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Coronavírus

Brasil profundo se torna epicentro do novo coronavírus

Cidades do interior do país se tornam epicentro enquanto capitais podem sofrer "tsunami" em efeito bumerangue

26 jun 2020 - 12h48
(atualizado às 13h03)
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Sem leitos de terapia intensiva ou equipamentos essenciais para tratar pacientes da covid-19, as cidades do interior do Brasil se tornaram o epicentro da doença provocada pelo coronavírus e podem provocar um "tsunami" de novos casos nas capitais, à medida que pessoas em estado grave dependem dos grandes centros para receber atendimento, alertaram especialistas.

Familiares de Andrelina Bizerra da Silva, 49, que morreu a caminho de clínica com suspeita de Covid-19, levam caixão de volta para casa em Breves, na Ilha do Marajó
10/06/2020
REUTERS/Ueslei Marcelino
Familiares de Andrelina Bizerra da Silva, 49, que morreu a caminho de clínica com suspeita de Covid-19, levam caixão de volta para casa em Breves, na Ilha do Marajó 10/06/2020 REUTERS/Ueslei Marcelino
Foto: Reuters

Depois de chegar ao país pelos aeroportos das capitais e se espalhar pelas grandes cidades e suas regiões metropolitanas, o novo coronavírus passou a circular nas últimas semanas com mais força nas cidades menores, onde há profunda carência de atendimento hospitalar, aumentando os riscos de um número cada vez mais alto de óbitos em decorrência do vírus que matou quase 55 mil brasileiros em quatro meses.

"No caso brasileiro, o refluxo, o bumerangue de casos que vai voltar para as capitais, é uma tsunami", disse à Reuters o médico e neurocientista Miguel Nicolelis, que coordena o Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste.

"Existe um efeito bumerangue, o vírus vai para o interior, semeia pelas rodovias, você começa a ter transmissão comunitária, as pessoas ficam doentes, ficam graves, e voltam para a capital para ser atendidas", acrescentou o professor catedrático da Universidade Duke, na Carolina do Norte, no EUA, que está temporariamente morando em São Paulo durante a pandemia.

Somente 9,6% dos municípios do país (536 de um total de 5.570) têm leitos de UTI, e o número cai para apenas 421 cidades quando se trata de unidades de terapia intensiva simultaneamente com equipamentos importantes para o cuidado hospitalar de alta complexidade, de acordo com estudo da Fundação Oswaldo Cruz com dados de fevereiro.

A epidemia da covid-19 passou a atingir o interior com mais força do que as capitais a partir da semana epidemiológica de número 21, encerrada em 23 de maio. Na semana passada, 60% de todos os casos novos da doença no país foram registrados em cidades menores, em uma brusca mudança em relação a abril, quando a epidemia estava concentrada 65% nas capitais, de acordo com dados do Ministério da Saúde.

Até o momento, a maior parte da mortes por covid-19 no Brasil ainda está nas regiões metropolitanas, com 40.008 óbitos registrados até quinta-feira, ante 14.963 no interior. No entanto, a divisão de novos óbitos, que era de quase 65% a 35% em abril, fechou a semana passada praticamente em 50% para cada.

Ao mesmo tempo em que mudou para o interior, a epidemia ganhou velocidade e passou a se disseminar em ritmo recorde, chegando a 89% das cidades do país. Na semana encerrada em 20 de junho foi registrado o recorde de 217.065 novas infecções, um aumento de 22% em relação à anterior -- jogando por terra uma expectativa das autoridades de um possível platô devido à uma estabilização nas grandes cidades.

Com o avanço dos casos, é esperado que o número de óbitos nas cidades menores aumente dentro das próximas semanas, de acordo com Nicolelis.

"Os óbitos numa pandemia como essa têm um atraso em relação ao aumento de casos. A pessoa tem que ficar doente, tem que ficar grave e infelizmente, com a gravidade, infelizmente uma fração falece. Isso leva duas semanas, 20 dias. Essa tsunami de casos... nós vamos ver esses óbitos ocorrer nas capitais e também no interior", disse.

Segundo o pesquisador, Estados das Regiões Sul e Centro-Oeste, que foram poupados do pior da pandemia em um primeiro momento por não terem recebido casos diretamente do exterior, agora também serão atingidos com força, uma vez que a pandemia já avançou pela malha rodoviária brasileira.

"A invasão do vírus ao Brasil se deu pelos aeroportos internacionais, quem não tem se beneficiou. Agora serão afetadas inclusive regiões que foram poupadas da primeira explosão", afirmou.

A interiorização ocorreu simultaneamente com um afrouxamento nas capitais das medidas de distanciamento social decretadas para conter o avanço da doença, com uma reabertura das atividades econômicas que levou muitas pessoas de volta às ruas. Entre elas, muitos moradores do interior que trabalham nas capitais ou viajam com frequência.

O médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e ex-presidente da Anvisa, alertou que enquanto houver pessoas em movimento, a epidemia vai se manter ativa.

"O espalhamento é esperado. A doença chegou, se alimentou da densidade demográfica e agora ela está se alimentando da movimentação. Vai para o interior com os caminhoneiros, vai para o interior com os caras que vêm comprar coisas na grande cidade para revender no interior, sacoleiras e pelo comércio. É o caminho", disse.

"A epidemia vai procurar gente, e onde tiver gente ela vai encontrar e se disseminar."

A chamada interiorização da pandemia está entre os diversos problemas enfrentados pelo Brasil no combate à doença, como a escassez de testes, a flexibilização do isolamento ainda com casos de covid-19 em alta, duas trocas no comando do Ministério da Saúde e uma falta de coordenação nacional, uma vez que o presidente Jair Bolsonaro costuma minimizar a doença, que já chamou de "gripezinha".

Nesse cenário, o país se tornou o segundo do mundo com mais casos e mortes em decorrência da covid-19, atrás apenas dos Estados Unidos, com mais de 1,2 milhão de casos confirmados da doença e 54.971 mortes até quinta-feira. Especialistas estimam, porém, que o número real de casos seja de ao menos 3 milhões, podendo chegar a 10 milhões, devido à notória subnotificação.

"A curva brasileira não para de crescer, algumas cidades deram alguns sinais de queda, mas temos curvas sobrepostas, talvez já tendo passado do pico em Rio e São Paulo, mas com cidades menores crescendo", disse o pesquisador Christovam Barcellos, do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz.

"É como se fossem várias ondas acontecendo ao mesmo tempo no Brasil. Depois das cidades grandes vem a onda do interior, e isso não pára. A duração é muito grande, são curvas sobrepostas", acrescentou.

O avanço da doença sobre as cidades menores poderia ter sido minimizado com a imposição de barreiras sanitárias, que deveriam ter sido implantadas logo no começo da pandemia, na avaliação de Vecina Neto. Agora, uma das alternativas para conter a disseminação é criar pontos nas estradas para realização de exames da covid-19 em caminhoneiros, acrescentou.

"Identificar um caminhoneiro que está com uma contaminação, pelo RT-PCR, é um bom caminho para tentar diminuir a disseminação", afirmou. "Identificar o cara que vai levar o vírus para algum lugar é uma coisa positiva, acho que é o mínimo que a gente pode fazer."

Para Nicolelis, o Brasil ainda tem tempo de evitar que o vírus provoque um estrago ainda maior, mas precisa mudar de estratégia no enfrentamento.

"Dá tempo, mas nós ainda não usamos a estratégia correta, que não é esperar no hospital os casos inundarem o seu hospital, é ir para o ataque, atacar o vírus onde ele nos ataca, na casa das pessoas, nos bairros, nos municípios do interior, nas periferias das grandes cidades, diagnosticando precocemente os casos, isolando as pessoas em equipamentos públicos mesmo antes de desenvolverem sintomas graves, testando as pessoas", disse.

"É assim que você ganha a guerra, quebrando a replicação do vírus nas casas, e não nos hospitais. Você não ganha nenhuma guerra no hospital."

Veja também:

O drama das periferias brasileiras em meio à pandemia:
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