Coronavírus: Como cidade na fronteira com Brasil se tornou a líder de casos de covid-19 na Colômbia
Ministro da Saúde colombiano diz que falta de diálogo com o governo brasileiro impediu a adoção de uma estratégia comum de combate à pandemia em Leticia, vizinha à brasileira Tabatinga, no Amazonas.
Um dos dez países que fazem fronteira com o Brasil, a Colômbia detectou em seu mapa que o maior número de casos do novo coronavírus em relação ao tamanho da população ocorre em Letícia, na região fronteiriça com o território brasileiro.
A cidade na Amazônia colombiana, no sul do país, fica em frente a Tabatinga, no Estado brasileiro do Amazonas. As duas cidades são tão integradas que foram apelidadas de "cidades gêmeas" e muitas vezes, diante da miscigenação cultural, fica difícil identificar com precisão quem é de Leticia ou de Tabatinga, como reconhecem autoridades colombianas e estudiosos.
Em entrevista à BBC News Brasil, o ministro da Saúde da Colômbia, Fernando Ruiz, atribuiu a quantidade de casos de covid-19 em Leticia, capital do Departamento do Amazonas, ao que ocorre no Brasil, especialmente no Estado do Amazonas (onde há situações dramáticas em Manaus e nas comunidades indígenas) e à ausência de um diálogo com autoridades brasileiras que pudesse ter gerado medidas de contenção contra o vírus.
"Esse contágio chegou, com certeza, através do Brasil. Por tudo o que está acontecendo no Estado do Amazonas, no Brasil, no rio Amazonas e em Manaus. É uma situação que afeta também a nossa população indígena", disse Ruiz.
Leticia também faz fronteira com o Peru, que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), é, junto com o Brasil, um dos países mais afetados pelo novo coronavírus na América do Sul.
Mas, para o ministro colombiano, foi o vínculo entre Leticia e Tabatinga que propiciou a importação do vírus.
'Poderíamos ter tido uma estratégia comum'
Segundo ele, a forte ligação entre as duas cidades e o fato de Leticia estar mais próxima de Tabatinga do que da capital do país, Bogotá, impediram que as fronteiras fossem fechadas na região.
As primeiras tentativas de diálogo, afirmou Ruiz, ocorreram durante as gestões dos dois ex-ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, e a missão de buscar uma aproximação foi feita, então, através do Ministério das Relações Exteriores colombiano.
Segundo a revista Semana, foi realizada reunião entre os ministros das Relações Exteriores dos dois países com os ministros da Defesa e da Saúde da Colômbia.
No encontro, como anunciou o presidente Iván Duque, em seu programa diário "Prevención y Acción" (prevenção e ação, em tradução livre), no dia 15 de maio, ficou acertado o reforço militar bilateral na fronteira, para maior controle do coronavírus, a busca por "homogeneizar medidas", principalmente com Tabatinga, "onde vimos um crescimento exponencial de casos de covid-19", e a troca de informações semanais entre autoridades dos dois países sobre a situação.
Apesar da reunião, Ruiz entende que a situação poderia ser melhor se o diálogo tivesse começado antes. Na sua visão, dificultou a ausência do ministro da Saúde do Brasil na conversa.
Após a saída de Teich da pasta, o general Eduardo Pazuello assumiu o cargo interinamente no dia 16 de maio, um dia depois da reunião entre a Colômbia e o Brasil.
"Poderíamos ter tido uma estratégia comum (de combate ao coronavírus), com quarentena e testes de casos para conter o avanço da doença onde compartilhamos fronteiras", disse o ministro Ruiz.
O ministro afirmou que se tivesse sido realizado diálogo entre os dois governos, desde o início da preocupação colombiana com a situação na fronteira, os números não seriam altos em Leticia.
Ele observou, porém, que, ao contrário da Colômbia, que implementou o isolamento preventivo e obrigatório no dia 25 de março, o governo federal brasileiro não declarou quarentena, que foi adotada por iniciativa dos Estados.
"O governo colombiano agiu rápido. Levamos pessoal e insumos, como respiradores, para Leticia. E trouxemos, de avião, para Bogotá os casos mais sérios", afirmou.
Para ele, já que não foram realizadas medidas conjuntas de contenção do vírus, os dois países deveriam trabalhar, juntos, por exemplo, no fortalecimento do sistema de saúde da região.
"A contenção de casos teria sido melhor. A situação não teria ficado descontrolada, como chegou a ficar. Mas o principal agora é fortalecer o serviço de saúde", disse.
'Política errática' do governo brasileiro
Ruiz estima que hoje as duas cidades, Leticia e Tabatinga, devem estar com os mesmos índices de casos de coronavírus, já que os moradores colombianos e brasileiros se deslocam "frequentemente" de um lado e de outro da fronteira para trabalhar e voltar para casa.
Quando perguntado se brasileiros poderiam estar sendo atendidos nos hospitais de Leticia, ele respondeu: "É muito difícil saber quem é de um lado ou de outro (da fronteira)".
Uma integração que remete ao que ocorre nas fronteiras entre o Brasil e o Paraguai, entre o Brasil e a Argentina e entre o Brasil e o Uruguai.
"O Brasil é um país muito grande, mas não temos uma fronteira tão povoada como no Paraguai e na Argentina com o Brasil. Letícia é a nossa cidade de maior contato (com o Brasil) e no restante está toda a área amazônica", disse.
Na visão do analista político Alejo Vargas, professor da Universidade Nacional da Colômbia, "a política errática do governo brasileiro" contra o novo coronavírus permitiu que a situação em Leticia fosse alcançada pelo que ocorre no Brasil.
"Em Tabatinga, houve efeito colateral dessa politica errática do governo brasileiro, e como Tabatinga é colada em Leticia, o vírus entrou por esse lado da fronteira", disse Vargas.
Para ele, sem uma coordenação conjunta e no local entre a Colômbia, o Brasil e o Peru, incluindo suas Forças Armadas, será difícil controlar o vírus na região, dominada por rios e com forte presença indígena.
"Leticia e o Estado do Amazonas não têm muitos habitantes, mas lá está uma população que nos preocupa e nos interessa muito, a dos povos indigenas colombianos", afirmou.
Procurado pela BBC News Brasil, nesta sexta-feira, para saber se há reunião prevista com a Colômbia, a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde, em Brasília, respondeu que não há data prevista para o encontro.
Em nota, afirmou que "desde o início da pandemia causada pelo novo coronavirus, o governo brasileiro manteve diálogo com os países fronteiriços e tomou medidas, como o fechamento da fronteira terrestre com a Venezuela, que faz divisa com a cidade de Pacaraima, em Roraima, e intensificou a ampliação da assistência de saúde, principalmente no estado do Amazonas, na Região Norte, com grande concentração de população indígena, e que faz fronteira com outros países".
A assessoria informou ainda que o governo brasileiro, por meio do Ministério da Saúde, entregou em maio um auxilio emergencial a Tabatinga e a São Gabriel da Cachoeira, localizado na fronteira com a Colômbia e a Venezuela.
Ao todo, afirmou a pasta, foram entregues "duas toneladas de equipamentos, materiais e insumos, além de reforço de 11 profissionais de saúde, entre médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e técnicos de enfermagem, que estão atuando na linha de frente do enfrentamento do coronavírus".
A nota disse ainda que, para o Hospital de Guarnição de Tabatinga), foram destinadas sete unidades de aspiradores portáteis, sete unidades de desfibriladores, 15 oxímetros e 10 respiradores, entre outros insumos.
Coronavírus na Presidência
Na quarta-feira (27/5), quando a Colômbia tinha 23 mil casos e 736 mortos por coronavírus, Leticia registrava 55 mortes, e 35% da população de cerca de 48 mil habitantes tinham testado positivo para a doença, segundo Ruiz.
De acordo com dados divulgados nesta semana pela Organização Pan-americana de Saúde (Opas), braço regional da OMS nas Américas, o Estado colombiano do Amazonas lidera em quantidade de casos da doença por 100 mil habitantes.
Na sequência, estão Cartagena, Barranquilla e Bogotá, a capital do país, que como o Amazonas, onde está Leticia, superam a incidência nacional de 43,6 casos por 100 mil habitantes.
Nesta sexta-feira, a Presidência colombiana confirmou que 13 empregados da Casa de Nariño, sede da Presidência, tiveram resultados positivos para o novo coronavírus. E, que submetido novamente ao exame, Iván Duque não tem a doença, informou o portal do jornal El Espectador.
País com cerca de 50 milhões de habitantes, a Colômbia tem sido elogiada internamente por ter aplicado medidas que evitaram, até aqui, uma maior propagação do novo coronavírus.
No entanto, na quinta-feira, depois que o governo Duque anunciou a maior flexibilização da quarentena, com a abertura gradual de museus, bibliotecas, salões de beleza e áreas da educação, setores políticos criticaram a abertura.
Em sua conta no Twitter, a prefeita de Bogotá, a opositora Claudia López, do partido de centro-esquerda Aliança Verde, escreveu: "Abrem shoppings, salões de beleza e etc e dizem que 'prorrogam o isolamento'. O que se espera? Que abram e os clientes não compareçam? Continuar pedindo isolamento e quarentena com abertura cada vez maior e milhares de pessoas nas ruas confunde e não protege (a população)".
Para o ministro da Saúde da Colômbia, a quarentena no país tem servido para fortalecer o sistema de saúde e preparar o pessoal da saúde para um possível pico da doença.
Ele estima que a Colômbia tem uma das mais amplas disponibilidades de leitos da América Latina, mas acha que o pico chegará em algum momento diferente em cada país.
"Cada país da América Latina está tendo velocidade diferente de casos da doença. A Colômbia e a Argentina tomaram medidas cedo. Mas todos vamos ser afetados e teremos um pico. É preciso ter a preparação do sistema de saúde e do pessoal da saúde e num sistema de flexibilidade que não permita que a economia afunde.", disse Ruiz.
A Argentina, assim como o Uruguai, o Paraguai e o Peru, implementaram quarentenas e fechamento de suas fronteiras em março. Mas enquanto a Argentina, o Uruguai e o Paraguai registram, como a Colômbia, números proporcionalmente mais baixos de casos de covid-19, o Peru, enfrenta, nas últimas semanas, incremento de registros do novo coronavírus.
Analistas peruanos atribuem o fato, entre outros motivos, à necessidade de os peruanos terem que sair para trabalhar, já que cerca de 70% dos trabalhadores no país são informais.