A situação das famílias brasileiras viajantes na pandemia
As pessoas que deixaram suas vidas para viver o sonho de conhecer o mundo em veículos convertidos em lar enfrentam preconceito
A escalada do
coronavírusatingiu de forma dramática a comunidade dos viajantes. As famílias que deixaram seus empregos nas grandes cidades para viver o sonho de conhecer o mundo em
trailers, motorhome ou outros veículos convertidos em lar enfrentam agora o preconceito por onde passam e vivem uma rotina de incertezas e desorientação das autoridades. Organizados em grupos de
WhatsApp, os viajantes criaram uma rede de solidariedade para situações de emergência e troca de experiências.
"Somos considerados transmissores de vírus. Não conseguimos ficar isolados. Quem vive na estrada não tem para onde voltar", contou a psicóloga Carolina Vargas. Ela "vive" na estrada em uma casa rodante desde fevereiro de 2019 com o marido, o engenheiro Caio Pañella, que deixou o mercado financeiro, e duas filhas, Luiza de 9 anos e Gabi, de 7 anos. Eles rodaram até o momento 33.500km em um motorhome montando numa van Renault Master, L3h2 (modelo) 6 metros de comprimento passando pelo Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Peru e Colômbia. Desses quilômetros, foram 4000 km por água, sobre barcos. Tudo relatado em um diário nas redes sociais chamado @sardinhasnalata.
Carolina conta que dentre os países que estiveram, o Brasil, Uruguai, Argentina e Chile foram os mais estruturados para pessoas que vivem na estrada. "Os postos de gasolina são refúgios fundamentais para viajantes, onde podemos pernoitar com segurança, usar o banheiro, tomar banho e em alguns deles, inclusive há máquinas de lavar roupa que se pode utilizar a um custo muito baixo. Nesses países existem também muitos campings, alguns municipais com custo bem baixos. Além dos parques onde também podemos ficar com alguma estrutura", disse
Em dezembro de 2019, quando surgiram os primeiros casos de coronavírus na China, a família estava no Peru. "Estávamos ainda distantes dos efeitos sociais, econômicos e políticos do vírus, preocupados em chegar em segurança no norte peruano para embarcar rumo a Iquitos", disse Carolina.
A casa rodante chegou em Tabatinga, na tríplice fronteira, no dia 9 de março, vindo de Santa Rosa, no Peru. Naquele momento as fronteiras ainda estavam abertas, mas o clima já era de apreensão com o avanço da pandemia. A família ficou dos dias 9 até 18 na região entre Tabatinga e Letícia, na Colômbia, onde há um livre transito entre as cidades. Ficaram primeiro em um circo e depois foram para o estacionamento Câmara Municipal. Foi quando começaram os rumores que podiam fechar a fronteira.
Eles conseguiram sair a tempo de escapar de uma quarentena forçada na fronteira, mas ao chegar em Manaus encontraram um cenário desolador. Para não correr o risco de estacionar na rua, dormiram de favor na primeira noite no estacionamento de um hotel, mas tiveram que deixar o local às 6 da manhã. Foram então para orla de Ponta Negra, mas logo foram abordados por um funcionário da prefeitura que determinou que saíssem do local. O agente público informou que todos os parques e campings estavam fechados, mas não soube dizer para onde poderiam ir nessa situação.
"Os viajantes têm muitos contatos em vários grupos Nesse momento veio até nós uma pessoa, um 'apoiador de viajeiros', que nos levou para casa de campo do irmão dele e entregou a chave na nossa mão sem nos conhecer. A gente ficou desconcertado de tanta generosidade", contou Carolina. A decisão da família foi embarcar com o veículo para Santarém e de lá alugar um refúgio na paradisíaca Alter do Chão.
Seriam três dias de barco, mas a viagem foi interrompida no meio devido a um decreto do governador do Pará, Helder Barbalho, que fechou as fronteiras do estado. "Ficamos, como muitos viajantes, desnorteados. As cidades pequenas, segundo relatos, não queriam receber pessoas de fora por medo do coronavírus e, com nosso carro, todos saberiam que éramos de fora, ainda mais com a placa de São Paulo", contou a psicóloga. Eles agora estão estacionados em Manaus, onde alugaram um apartamento.
Estádio
O administrador Yuri Spakov, 49, é dono de uma pousada em Florianópolis, mas há 4 anos vive na estrada com a esposa, a engenheira agrônoma Fernanda, 48, e duas filhas, Maria Beatriz, de 14 e Ana Luiza, de 20 anos, além de um cachorro boxer. Ele percorrem a América do Sul em um Ford Classe C de 23 pés, um veículo que acolhe até 5 pessoas dormindo confortavelmente. A família tinha saído de Bariloche, na Argentina, e estava a caminho de Mendoza, quando a epidemia atingiu seu pior momento até então no país vizinho.
Eles foram vendo as restrições aumentar dia após dia.
No último dia 17, eles passaram por um posto de gasolina quando foram "denunciados" pelo proprietário e tiveram que sair rapidamente. Passaram então por nove bloqueios até que serem detidos pela polícia e a vigilância sanitária. Depois de uma longa e confusa conversa com as autoridades, foram obrigados e ir para Vila Isabel, um povoado de 2 mil habitantes, e confinados em um estádio de futebol sem nenhuma estrutura. "Nos colocaram em um estádio municipal cercado por arame farpado e um alambrado, de onde não podíamos sair", contou Spakov.
Para sorte da família havia uma pequena venda em frente ao estádio de onde pediam alimento por WhatsApp e deixavam o dinheiro no portão. A vigilância sanitária passava diariamente para medir a febre de todos, que não tiveram nenhum sintoma. Mesmo assim a presença da casa rodante alarmou a cidade, que montou rondas em turnos para circular o local e garantir que não saíssem de lá. O clima era de hostilidade.
"Quando nosso dinheiro acabou, não podíamos ir ao caixa eletrônico. Então o Daniel, da Vigilância Sanitária, pagou do próprio bolso", contou o administrador. No período de confinamento, a família virou uma espécie de atração. "As pessoas passavam pelo alambrado e tiravam foto. Parecíamos um bicho de outro mundo. Uma mulher veio dizer para irmos embora", contou o viajante.
Para enfrentar o tédio, a família jogava partidas futebol no campo público e jogava cartas, a espera de um desfecho.
Na sexta-feira a família Spakov finalmente foi liberada para seguir viagem rumo a Florianópolis, mas o percurso começou com uma incerteza. Haverá onde abastecer e comprar comida no caminho?