Burnout afetou 1 em cada 7 médicos da linha de frente
Relacionada ao estresse no ambiente do trabalho, síndrome é reconhecida como doença ocupacional pelo Ministério do Trabalho
Ao menos um em cada sete médicos na linha de frente da covid-19 no Estado de São Paulo apresentou sintomas severos de burnout durante a pandemia, segundo estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Dos 301 médicos das redes pública e privada de saúde entrevistados na capital e no interior, 45 relataram, em grau elevado, ao menos dois dos três fatores que desencadeiam a síndrome: esgotamento emocional, falta de realização profissional e cinismo ou indiferença em relação aos pacientes.
A síndrome, relacionada ao estresse no ambiente do trabalho, é reconhecida como doença ocupacional pelo Ministério do Trabalho.
De acordo com a professora Laura Câmara Lima, que orientou a pesquisa realizada pela graduanda Gabriela Correia Netto, o burnout tem impacto importante na atividade do médico, pois afeta bastante o desempenho do profissional. "A exaustão resulta em incapacidade para resolver as questões e dificuldade para se relacionar com as pessoas, geralmente desencadeando a depressão", explicou.
A patologia é típica de trabalhadores que cuidam de pessoas, como professores, assistentes sociais e profissionais da medicina.
De acordo com o Ministério da Saúde e a Organização Panamericana de Saúde, o burnout, ou síndrome do esgotamento profissional, é uma resposta prolongada a estressores emocionais e crônicos do trabalho. No caso, o médico, antes muito envolvido afetivamente com seus pacientes ou com o trabalho em si, desgasta-se e, em dado momento, desiste, perde a energia ou se "queima" completamente.
No estudo da Unifesp, as pesquisadoras usaram uma escala já validada de estresse no trabalho para estabelecer a relação com a síndrome. Elas criaram um questionário que foi respondido pelos médicos.
"Seria burnout se ao menos duas das três dimensões estivessem muito alteradas. Se a pessoa está apenas deprimida, desanimada com a profissão, não é suficiente para caracterizar o burnout. Seria preciso um segundo fator, como quando o médico já não vê sentido em seu trabalho ou manifesta certa indiferença por aqueles que estão sob seus cuidados."
Dos entrevistados, 65% eram médicas, já que elas predominam nas redes de saúde pesquisadas. Mais da metade - 52,8% - atuam em mais de um local, tanto na rede pública quanto na privada, sendo que 36,5% do total têm mais de 15 anos de profissão.
A maioria dos entrevistados - 67,1% - trabalha em hospitais, enquanto 38,5% trabalham em unidades de emergência (pronto-socorro); 37,5% em Unidades Básicas de Saúde (UBS), 19,6% em ambulatórios e 22,2% em clínicas. Apenas 11% são médicos de UTI. O percentual supera 100% porque muitos declararam trabalhar em mais de um lugar.
Exaustão e esgotamento emocional
A maioria dos médicos que tiveram burnout apresentou exaustão ou esgotamento emocional. "Para a exaustão, os fatores que mais apareceram foram o cansaço ao fim da jornada, sentir que está trabalhando demais, que já se levanta de manhã esgotado. O que mais causou esse esgotamento foi o excesso de tarefas, pois com a covid, eles ficaram sobrecarregados", explicou Laura.
Na escala de zero a seis, usada para medir o nível de esgotamento, a média ficou em 3,54, considerada alta. Também foi elevado - 3,15 - o índice de médicos que não se realizam profissionalmente. Já o índice de cinismo ou despersonalização ficou mais baixo, com média de 2 pontos na escala de até seis.
Nesse quesito, segundo a coordenadora, ficou evidente que os médicos se preocupam com o risco de estarem ficando menos sensíveis às angústias e sofrimento dos pacientes.
A pesquisa mostrou que os médicos com menos tempo de atividade profissional ficaram mais expostos à exaustão, cinismo e não realização profissional. Dos entrevistados, 63,5% tinham menos de 15 anos de profissão. "Aqueles com mais tempo resistiram melhor, talvez por terem mais experiência em lidar com as situações", avaliou a coordenadora.
Foram feitas duas coletas de dados, a primeira de julho de 2020 a janeiro de 2021, a segunda, mais restrita, em agosto último. "Com os dados da primeira coleta em mãos, decidimos verificar se as taxas de burnout tinham sofrido alteração devido à chegada da vacina. O que a gente percebeu é que mais médicos se sentem menos realizados agora do que no auge da pandemia."
Em uma análise pessoal, a pesquisadora avalia que, na época, até por não ter vacina, os médicos achavam que eles faziam muita diferença no combate à covid-19.
Esse sentimento prevalecia sobre o medo de se contaminar. "Hoje, eles estão com mais medo de trabalhar, o que não acontecia lá atrás. Provavelmente eles estão observando que a pandemia continua, mas os cuidados diminuíram, com muita gente sem máscara e todas as atividades de volta", disse.
Também se observou que, na primeira fase da pandemia, os médicos tinham mais medo de contaminar seus familiares. Agora, o medo de se contaminar a si mesmo ficou maior.
A graduanda Gabriela observou que médicos em pronto-socorro apresentaram índice menor de satisfação com o trabalho. Já os médicos que atendem nas UBS relataram maior esgotamento emocional e maior cinismo do que aqueles que trabalham em UTI.
"Esse resultado vai contra o que a gente acha que seria um padrão, pois a UTI parece ser o local de maior estresse para o médico." Já a UBS, segundo ela, é a porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS), onde chega de tudo e com alta demanda.
Estresse continua, diz médico
O médico Vinicius Spazzapan, que se formou em medicina há 7 anos e, nos anos seguintes, se especializou em pediatria e neurologia infantil, relata que mesmo com o número de casos e mortes caindo, devido à vacina, a situação de estresse no trabalho está até pior do que no auge da pandemia.
"Há uma demanda reprimida que cada vez mais procura auxílio, um SUS (Sistema Único de Saúde) em processo de desmonte, sem infraestrutura e sem equipe multidisciplinar. No caso das crianças que atendo, venho observando atraso importante de fala e de linguagem, muito em função da privação de afeto e pobreza extrema. Procuram auxílio e ficam em filas gigantescas, devido ao desmonte de locais de atendimento."
Spazzapan atua em unidades de saúde da capital e, entre maio e junho do ano passado, teve de lidar com sua própria infecção pelo vírus e, em seguida ser o médico da mulher, dos dois filhos - na época, um deles era recém-nascido -, da sogra e dois avós que também se contaminaram. O estresse intenso deixou marcas e um abalo psicológico que ele só conseguiu contornar com o apoio da esposa, médica psiquiatra.
Mais de um ano depois, ele considera que a situação só piorou devido aos efeitos da pandemia. "Estamos trabalhando até mais, os ambulatórios estão cheios de gente que passa muita necessidade, que pede relatórios para conseguir um auxílio. Para falar a verdade, estava até melhor na pandemia quando tinha o auxílio emergencial. Eu acho que só piorou. Estou me sentindo mais cansado, exaurido, as pessoas estão apáticas e sem esperanças, extremamente frustradas, só reclamando, reclamações condizentes com a situação de crise que o país vive. Estou mais cansado, com cobrança pessoal de mais tempo para meus filhos, mais tempo para mim."
Segundo ele, nesse período, o único avanço que se conseguiu foi a vacinação. "Nossas condições de trabalho só pioraram. Não houve suporte para os médicos, não foi criado nada específico para tratar de médicos e profissionais de saúde, nem para a saúde mental da população em geral. Minha esposa é psiquiátrica e vejo que a procura por atendimento aumentou bastante."
A coordenadora de Saúde Mental da Secretaria da Saúde do Estado, Rosângela Elias, disse que o aumento na demanda por atendimento em saúde mental começou junto com a pandemia e não vai acabar já. "Vamos sofrer com a questão da saúde mental por um bom tempo ainda. Tudo isso impacta as pessoas e mais ainda os médicos e profissionais de saúde que lidam diretamente com a doença."
No início, segundo ela, foi criado um serviço para atender de forma on-line os médicos da linha de frente, mas não houve comparecimento. Foi então que surgiu a ideia do 'Autoestima', um projeto que envolve profissionais da Universidade de São Paulo (USP) para atendimento on-line, usando uma plataforma desenvolvida pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT).
Os atendimentos são direcionados aos profissionais de saúde e está sendo estendido também à população, através de consultas terapêuticas breves. O serviço, no entanto, é restrito à capital.