'Colhemos frutos do rigor anterior', diz coordenador de marketing brasileiro que mora em Melbourne
Guilherme Dorf afirma que lockdown rigoroso é cumprido à risca em casos de aumento descontrolado de casos de covid-19
Guilherme Dorf, Melbourne, Austrália
Antigos hábitos
"Depois de um ano bem difícil, a gente já quase retomou a vida normal. No nosso dia a dia, praticamente não sentimos que existe a doença, mas toda hora a gente está sendo lembrado que existe alguma coisa, que tem de se distanciar. Aqui, quase todo mundo hoje em dia pega transporte público, vai para o trabalho, tem opções de lazer. É bem parecido com o que existia antes. Acho que o único momento mais específico, que a gente se lembra que existe o vírus, fora os anúncios constantes, é que quando a gente entra no transporte público. Aí temos de usar a máscara. Fora isso, é bem impressionante. Parece até que a gente já esqueceu alguns ensinamentos, o que é a parte meio negativa. Mas todo mundo está voltando a ter hábitos que a gente tinha antes da pandemia. É quase coisa do passado."
Confiança no amanhã
"É difícil falar em coisa do passado porque aqui existe uma compreensão muito grande que a doença é uma coisa muito volátil, que pode voltar a qualquer momento. E, de novo, os anúncios do governo ainda estão muito presentes. Mas se pode falar que é coisa do passado porque a gente já consegue se reunir com amigos, já há eventos grandes, já consegue ficar em lugares fechados sem máscaras. É um momento muito diferente do que a gente viveu no ano passado. Agora é um momento muito positivo. Todo mundo está muito confiante."
Na dúvida, lockdown
"Há duas perspectivas diferentes. Desde o começo do ano que a situação está bem controlada, mas, por outro lado, a gente vive uma coisa que é difícil explicar para o Brasil. Cada vez que há qualquer tipo de aumento descontrolado no número de casos [de covid-19], e quando falo descontrolado, quero dizer dez novos casos, o que a cidade fez, e isso aconteceu há uns dois meses, é adotar o lockdown. Um lockdown mais rigoroso possível, num período curto de tempo, até entender quais são os desdobramentos disso."
Oito ou oitenta
"No começo do ano, a gente estava vivendo quase vida normal e, de repente, na semana em que estava tendo o Australian Open (fevereiro) aqui, foram cinco dias de lockdown super rigoroso até que se conseguiu o rastreio de contato, viu-se quais eram as pessoas, que a doença não ia se espalhar mais, e aí voltou-se à vida normal. Então, apesar de desde o começo deste ano a gente ter uma situação bem controlada, de vez em quando a gente tem essas lembranças. E aí vai do 8 para o 80. Da vida normal para as regras mais rigorosas possíveis para conter o contágio."
Senso de coletividade
"O governo australiano está muito preocupado com as novas variantes do vírus. Eles entendem que é muito diferente do que houve no ano passado. Na Austrália, é uma situação bem específica. O governo e a população são muito cautelosos, conservadores. Quando tem de se unir para fazer alguma coisa para o bem geral, se não é para sair de casa, as pessoas ligam para a polícia e denunciam se o vizinho está se encontrando com um amigo. Houve muita multa de pessoas que estavam na rua sem motivo e com tudo fechado. Não havia motivo para ir para a rua. Não havia o que fazer. Funcionou muito bem."
Vacinação a passos lentos
"Outra coisa que é muito diferente aqui é a vacinação, que está muito devagar. Acho que isso ocorre até pelos números de infecção estarem muito controlados. O governo não está com muita pressa. Eles estão muito cautelosos para escolher as melhores vacinas. Começou agora a ter a vacinação dos grupos prioritários, mais até os profissionais de saúde do que idosos. Mas quando você compara com o Brasil, parece até contraditório, mas aqui está em ritmo bem lento. No ano passado todo mundo queria muito se vacinar, mas neste ano parece que as pessoas não estão com aquela pressa do ano passado. As outras estratégias funcionaram muito bem."
Regulando a balança
"Com relação ao Brasil, é sempre muito delicado falar, porque as situações são muito diferentes. É difícil comparar. Mas o principal recado para os brasileiros é falar para as pessoas que têm condição de ficar em casa, não dependem de sair todo dia para trabalhar, que fiquem em casa. As pessoas devem saber que o vírus é real, ele mata, e que há maneiras práticas de se proteger. Usar máscara, não se expor, manter o distanciamento social. São coisas que funcionam. Mas há um ponto importante também, que é a desigualdade. As pessoas gostam de falar das diferenças culturais entre brasileiros e australianos, de fato, existem, mas há uma outra coisa: é fácil ficar em casa quando você está recebendo auxílio emergencial grande. Isso não tem no Brasil. Eu não sou cidadão australiano, tive auxílio diferente do auxílio do cidadão daqui. Eles receberam quantias muito generosas para ficar em casa e respeitar as regras. O maior problema deles foi a saúde mental. Mas pouca gente passou fome."
Presença do Estado
"O governo ajudou muito o cidadão e também os negócios. Foi um momento que deixou muito claro qual é o papel de um Estado. Houve até uma divisão entre os australianos e os imigrantes, que não receberam o volume de auxílio dos cidadãos. Mas ainda assim, eu, por exemplo, consegui acessar auxílio do governo estadual para estudantes internacionais, que aqui são um negócio gigantesco. Consegui pela faculdade, que também é um negócio enorme enorme. O ano passado foi muito difícil para mim e o auxílio não compensou o que eu deixei de receber, mas pelo menos foi um alento. Mostrou que eu não estava totalmente jogado às traças."
Uma São Paulo segura
"Eu moro aqui há quase três anos. A gente chegou durante a Copa do Mundo de 2018. Melbourne é muito parecida com São Paulo. Multicultural, bem urbana. A questão de esportes, saúde, áreas verdes, é muito presente. Melbourne tem 5 milhões de habitantes, é a segunda cidade mais populosa do país, depois de Sydney. Lembra muito São Paulo. É difícil comparar, porque São Paulo tem 20 milhões e aqui as coisas funcionam muito bem. Em Melbourne, o poder público é muito presente. É uma cidade muito segura. Há grandes eventos esportivos."
Mão pesada nas fronteiras
"Uma outra coisa que é bem diferente do Brasil é a questão das fronteiras. A fronteira internacional está fechada há quase um ano. Tem muito australiano que está fora de casa há quase um ano. E quando tem esses picos de casos, porque aos poucos as pessoas vão voltando, eles fecham também as fronteiras estaduais. É uma mão pesada, mas todo mundo entende."
Colhendo frutos
"Uma última coisa interessante é que o governo faz anúncios para que, se você tiver qualquer sintoma, procure postos de saúde para testar se você contraiu o coronavírus. E o governo dá um auxílio extra para você não circular e não espalhar o vírus. Isso ajuda no distanciamento social. Eu trabalhava com eventos, grandes grupos, e hoje sempre trabalho com as mesmas pessoas, há treinamento para cuidados, os locais são mais controlados. Hoje em dia, menos, mas no começo do ano quando fechava, era total mesmo. Hoje a gente está colhendo os frutos daquele rigor. E há muitos negócios de fora que querem vir para cá. A minha empresa, que trabalha com produção de filmes, sente isso. Tem produções dos EUA querendo vir. Olha, é preciso falar também que a gente está aqui, abençoado, mas a gente sente pela situação do Brasil. Nossas famílias, amigos, estão no Brasil. A gente sofre e até sente até certa vergonha por estar aproveitando isso aqui, porque parte da gente continua lá."