Coronavírus: por que primeira pessoa infectada no Brasil pode nunca ser descoberta
Especialistas apontam que propagação de vírus pode ter começado antes de 25 de fevereiro, quando primeiro paciente foi diagnosticado com a covid-19.
O primeiro caso do novo coronavírus em território brasileiro talvez nunca seja descoberto. Ao menos é o que afirmam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil. Segundo médicos e estudiosos que pesquisam a trajetória do Sars-Cov-2 (nome oficial do vírus), é muito provável que já houvesse casos no país antes do primeiro paciente confirmado.
Um empresário de 61 anos é considerado o primeiro diagnóstico no Brasil. Ele testou positivo para a covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, em 25 de fevereiro, no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo (SP). O paciente havia retornado do norte da Itália, região que começava a enfrentar uma explosão de casos de Sars-Cov-2. Ele tinha sintomas como febre e tosse seca — cerca de duas semanas depois do diagnóstico, o paciente se recuperou, segundo o Governo de São Paulo.
Mas especialistas apontam que é pouco provável que o empresário de 61 anos tenha sido a primeira pessoa a pisar em solo brasileiro com o novo coronavírus — cujos casos tiveram início em Wuhan, na China.
Em meio ao crescimento exponencial de registros no Brasil, estudiosos consideram que é difícil afirmar com precisão o primeiro caso do país. Entre os motivos para que possa ter havido casos que não foram descobertos anteriormente estão a falta de orientações de autoridades antes do primeiro diagnóstico, a grande quantidade de pacientes assintomáticos e o fato de que o novo coronavírus pode ter sido confundido com outros problemas respiratórios.
Uma das principais alternativas para descobrir casos anteriores aos primeiros diagnósticos é o teste de anticorpos, que permite descobrir se a pessoa teve o coronavírus anteriormente. Isso ajuda a entender a rapidez da propagação do vírus e possíveis casos que não foram diagnosticados. Esses exames, porém, ainda são incipientes no Brasil.
Outro método importante no estudo sobre a origem do coronavírus no Brasil é o sequenciamento do genoma do vírus, que esclarece aspectos como de quais países vieram os casos brasileiros e a evolução do Sars-Cov-2 por aqui.
Enquanto especialistas estudam as portas de entrada do vírus em diferentes países — em todo o mundo, até o momento são mais de 2 milhões de casos e 150 mil mortes —, uma pergunta importante sobre a origem da pandemia ainda não foi respondida: a identidade do paciente "zero" na China.
Primeiro caso virou polêmica no Brasil
No início de abril, uma informação do Ministério da Saúde causou polêmica em torno do primeiro caso do novo coronavírus no Brasil. Isso porque a pasta divulgou que a primeira morte em decorrência do vírus no país fora registrada em 23 de janeiro, em Minas Gerais, quase dois meses antes do primeiro óbito confirmado oficialmente.
No dia seguinte, porém, o ministério retificou a informação. A pasta afirmou que o óbito foi registrado em 23 de março e justificou que houve uma falha de digitação, por isso informara erroneamente que teria sido em janeiro.
Ao corrigir a informação, durante coletiva de imprensa, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou que é possível que o vírus já circulasse no país em dezembro passado ou janeiro. Mandetta argumentou que a China ainda está descobrindo casos que ocorreram no começo de dezembro. Por se tratar de um país grande, segundo o ex-ministro, o vírus pode ter se propagado para outras regiões do mundo ainda quando não existia um diagnóstico.
Para especialistas, um dos fatos que colaboram para que a primeira pessoa com o coronavírus no Brasil não tenha sido diagnosticada é a demora de autoridades brasileiras para tomar as primeiras medidas de enfrentamento, mesmo com casos do Sars-Cov-2 passando a ser registrados ao redor do mundo desde janeiro.
"Existe muito tráfego aéreo no Brasil. Em janeiro, por exemplo, muitas pessoas podem ter chegado do exterior sem sintomas ou com sintomas bem leves, como tosse e pouca febre. Não existia um controle ou qualquer orientação sobre o coronavírus, então elas podem não ter procurado atendimento médico. Em uma semana, podem ter se recuperado, mas nesse período podem ter contaminado muita gente", relata o virologista Bergmann Morais Ribeiro, do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília (UnB).
A médica sanitarista Ana Freitas Ribeiro, do serviço de epidemiologia do Instituto Emílio Ribas, aponta que um dos motivos a dificultar a descoberta dos primeiros casos de infecção no Brasil era a orientação do Ministério da Saúde que, a princípio, indicava que somente casos de viajantes que chegassem ao Brasil com sintomas respiratórios ou febre deveriam ser investigados.
"Os outros casos eram excluídos. É importante lembrar que essa doença tem um largo espectro clínico, inclusive com casos assintomáticos que também transmitem", ressalta.
Estudos apontam que a taxa de pacientes assintomáticos pode chegar a 70% em algumas idades. O número depende, conforme pesquisadores, da faixa etária. Os mais jovens são maioria entre os casos sem sintomas.
Dificuldades iniciais
Entre os indícios de que pode ter havido casos do novo coronavírus no país antes do primeiro diagnóstico estão os dados do Infogripe, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O sistema aponta que houve aumento histórico em registros de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) no Brasil entre fevereiro e março.
Em anos anteriores, o sistema registrou uma média de 250 casos nos meses de fevereiro e março. Porém, neste ano, apenas na semana de 23 a 29 de fevereiro, 662 pessoas foram internadas no país com sintomas como febre, tosse, dor de garganta e dificuldade respiratória. As notificações são referentes a hospitais públicos e privados.
Os dados servem como alerta, apontam especialistas. Porém, os estudiosos frisam que a SRAG, que hoje é altamente associada à covid-19, também pode ser causada por outros vírus como influenza, adenovírus ou os quatro coronavírus sazonais que já circulavam anteriormente.
Para o virologista Davis Ferreira, do Instituto de Microbiologia Professor Paulo de Góes (IMPPG), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), casos do novo coronavírus anteriores ao primeiro diagnóstico no país podem ter sido tratados como outras síndromes respiratórias. "Os testes de anticorpos podem ajudar a esclarecer se alguns desses pacientes de janeiro ou início de fevereiro tinham o novo coronavírus", ressalta.
Especialistas afirmam que o fato de os primeiros diagnósticos no Brasil terem sido no Albert Einstein também reforça que pode haver casos anteriores. Isso porque a unidade particular de saúde já estava preparada para atender tais pacientes, por meio de exames e acompanhamento médico.
"Muitos casos do novo coronavírus pelo país podem ter sido tratados, em janeiro ou fevereiro, com diagnósticos como H1N1 ou pneumonia, que também causam problemas respiratórios. Nesse período, não havia testes em muitos locais, então essa possibilidade de covid-19 pode ter sido descartada por muitas vezes", diz Bergmann.
Por que seria importante descobrir o primeiro paciente?
O diagnóstico de coronavírus no Brasil em 25 de fevereiro é considerado um marco importante no enfrentamento ao Sars-Cov-2. A partir disso, diversas autoridades locais passaram a tomar medidas mais enérgicas em relação ao tema — muitas esperaram o crescimento exponencial de casos para agir.
Especialistas frisam que é importante descobrir se houve pessoas infectadas no Brasil antes do empresário de 61 anos, pois isso pode alterar a trajetória do Sars-Cov-2 no país. Tal descoberta pode confirmar que há ainda mais casos do que os apurados até o momento, além de demonstrar que diversos pacientes com a covid-19 podem ter sido diagnosticados com outros tipos de dificuldades respiratórias.
"Descobrir que realmente houve casos antes desse primeiro diagnóstico é importante para que a gente possa avaliar, em um novo cenário, a rapidez da propagação do vírus no Brasil. Isso ajuda em estudos, para que a gente possa se preparar melhor para outras pandemias no futuro, que podem ter semelhanças com esta", comenta Ferreira.
Por haver muitos pacientes assintomáticos em todo o mundo, que não procuraram ajuda médica, os estudos sobre a origem e o histórico de propagação do novo coronavírus no Brasil se tornam ainda mais complexos.
Uma pesquisa feita por cientistas da Escola de Saúde Pública da Universidade de Columbia, em Nova York, nos Estados Unidos, apontou que pacientes sem sintomas foram responsáveis por até dois terços das infecções em Wuhan. O levantamento foi publicado pela revista científica americana Science.
Um estudo mais aprofundado sobre as origens do Sars-Cov-2 pelo mundo se torna ainda mais complexo porque uma das principais dúvidas sobre o assunto segue em aberto: a identidade da primeira pessoa infectada em Wuhan, primeiro epicentro do novo coronavírus.
"Esse paciente zero em Wuhan é muito importante, porque por meio dele podemos descobrir a origem da infecção do novo coronavírus. Com essa descoberta, poderíamos saber o local dessa primeira infecção e de que forma ocorreu. Isso é fundamental para, principalmente, traçar o percurso da epidemia", diz Ferreira.
Cientistas de diversas partes do mundo ainda buscam respostas sobre a origem do novo coronavírus. Pesquisas tentam mapear o primeiro caso.
Pesquisas e testes
A origem do novo coronavírus no Brasil é alvo de investigações de pesquisadores. O objetivo é apurar se ocorreram diversas introduções do Sars-Cov-2 no Brasil e de onde vieram. Essas informações podem auxiliar no enfrentamento da pandemia, pois apontam quais mutações estão presentes no país e dimensionam o avanço do vírus.
Para o presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, o pesquisador Fernando Spilki, dificilmente será possível cravar o primeiro caso do novo coronavírus no Brasil. "Esse paciente `zero` do Brasil deixou de ser algo tão relevante", ressalta. Ele pontua que as apurações sobre possíveis casos anteriores ao primeiro diagnóstico têm o objetivo de investigar quais vírus circulam atualmente no país. "Precisamos saber de quais regiões do mundo vieram, para avaliarmos se essas diferenças no genoma estão relacionadas à severidade da covid-19 no país e também a uma taxa maior ou menor de disseminação na população", explica.
Em meio aos estudos sobre as origens do vírus no Brasil, uma das formas de descobrir pacientes contaminados anteriormente aos primeiros diagnósticos são exames que possam detectar anticorpos prévios.
"Isso pode ser feito se houver testes apropriados. É possível avaliar amostras de SRAG ou síndrome respiratória coletadas antes do primeiro caso e testá-las para a covid-19. Assim, podemos testar pessoas com SRAG antes de fevereiro, com alta ou óbito", diz a epidemiologista Ana Freitas.
Os testes de anticorpos no Brasil ainda estão em fase inicial no Brasil. Segundo especialistas, as pesquisas sobre as origens do vírus no país irão avançar, principalmente, quando houver aplicações desses testes em massa.
"Esses testes podem identificar, em muitos casos, até mesmo o vírus em pacientes assintomáticos, que tiveram o Sars-Cov-2 anteriormente e não apresentaram sintomas, mas desenvolveram anticorpos", diz Ferreira.
Por meio das amostras genéticas de pacientes que tiveram ou têm o Sars-Cov-2, é possível fazer o sequenciamento do genoma do vírus, ação considerada fundamental para estudar as origens do novo coronavírus no país.
"O vírus que está infectando hoje é diferente do vírus de uma semana atrás. Quanto mais ele vai se reproduzindo, mais modificações tem. Por isso, no sequenciamento descobrimos a origem dele, para identificar quais modificações teve e se ele se tornou mais patogênico ou não", explica Bergmann.
Os sequenciamentos dos dois primeiros diagnósticos no Brasil — feitos por pesquisadores da Universidade de São Paulo e do Instituto Adolfo Lutz — apontaram que o primeiro caso se mostrou geneticamente mais parecido com o vírus sequenciado na Alemanha, enquanto o segundo se mostrou mais parecido com o da Inglaterra.
No Brasil, diferentes pesquisadores tentam fazer sequenciamentos do vírus. Há estudos nesse sentido em estados como São Paulo, Rio Grande do Sul, Brasília, Rio de Janeiro e Bahia. Essas pesquisas, porém, enfrentam dificuldades. A quantidade de casos sequenciados até o momento é considerada baixa e, segundo especialistas, isso dificulta estudos mais aprofundados sobre a origem do novo coronavírus no país.
"Temos vários laboratórios de virologia no Brasil que podem fazer esses levantamentos. Mas precisamos de recursos para isso", pontua Bergmann. O Ministério da Ciência e Tecnologia lançou recentemente editais para projetos que estudem o novo coronavírus. Porém, os resultados dos certames devem ficar prontos somente a partir de junho. "É um procedimento muito burocrático", diz o virologista.