Brasil corre risco de nova onda de covid como a Europa?
Especialistas apontam preocupações para os próximos meses, mas dizem ser possível evitar ou diminuir o impacto de aumento de casos e mortes por aqui
Será que o aumento recente de casos, hospitalizações e mortes por covid-19 na Europa vai se repetir no Brasil? E o que pode ser feito para evitar uma nova onda por aqui?
Essas são as perguntas que epidemiologistas, médicos e pesquisadores em saúde pública brasileiros mais ouviram nos últimos dias.
De forma geral, a resposta deles é que precisamos entender os momentos distintos da crise sanitária em cada lugar, mas podemos tomar alguns cuidados para que um cenário ruim no exterior não seja "importado" para cá — como, aliás, aconteceu com as ondas anteriores.
"Muita gente compara o que está acontecendo em partes da Europa com o que pode acontecer por aqui. Não é tão simples assim", avalia o estatístico e pesquisador em Saúde Pública Leonardo Bastos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
"Na minha opinião, não precisamos nos preocupar no curto prazo com essa onda europeia. Já no médio e longo prazo, a coisa pode mudar de figura."
A situação na Europa
Após uma queda e uma estabilização de casos e mortes por covid-19 entre abril e setembro, a Europa começou a ver um novo aumento a partir de outubro.
Em novembro, essas estatísticas explodiram e confirmaram uma nova onda da pandemia por lá.
Isso tem a ver com uma série de fatores, como a circulação de variantes mais transmissíveis, como é o caso da Delta, e a resistência às vacinas por parte da população de alguns países.
Alguns avaliam que também houve uma liberação prematura das restrições, especialmente o abandono do uso das máscaras.
Vale notar que a situação varia bastante de país para país. Nas nações com a campanha de vacinação mais avançada, caso de Portugal e Dinamarca, a taxa de mortalidade das últimas semanas segue bem mais baixa em comparação com os locais onde a cobertura segue muito abaixo do ideal, como Bulgária e Romênia.
Um gráfico feito pela Comissão Europeia ajuda a entender essas diferenças:
Data shows us that the higher the vaccination rate, the lower the death rate. #COVID19 #VaccinesWork pic.twitter.com/mORrrQOPsj
— European Commission 🇪🇺 (@EU_Commission) November 23, 2021
Em uma projeção divulgada na terça-feira (23/11), a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou que, se nada for feito, a Europa pode contabilizar cerca de 700 mil mortes pela doença durante a temporada de inverno, que começa em dezembro. Até o momento, o continente tem cerca de 1,5 milhão de óbitos pela covid-19.
A OMS também afirmou que parte desses óbitos pode ser evitada com o reforço de algumas ações básicas: o avanço da vacinação, o uso de máscaras e a prevenção de aglomerações.
"Para convivermos com o vírus e continuarmos com nossas rotinas, precisamos de uma abordagem que envolva as vacinas e as demais medidas", discursou Hans Kluge, diretor regional da OMS na Europa.
"Todos nós temos a oportunidade e a responsabilidade de ajudar a evitar essa tragédia desnecessária e a perda de vidas, limitando os abalos à sociedade e à economia durante o inverno."
Representantes do Centro Europeu de Controle e Prevenção de Doenças (ECDC) fizeram um alerta parecido.
Em um posicionamento oficial divulgado na quarta-feira (24/11), a entidade alertou para o alto risco de um impacto da covid-19 no continente ao longo dos próximos meses.
A diretora do ECDC, Andrea Ammon, afirmou categoricamente: os governos de cada país devem acelerar a vacinação, administrar doses de reforço nos adultos e reintroduzir as medidas restritivas.
"Essas três ações devem acontecer já. Não é uma questão de escolher apenas uma delas", alertou.
A agência não entende, por ora, que há a necessidade de lockdowns nacionais, mas sugere a volta de políticas públicas, como o uso de máscaras, o incentivo a trabalhar de casa, a manutenção de uma distância segura entre as pessoas e a redução das interações sociais.
A situação no Brasil
Após um primeiro semestre bastante complicado, os números da pandemia entraram em queda em todo o país.
Nas últimas semanas de novembro, as médias de casos, hospitalizações e óbitos por covid no Brasil alcançaram os índices mais baixos desde que começaram a ser medidos, em abril de 2020.
De acordo com os especialistas, isso se deve em parte à onda devastadora do primeiro semestre, que infectou muita gente e, por consequência, gerou um nível de imunidade considerável entre os que sobreviveram.
O respeito ao uso de máscaras e a manutenção de algumas medidas e políticas públicas, que mantiveram estabelecimentos com operação reduzida por boa parte do ano, também contribuíram.
Por fim, foi crucial a adesão do povo à vacinação. No momento, 61% dos brasileiros já estão totalmente imunizados.
"Isso foi determinante para a gente ter um maior controle sobre a pandemia", considera a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo.
Essa transformação no cenário pandêmico fez com que recentemente muitas cidades e Estados brasileiros aliviassem as restrições e chegassem a anunciar até a liberação do uso de máscaras, movimento parecido ao que foi feito na Europa meses atrás.
E essa é justamente uma das ameaças ao futuro da pandemia no Brasil.
À deriva
Na opinião de Bastos, da Fiocruz, a comparação entre o que acontece no Brasil e na Europa não é justa por causa de uma diferença fundamental entre os dois lugares: a realização de testes para detectar os casos leves de covid-19.
Nosso país não desenvolveu como outras partes do mundo um amplo programa de testagem, capaz de identificar os pacientes com sintomas iniciais ou menos graves, que não exigem uma avaliação médica.
"No Brasil, as estatísticas sobre os quadros de covid leves são pobres, ruins e subnotificadas", diz o pesquisador.
"Os dados mais confiáveis que temos são de hospitalização e mortes por SRAG [Síndrome Respiratória Aguda Grave]."
E aqui vale uma explicação breve sobre a evolução da doença: a infecção com o coronavírus demora até 14 dias para dar sintomas.
Após os incômodos iniciais, o quadro pode se agravar e exigir uma visita ao hospital nas duas semanas seguintes.
E, caso exista a necessidade de internação, o paciente pode ficar na enfermaria ou na UTI por cerca de duas a quatro semanas até se recuperar (ou morrer).
Ou seja: o período entre a infecção e o desfecho pode chegar a dois meses.
"Essa falta de dados sobre os casos leves faz com que o Brasil esteja sempre monitorando o que aconteceu no passado, com semanas de atraso", avalia o cientista da computação Jones de Albuquerque, do Departamento de Estatística e Informática da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Em outras palavras, a atual melhora nos índices reflete uma queda importante na transmissão do coronavírus ocorrida em outubro. E não temos a menor ideia de como está a situação de novos casos agora.
Monitorar casos leves é importante, porque são justamente essas infecções que fazem o vírus circular e geram toda uma sequência de eventos que cria as novas ondas da pandemia.
Aos poucos, a transmissão aumenta em escala geométrica e atinge os não vacinados ou os que foram imunizados há muitos meses.
Isso eleva o risco para a parcela mais vulnerável às complicações da doença, que podem ter de ficar internados e correm risco de morrer.
Em última análise, essa maior procura leva o sistema de saúde à saturação, com falta de leitos, profissionais e insumos.
É justamente o cenário que se desenrola na Europa com a nova onda — e que pode ser evitado (ou minimizado) no Brasil.
E a vacinação?
Mas como explicar esse agravamento da pandemia num momento em que as campanhas de imunização avançam em muitos lugares, inclusive no continente europeu?
É importante lembrar que as vacinas em uso foram desenvolvidas com um objetivo principal: diminuir a taxa de hospitalizações e mortes.
Elas até reduzem um pouco a transmissão do coronavírus, mas esse não é seu principal foco.
"E foi justamente isso o que aconteceu: a vacinação freou os casos mais graves", esclarece o médico José Luiz de Lima Filho, do Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami Lika, da Universidade Federal de Pernambuco.
E mesmo agora, com a Europa batendo recordes de novos casos por semana, as taxas de hospitalizações e óbitos pela doença por lá seguem num patamar mais baixo em comparação com as ondas anteriores.
É um sinal claro de que as vacinas funcionam para aquilo que elas foram desenvolvidas, principalmente quando uma parcela maior da população recebeu as suas doses.
Mesmo assim, é esperado que ocorra esse aumento nas internações e nas mortes num período de agravamento: entre milhões de infectados, uma parcela deles, infelizmente, desenvolverá as complicações típicas da enfermidade.
Essa parcela é reduzida com a vacinação, mas ela continua a existir (até porque nenhuma vacina é 100% eficaz).
O que o momento europeu ensina ao resto do mundo, acreditam os especialistas, é que não dá pra abandonar as demais medidas preventivas (máscaras, distanciamento físico, etc.) subitamente, enquanto uma parcela considerável da população ainda não foi imunizada.
Essa observação se aplica ao Brasil: cerca de 40% das pessoas ainda não estão devidamente vacinadas. Isso representa uma enorme massa de suscetíveis para uma infecção pelo coronavírus.
Na Europa, países com uma taxa de vacinados similar ou até superior à nossa, como Alemanha e Áustria, se encontram atualmente em uma situação complicada.
Para Lima Filho, a comunicação feita sobre as vacinas contra a covid-19 foi equivocada. "As pessoas acreditam que estão totalmente protegidas após as duas doses, não precisam mais usar máscaras e podem se aglomerar", diz o médico.
"Esse comportamento faz aumentar a taxa de transmissão viral e coloca em risco toda a sociedade."
O que pode ser feito agora?
Com as evidências disponíveis, não dá para afirmar categoricamente que a nova onda da Europa também avançará Brasil adentro.
No entanto, os pesquisadores entendem que é possível tomar algumas precauções para diminuir o risco de que isso se concretize no início de 2022.
"E o primeiro passo é aumentar obrigatoriamente a fiscalização nas fronteiras, com testagem de todo mundo que entra no país por portos, aeroportos e países vizinhos", pontua Lima Filho.
Um programa amplo de testagem, que consiga detectar os casos leves e assintomáticos, também é essencial.
"Poderíamos ter unidades sentinela de casos suspeitos de covid-19, como acontece com o monitoramento da dengue, por exemplo. Quando a prefeitura percebe um aumento repentino numa região, ela pode enviar uma equipe ao local para investigar e fortalecer as ações preventivas ali para que o problema não se espalhe", sugere Bastos.
Como a experiência europeia reforça, também não é hora de abandonar completamente as máscaras ou promover aglomerações em locais fechados.
A vacinação precisa avançar mais — inclusive com a aplicação de uma terceira dose em toda a população adulta ao longo dos próximos meses, como anunciado pelo Ministério da Saúde recentemente.
A antecipação da dose de reforço no Brasil, aliás, pode ser outra ferramenta importante para lidar com esse perigo de uma nova onda por aqui.
"Será um desafio enorme convocar toda a população para a nova etapa da campanha, mas essa foi a primeira vez que o Ministério da Saúde agiu em vez de reagir [a um problema já instalado]", elogia Maciel.
"Precisamos entender que todas essas medidas - vacinas, máscaras, distanciamento… - adicionam camadas extras de proteção e são essenciais para evitar novas ondas", resume Lima Filho.
E as festas?
Por fim, é preciso considerar os eventos e as datas comemorativas que ocorrem entre o final e o início do ano, como Natal, Ano Novo e Carnaval.
Esses momentos são marcados por festas e encontros entre familiares e amigos, onde há maior risco de transmissão do coronavírus.
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil entendem que essas ocasiões representam uma ameaça, mas é difícil pedir que as pessoas continuem em completo isolamento após tantos meses de restrições.
No entanto, é possível pensar em adaptações e cuidados. Entram aqui novamente as recomendações de uso de máscara e a realização de encontros em locais abertos ou com boa circulação do ar.
"E precisamos colocar cada data em contexto. Passar o Natal em família, num grupo reduzido, é muito diferente de comemorar o Réveillon na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, cercado de dezenas de milhares de outras pessoas", compara Bastos.
Embora um pouco mais distante, o Carnaval também já levanta discussões acaloradas, e não há muita certeza de como estará a situação no Brasil no final de fevereiro.
Ao menos 71 cidades localizadas no interior e no litoral de São Paulo decidiram cancelar as festas do ano que vem, como informa o portal G1.
"É realmente muito incerto o que pode acontecer depois do Carnaval, e o ideal é a gente ter cautela", concorda Bastos.
Considerando que a festa deve ocorrer em muitas partes do país, seria importante que os gestores pensassem em medidas para proteger os foliões e todos os cidadãos, como os comprovantes de vacinação, a realização de eventos em locais abertos, o controle de lotação, a criação de programas de testagem e o uso de máscaras de melhor qualidade.
Albuquerque entende que vivemos novos tempos e não haverá uma "volta ao normal", como conhecíamos o mundo antes de a covid-19 chegar.
"Através da educação, aprenderemos a conviver com o coronavírus e desenvolveremos uma consciência de acordo com a situação de casos, hospitalizações e mortes daquele momento", antevê o pesquisador.
Ou seja: em períodos mais tranquilos, será possível fazer as atividades com menos amarras. Agora, quando os números começarem a aumentar de novo (como ocorre agora na Europa), será preciso adotar medidas mais restritivas.
"Vamos precisar desconstruir a noção de escritório, de ficar oito horas consecutivas numa sala fechada e lotada, de passar seis meses com aulas ininterruptas na escola...", exemplifica.
"A covid mudou a noção de temporalidade do mundo e teremos que nos harmonizar com essa nova realidade."