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'Como superei abusos de pais dependentes de heroína e me tornei professora universitária'

Katriona O'Sullivan nasceu em um contexto de pobreza e vício, e enfrentou muitos obstáculos ao longo do caminho. Hoje é doutora e leciona em universidades.

10 jun 2023 - 11h12
(atualizado às 11h35)
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Katriona O'Sullivan publicou o livro 'Poor' (Pobre, em tradução literal) em maio, editado pela Penguin Books
Katriona O'Sullivan publicou o livro 'Poor' (Pobre, em tradução literal) em maio, editado pela Penguin Books
Foto: KEITH ARKINS / BBC News Brasil

A britânica Katriona O'Sullivan tinha tudo para ter uma vida caótica.

Sua família era pobre, seus pais - viciados em heroína - não cuidavam dela nem de seu irmão, e desde muito jovem ela enfrentou obstáculos que poderiam parecer impossíveis de serem superados por outras pessoas.

Quando engravidou na adolescência e se tornou mãe solteira do filho John, entregou-se ao álcool, usou drogas e acreditou que sua vida se limitaria a limpar banheiros públicos.

Mas o aparecimento de pessoas-chave em momentos em que ela precisava de ajuda para sair do buraco acabou levando-a para a faculdade, onde ela se formou, obteve um doutorado em psicologia e se tornou e professora universitária.

Esta é a sua história, contada em primeira pessoa.

Eu posso vê-los claramente. Eles parecem fantasmas.

Desde os meus 5 anos de idade, meus pais pareciam fantasmas, sem vida por trás de seus olhos. Nada.

Eu amava meus pais. E vê-los morrer diante dos meus olhos, desaparecendo por dentro e espiritualmente, foi horrível.

Meu pai era um homem animado, bem-educado e engraçado que havia arruinado sua vida.

Encontrá-lo na cama após uma overdose quando eu era muito pequena foi simplesmente horrível.

Lembro claramente que abri a porta do quarto, ele estava com as calças abaixadas e tinha se injetado. Eu o encontrei despedaçado e meu coração se partiu naquele momento. Era como se eu estivesse fora do meu corpo.

Eu ouvi minha própria voz gritando "papai, papai" e então John, um de seus amigos, subiu as escadas correndo. Ele estava apavorado tentando acordá-lo, mas meu pai estava inconsciente e à beira da morte.

Eu estava ali parada com o que pensei ser o cadáver de um homem que eu realmente amava muito.

O amigo do meu pai chamou uma ambulância e o que mais me impressionou foi como os paramédicos trataram meu pai. Eu pensei que eles estavam ali para salvá-lo, mas estavam bravos com ele. Eu podia ver a forma como eles me olhavam, porque eu era uma garota suja e maltrapilha.

A mesma coisa aconteceu com meu pai. Eles o culpavam e brigavam com ele na cama.

Eu ficava perguntando se meu pai estava morto e eles me ignoravam como se eu não estivesse ali.

A única pessoa que poderia e tinha me amado até então seria tirada de mim. Foi horrível. É um daqueles momentos que estão gravados em mim e nunca vão embora.

Desde minhas primeiras lembranças, era normal ver minha mãe ou meu pai injetando heroína. Eu levantava de manhã e não tinha comida em casa. Se encontrasse um pão e um pouco de açúcar no armário, eu fazia um sanduíche de açúcar: pão, açúcar, pão.

Katriona O'Sullivan teve uma infância muito difícil
Katriona O'Sullivan teve uma infância muito difícil
Foto: BBC News Brasil

Sempre havia pessoas dormindo na casa. Pessoas que ficaram após a festa da noite anterior. Pessoas que eu conhecia, pessoas que eu não conhecia. Chutar latas pelo caminho, ver queimaduras de cigarro no sofá, brigas, uso de drogas. Esse era o meu dia a dia.

Um dia eu estava com uma amiga e vi a mãe dela abraçá-la, chamá-la para almoçar e certificar-se de que ela estava bem. Lembro-me de ver isso e pensar: 'Minha mãe não faz isso. Por que não almoçamos? Por que você não me abraça?' Naquele momento percebi que minha mãe era diferente. Minha mãe não me amava. E eu pensei que era porque havia algo de errado comigo.

Nós não tomamos banho e isso é um problema quando você vai para a escola. Eu molhava a cama, levantava de manhã e não tinha roupas limpas. Não escovava os dentes, quase não penteava o cabelo. Ia para a escola provavelmente com as mesmas roupas do dia anterior, com a mesma calcinha e, obviamente, cheirava a urina.

As outras crianças não queriam brincar comigo porque eu fedia.

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Bateram na porta e meu primeiro pensamento foi: "Não, estou encrencada!"

"Seu pai está aqui?", perguntou o Sr. Pickering, professor da escola.

Eu sabia que meu pai estava bêbado, que estava bebendo na sala. Eu o chamei, ele veio até a porta e eu me escondi atrás dela.

"Eu esperava vê-lo hoje à noite, O'Sullivan, para uma reunião de pais e professores. Eu realmente queria lhe dizer como sua filha é incrível, quanto potencial ela tem e como ela é inteligente. Eu realmente acho que você deveria ter vergonha de si mesmo por não apoiá-la mais", disse Pickering.

Eu podia ouvir a vergonha do meu pai em sua voz.

Este momento em particular, quando aquele entrou na minha casa e desafiou meu pai, foi tão poderoso para mim que sempre serei grata.

Mas com todo o caos ao meu redor, comecei a reprovar na escola.

Katriona O'Sullivan aos 13 anos
Katriona O'Sullivan aos 13 anos
Foto: BBC News Brasil

Eu era uma criança raivosa, uma adolescente rebelde. Eu não deixaria ninguém me dizer o que fazer.

Cometi crimes desde os 13 anos. Ia à escola regularmente, mas também matava aula e andava pelas lojas, bebia, usava drogas nos fins de semana. Fiz todas essas loucuras, mas ao mesmo tempo pensava que tentaria me comportar bem.

Aos 15 anos, apesar das coisas ruins que fiz, ainda era ingênua. Um dia acompanhei uma amiga para fazer um teste de gravidez e me testaram também.

"Katriona, deu positivo", disse a enfermeira.

"Oh, isso é ótimo. Obrigado." Eu respondi. Eu pensei que positivo significava algo bom.

"Não, não, não. Deu positivo", ele insistiu.

"Sim, estou feliz! Obrigada!"

"Katriona, você está grávida."

Meu Deus. Eu soube naquele momento que nunca mais voltaria para a escola.

Enfrentar os professores com a barriga crescendo não era algo que iria acontecer. Não aguentava mais. Joguei a toalha.

Fui a uma cabine telefônica e liguei para o meu namorado. Eu disse a ele que estava grávida e a resposta foi: "Você pode me ligar mais tarde? Estou cansado".

E assim, naquela solidão, me desfiz. Sentei-me, inclinei-me para trás e disse: "Não posso continuar tentando. Isso é o mais longe que cheguei. Isso é o mais longe que cheguei".

Lembro que um dia cheguei em casa e todos estavam sentados na sala. Eu poderia dizer que algo estava errado porque os olhos do meu irmão estavam vermelhos. Minha mãe e meu pai disseram que eu não podia ficar lá. "Nós queremos que você vá embora." E eles me expulsaram.

Esse período da minha vida foi o mais difícil.

Fui morar em um abrigo, onde ninguém me visitava. Eu estava sozinha. Completamente sozinha.

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Ouço uma batida na porta, espio pelo olho mágico e é Pickering, novamente me surpreendendo.

"Estou tão feliz por ter te encontrado. Eu organizei tudo. Você pode vir para a escola duas manhãs por semana e fazer suas aulas de língua, literatura e matemática para terminar o Ensino Médio. Tem uma vaga na creche, então você pode fazer isso."

Eu realmente queria dizer não. Eu tenho um bebê. Mas aquele homem acreditava em mim - "tenho que tentar porque ele acredita em mim" - e então eu disse sim.

Katriona O'Sullivan e seu filho em 1996
Katriona O'Sullivan e seu filho em 1996
Foto: BBC News Brasil

Consegui, mas depois do Ensino Médio voltei a ser a pobre mulher que era antes e acabei caindo na bebida, nas drogas e no vício, sem poder usar aquele impulso que os estudos me deram para transformar minha vida.

Eu não queria ser minha própria mãe. Eu queria ser melhor. Portanto, ter meu filho me forçou a pensar em como melhorar emocionalmente e na vida.

Naquela época, trabalhava como faxineira na estação de trem. Era o lugar mais sujo que alguém poderia ver em sua vida. Lembro-me de limpar banheiros pensando: é só isso?

Só não conhecia ninguém que tivesse feito algo diferente. Eu não conhecia ninguém como eu que foi para a faculdade. Eu não conhecia ninguém com quem pudesse me relacionar.

Quando morava em Dublin encontrei uma antiga amiga que estudava na Trinity College.

Ela veio de uma família pobre como eu, então pensei: se ela pode, eu também posso.

Fui à sala da diretora do Trinity College, bati em sua porta e ela me atendeu.

"Karen é minha amiga e ela me disse que está estudando aqui. Eu adoro ler e quero mudar de vida", eu disse, entre gaguejos.

Ela me sentou e me pediu para contar a ela minha história.

Sem saber, aquela era minha entrevista para entrar na faculdade.

Ao voltar para a sala de aula, senti que estava no caminho certo. Eu tenho habilidades, habilidades incríveis. Eles só tinham que me capacitar para que eu pudesse usá-las.

Tive que fazer um curso de recuperação, depois fiz psicologia, me formei com louvor e fiz uma doutorado. Após a conclusão, fui convidado pela minha universidade para começar a lecionar.

Em cada palestra que dou, começo com a minha própria história. Conto de onde venho, qual é minha família e como cresci. Essa sou eu.

Eu me sinto diferente, mas também sinto que preciso ser fiel a quem sou e garantir que todos saibam que pessoas como eu podem alcançar o mesmo que todos os outros.

*O testemunho pessoal de Katriona O'Sullivan foi obtido de um episódio do programa de rádio Lives Less Ordinary do Serviço Mundial da BBC. Você pode ouvir o episódio em inglês clicando aqui.

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