, e que isto ia representar um problema no futuro.
Eu mandei, então, um ofício ao ministro do MCTIC (Marcos Pontes) em 3 de julho, alertando-o desse problema e sugerindo que fosse reaberto o canal de comunicação com o MMA, com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), de forma que o Inpe pudesse explicar em detalhe a metodologia e como deveriam ser usados os dados.
E inclusive que poderia desenvolver as ferramentas computacionais que eles julgassem necessárias, para que eles fizessem a análise que eles considerassem mais relevante, do jeito que eles queriam.
Mas não houve resposta (de Pontes). Então, quando houve o pronunciamento do presidente da República naquela coletiva que ele deu à imprensa internacional, no dia 19 de julho, eu fiquei realmente bastante indignado.
Porque se o presidente pelo menos tivesse dito que os dados poderiam ter problema, que deveria explicar melhor, inclusive ele tendo bastante acesso, como presidente da República, a tudo que quisesse… Mas ele não entrou em contato conosco e disse, naquela entrevista coletiva, que os dados do Inpe eram mentirosos, categoricamente mentirosos.
Nesta (ocasião) eu realmente fiquei muito indignado. Porque uma acusação dessa, para um servidor público, significa que ele está cometendo crime de falsidade ideológica. Acusação gravíssima. Inclusive alguns colegas se preocuparam e pensaram em entrar logo na Justiça contra ele. Eu falei 'não, vamos esperar'. Esperei um tempo para ver se o Ministério (da Ciência e Tecnologia) entrava em contato comigo, mas não entrou.
E ele (Bolsonaro) disse também que eu estava a serviço de uma ONG internacional. Ou seja, me acusou explicitamente de estar traindo o país, a serviço de interesses outros.
Foi tudo um erro. Foi uma reação errada do governo, porque o que acontece? O Inpe tem esses dados de alerta de desmatamento que foram criados aí na gestão da ministra Marina Silva, em 2003.
BBC News Brasil - Qual é a origem desses dados de alertas de desmatamento?
Galvão - Desde 2004, esses dados são usados e foram usados muito bem nas gestões da Marina Silva, do Carlos Minc, para fazer uma redução drástica (do desmatamento).
Se olhares os gráficos, de 2004 a 2012, a taxa de desmatamento da Amazônia sofreu uma redução drástica. Por quê? Porque nós tínhamos um acordo de colaboração técnica com o Ibama.
Fornecíamos os alertas e eles, antes de atuar, se precisassem de mais detalhes sobre uma área antes de enviar a fiscalização, entravam em contato conosco, e tudo funcionava perfeitamente.
Infelizmente, a partir da entrada do ministro Salles esse relacionamento foi cortado, e ele anunciou para os jornais que ia contratar uma empresa estrangeira para fazer isso que o Inpe faz.
BBC News Brasil - O que vocês acham dessa possível contratação de uma empresa estrangeira para fazer o monitoramento da Amazônia?
Galvão - Isso nós achamos muito errado. Porque a razão da credibilidade que os dados do Inpe têm, que as ações dos governos anteriores tinham, é que o Inpe, que pertence ao MCTIC, é o encarregado de prover os dados e fazer a medida real de desmatamento, e quem deve fazer a fiscalização é o Ibama, que está em outro ministério.
Então, não havia conflito de interesses.
Agora, naturalmente, (se) o Ministério do Meio Ambiente contratar a empresa ele mesmo, há conflito de interesses. A empresa vai dar os dados que eles quiserem.
BBC News Brasil - É preocupante, então?
Galvão - Toda a sociedade acha preocupante.
Então, na hora que o presidente fez aquela acusação muito grave, eu considerei que era importantíssimo reagir de maneira contundente na mesma hora, e foi o que eu fiz.
BBC News Brasil - O que significaria para o país se o Inpe perdesse realmente a atribuição de fazer o monitoramento do desmatamento?
Galvão - Seria a perda total de credibilidade do provimento de dados sobre o desmatamento da Amazônia.
A primeira consequência seria afetar violentamente as nossas exportações.
Até agora eles (MMA) não tomaram nenhuma medida contundente a respeito do desmatamento. Eles reclamam dos dados mas não têm mandado ninguém lá para fazer a fiscalização e punir os culpados. Muito poucas atividades em sítio.
Então, se crescer o desmatamento da Amazônia, é uma perda irreparável para o mundo. E para o Brasil em particular.
Eles não percebem que a Amazônia não é só para explorar minerais. A selva nativa que tem lá é importantíssima para os ciclos meteorológicos no Brasil todo, para as chuvas em todos os lugares. As consequências seriam enormes para a biodiversidade.
Seria seríssimo se eles dessem continuidade a isso.
BBC News Brasil - Como foi a reunião na qual o ministro Marcos Pontes comunicou seu afastamento? Ricardo Salles estava presente?
Galvão - A conversa foi só com o ministro Marcos Pontes. Foi muito construtiva, no começo… aliás, durante toda a conversa. Falamos durante mais de uma hora.
A conversa foi muito boa. Eu expliquei toda a situação a ele, mostrei a ele que nós tínhamos atendido a todas as demandas, alertei sobre esse ofício que tinha mandado a ele avisando que o embate (com o MMA) era desnecessário para o país e ia causar sérios problemas a nível nacional e internacional.
Esse ofício foi agora, no dia 3 de julho, depois que o general (ministro chefe do Gabinete do Segurança Institucional Augusto) Heleno falou contra os dados do Inpe. Lembrei ele disso e disse que o ministério não tomou nenhuma ação. Não entraram em contato comigo, não se preocuparam.
Eu tenho a impressão de que o ministro do Meio Ambiente não tinha ideia clara, até acontecer todo esse problema, da dimensão do Inpe e da respeitabilidade internacional que tem.
E aí quando o presidente falou (contra os dados do Instituto), eu pensei com calma e resolvi dar uma resposta contundente, porque eu fiquei com muito medo de que eles acabassem tirando do Inpe toda essa atividade de monitoramento do desmatamento na Amazônia, que nós temos desde 1988.
BBC News Brasil - O sr. pensa em interpelar judicialmente o presidente por causa das declarações dele?
Galvão - Foi proposto por dois advogados, que eu não vou dizer o nome, de grande prestígio. Mas não o farei. Acho que seria muito prejudicial ao país e eu não tenho interesse de fazer isso.
Mesmo porque a ação que eu tomei já teve o efeito desejado. Toda a comunidade científica está atenta, agora mesmo vou atender a um jornalista dos Estados Unidos. Estão todos muito atentos (aos acontecimentos no Inpe e na área ambiental). E o efeito principal para o Brasil eu já tive, com essa ação.
A não ser que ele continue me acusando, porque ontem ele me acusou de traidor novamente. Mas não pretendo tomar nenhuma atitude não.
BBC News Brasil - O ministro Ricardo Salles disse em coletiva que os dados do (sistema) Deter-B estavam sendo mal interpretados porque eram apenas dados de alerta de desmatamento e não de desmatamento efetivo. O sr. pode explicar essa diferença?
Galvão - Nisso ele está correto. Está na página do Inpe. Isso foi a razão de toda a má interpretação da parte da imprensa.
O sistema de alerta que nós chamamos de Deter-B é um que tira (as informações de forma) mais rápida e mais grosseira para detectar rapidamente os indícios de desmatamento. Então, nós usamos apenas imagens ópticas de satélite para verificar onde está ocorrendo o desmatamento.
Estas imagens de satélite são produzidas pelo próprio Inpe e são imagens que têm uma varredura de área de 800 km de largura, com uma definição de imagem da ordem de 60 metros.
Então, é mais ou menos como numa foto: quando você abre o campo de imagem, perde em foco, se quiser fazer uma analogia. São essas imagens que nós usamos para dar alertas ao Ibama.
Essas imagens são sempre colocadas na página do Inpe porque somos obrigados por lei, inclusive pela Lei de Acesso à Informação, a disponibilizar esses dados de forma aberta.
Pois bem. Nessas informações de alerta, existe acoplado à localização de cada alerta uma área aproximada que nós detectamos onde estaria ocorrendo o desmatamento. Por que colocamos essa área lá? Porque são muitos alertas. Só em janeiro foram 1.300 alertas repassados ao Ibama.
Então, para o Ibama tomar uma decisão e priorizar as suas ações, ele tem que ter uma ideia das áreas principais. Por isso que a área está colocada lá. Mas está escrito na página do Inpe que essas áreas não podem ser usadas para computar exatamente quanto foi desmatado naquele mês, em relação a outros meses.
Por quê? Podemos detectar desmatamento em uma área, e depois aquilo não se consolida, a leitura foi influenciada por nuvens, etc.
Então, essa consolidação das áreas realmente desmatadas nós fazemos com satélites de maior precisão, de maior resolução, e usando também satélites com imagem de radar. Porque o radar penetra através das nuvens.
Só que isso é um sistema muito mais complexo, que exige muito mais tempo de computação e que não daria para fazer um alerta dia a dia. Essa informação nós fazemos ano a ano. Aquilo sim é o dado consolidado, oficial do Brasil, produzido pelo Inpe e considerado pelo mundo todo, de quanto houve desmatamento. É o chamado sistema Prodes.
O que aconteceu é que a AGU (Advocacia-Geral da União) entrou no nosso site e somou os dados e disse que, do mês de junho de 2018 para o mês de julho de 2019 houve um acréscimo de 88% da área desmatada. Eles concluíram isso, mas na verdade era uma acréscimo no número de alertas. O Inpe nunca disse isso, e o presidente interpretou que nós tínhamos passado para a imprensa esse dado errado. Essa foi a origem da confusão.
BBC News Brasil - Se o sr. tivesse de responder a essa alegação do presidente da República a respeito de ONGs e de interferência estrangeira, o que o sr. diria?
Galvão - Não há nada do que ele possa me acusar e eu inclusive o desafiei a comprovar isso.
Se ele tinha (evidências), como ele disse, de que eu estava a serviço de ONGs, como presidente da República, o que ele deveria ter feito? Aberto imediatamente uma sindicância investigativa para apurar isso, de tal maneira inclusive que eu pudesse responder levando advogados. Mas ele não fez nada disso. O que ele fez foi me acusar em público. Se ele tinha essa indicação e não o fez, ele cometeu o que a gente chama de prevaricação.
(Prevaricação ocorre quando) o gestor público não faz, sabendo de coisas erradas, não toma as medidas corretas. Ele não acusou (formalmente) porque ele não tem (evidências).
Não existe nada disso, nem para mim nem para ninguém no Inpe, de prestar serviço para ONGs, ainda mais ONGs internacionais.
Eu só queria dizer que todo este embate está me afetando fortemente, e à minha família, me causando preocupação. Mas eu estou satisfeito. (O que eu fiz) foi mais do que a defesa do Inpe, (foi) uma defesa da ciência nacional e da importância dos cientistas manterem seus dados verdadeiros. E divulgá-los independentemente das pressões políticas.