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Caso de brasileiro com cabeça perfurada por vergalhão revela capacidade de compensação do cérebro

Dez anos após acidente, operário que perdeu cerca de 11% de massa encefálica leva vida praticamente normal; segundo pesquisadores, o lado não afetado assumiu as funções da área lesionada

31 ago 2022 - 05h11
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RIO - Em 2012, um operário da construção civil de 24 anos perdeu um volume considerável de massa encefálica depois que uma barra de ferro atravessou sua cabeça, em um dos mais chocantes acidentes de trabalho já registrados. Quem testemunhou a cena jamais poderia esperar que o homem sobrevivesse, muito menos sem sequelas graves. Contra todas as expectativas, no entanto, ele vive hoje uma vida praticamente normal.

Em 2012, um operário da construção civil do Rio, de 24 anos, teve uma barra de ferro atravessada na cabeça
Em 2012, um operário da construção civil do Rio, de 24 anos, teve uma barra de ferro atravessada na cabeça
Foto: Fiocruz/Divulgação / Estadão

Depois de dez anos estudando o caso, cientistas brasileiros e americanos conseguiram comprovar o motivo do "milagre". Ele foi possível porque o lado do cérebro não afetado pelo acidente assumiu as funções da área lesionada. A descoberta inédita, publicada na revista científica Lancet, abre caminho para novos tratamentos contra situações igualmente graves. Neles, regiões significativas do cérebro também são afetadas, mas por problemas como derrame cerebral e acidentes em geral.

O acidente aconteceu em 16 de agosto de 2012. O jovem operário trabalhava numa obra no Rio. Ele amarrou um vergalhão de dois metros e meio de comprimento. Fez então sinal para um colega que estava a 15 metros de altura puxar a barra de ferro para cima. Quase chegando ao seu destino, o vergalhão se soltou e caiu na cabeça do trabalhador.

Foi um impacto de cerca de 300 quilos. Embora o operário estivesse de capacete, a barra de ferro entrou pelo lado superior direito de sua cabeça. Sua ponta saiu entre os olhos.

Lúcido e orientado

Mesmo com o vergalhão atravessado na cabeça, o jovem chegou ao hospital lúcido e orientado. Conversou com os médicos. Informou, corretamente, dados pessoais como nome, telefone e endereço. Foi submetido a uma cirurgia que durou seis horas. Ficou ainda mais duas semanas internado. Segundo os médicos que o atenderam, ele perdeu aproximadamente 11% de massa encefálica, do lado direito do córtex pré-frontal.

Considerada uma das mais importantes, essa região do cérebro é responsável pela tomada de decisões e comanda os impulsos, a atenção, o raciocínio, o planejamento das ações e o controle das emoções. Tamanha perda numa área tão crucial do cérebro certamente traria sequelas graves. Além disso, o único registro disponível na história da medicina de um acidente similar indicava que o operário teria alterações comportamentais significativas.

Foi em 1848. O operário americano Phineas Gage, então com 25 anos, sofreu um acidente muito parecido com o do brasileiro. Perdeu cerca de 15% de massa encefálica. A única diferença foi que, no caso de Gage, a barra de ferro entrou pelo lado esquerdo da sua cabeça. Os relatos mais conhecidos da época, no entanto, dão conta de que, após o acidente, o americano se tornou agressivo e grosseiro. São recorrentes as discrições de que ele "não era mais o mesmo homem".

Preocupados sobre o que poderia acontecer ao operário brasileiro, pesquisadores da Fiocruz, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no Brasil, e da Escola de Medicina Albert Einstein e da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, decidiram acompanhar o caso. Queriam traçar paralelos com a história do americano. O trabalho é fruto da tese de doutorado de Pedro de Freitas, sob orientação do professor Renato Rozental, pesquisador da UFRJ e da Fiocruz.

A pesquisa contou com recursos não disponíveis na época do acidente do americano. Foram exames como tomografia, eletroencefalograma, ressonância magnética, modulação da atividade elétrica cerebral e exames neuropsicológicos para avaliar as disfunções no lobo frontal e estimar as consequências da lesão.

Epilepsia pós-traumática

O operário brasileiro não apresentou alterações no comportamento. A única sequela do grave acidente é uma epilepsia pós-traumática. É comum em caso de ferimentos graves na cabeça e é controlável com medicamentos. Os pesquisadores começaram, então, a questionar os relatos relacionados a Phineas Gage. Descobriram outras impressões, menos conhecidas. Elas sustentam que ele não teria tido alterações comportamentais significativas.

"Os relatos da época em que ele morou no Chile (de 15 a 20 anos depois do acidente nos EUA) não descrevem um homem grosseiro. Lá, ele trabalhou como cocheiro, lidava com cavalos, que são animais sensíveis, e com o transporte de passageiros em charretes. Era tido como uma pessoa educada, sensível e responsável.", conta Renato Rozental. "Eu acredito na autenticidade dos relatos do médico que o examinou no Chile porque os nossos resultados mostram que a compensação (cerebral) em pacientes com lesão frontal unilateral é possível. Nosso estudo acabou contribuindo também para a compreensão do caso de Phineas Gage, considerado um dos grandes mistérios da neurociência."

No caso do brasileiro, já logo depois do acidente, os pesquisadores constataram que o seu lobo frontal esquerdo começou a compensar o lado lesionado. Isso ocorria desde que aquele lado não fosse recrutado para outra atividade. As diferentes áreas do cérebro se comunicam por meio de impulsos elétricos. Quando uma área é lesionada, a atividade elétrica começa a funcionar mal e essa comunicação cerebral interna piora muito. Entretanto, explica Rozental, o hemisfério sadio começa a compensar essa atividade.

Raio X mostra barra de ferro atravessada na cabeça de operário brasileiro. Foto: Fiocruz/Divulgação

Memória e desenho

Para testar essa compensação, os pesquisadores pediram ao operário brasileiro que observasse um desenho cheio de detalhes. Em seguida, deveria copiá-lo sem olhar. Depois de três minutos, eles repetiram o pedido. Por fim, pediram novamente, depois de meia hora. Os desenhos se mostraram muito acurados, mesmo após o período mais longo do experimento.

No entanto, quando os cientistas suprimiram a atividade elétrica no lado sadio do cérebro e pediram que ele repetisse a tarefa, o resultado não foi tão bom. Isso mostrou uma capacidade deteriorada tanto da memória quanto do desenho. O operário também tem dificuldades para tarefas que exijam o recrutamento simultâneo dos dois lados do cérebro.

"Não houve declínios perceptíveis em seu processamento mental, raciocínio moral, comportamento social, capacidade de resolver problemas diários, capacidade de interagir com colegas de trabalho ou com familiares ou capacidade de agir com eficiência", conclui o trabalho.

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Estadão
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