Coronavírus: 'Tive de usar saco plástico na cabeça': médicos brasileiros relatam precariedade em hospitais na Espanha
Brasileiros que trabalham em hospitais da Espanha pintam quadro dramático de hospitais superlotados, falta de proteção adequada e angústia; coronavírus matou mais de 18 mil pessoas no país.
A superlotação de hospitais e a falta de equipamentos de proteção obrigou médicos e enfermeiras na Espanha a improvisarem com soluções inusitadas - e precárias - segundo relatos de brasileiros que trabalham em hospitais locais.
A médica anestesista, Gerytza Chagas de Alcântara, 45 anos, que atua na linha de frente contra a covid-19 em um hospital em Barcelona, relatou à BBC News Brasil que teve de usar um saco plástico na cabeça por falta de equipamento de proteção individual (EPI).
"Por sorte, um colega conseguiu uma doação. Estamos racionando esse material, que deve durar umas duas semanas, reaproveitando máscaras", contou a anestesista.
"Estamos muito expostos, temos três médicos entubados. Qualquer superfície tem partículas do vírus. Mas quando você está na emergência, com 40 pacientes no corredor e nas salas, é muito difícil não tocar em alguma parte do seu corpo que não está exposta", diz.
Rafael Oliveira Caiafa, 40 anos, médico radiologista do Consórcio Sanitário Integral (CSI), na região metropolitana de Barcelona, também atua em um hospital superlotado de pacientes com covid-19 e reclamou da falta de EPI.
"Recebi uma máscara que deveria ser de uso único, mas tive que usá-la durante três semanas", conta.
'Situação horrorosa'
Natural de Fortaleza (CE), Gerytza chegou a Barcelona em 2007 para cursar um mestrado e desde 2009 trabalha no Hospital Sant Joan de Déu de Martorell.
Ela também contou que, como a emergência está saturada, os pacientes menos graves têm de esperar dentro da ambulância por um leito - e a maior parte dessas vagas surge quando outros doentes morrem.
"É uma situação horrorosa", lamenta Gerytza. "Morrem muitos pacientes, muitos. Em um dos meus últimos plantões, morreram 30 ou 40 pacientes, no mínimo."
A médica atende pacientes críticos com covid-19 e lembra que, quando o governo da Espanha decretou o estado de alerta, no dia 14 de março, já havia 30 casos no hospital.
"A partir daquele momento, a nossa maneira de trabalhar mudou totalmente. Cancelamos todas as consultas e cirurgias agendadas. Médicos que não lidam com pacientes clínicos também passaram a avaliar os casos suspeitos. E na sala de recuperação anestésica, montamos uma espécie de 'UTI intermediária'", descreve.
Ela diz que outras alas foram readaptadas com camas de internamento para acomodar mais pacientes, e o hospital passou a funcionar com cerca de 140% de sua capacidade.
A médica conta ainda o caso de um colega maqueiro que havia dado positivo para covid-19 e ficou 15 dias em confinamento.
"Quando ele se afastou, a situação ainda estava bastante controlada. Ao voltar, 15 dias depois, ele chorava muito, porque já havia levado dez cadáveres para o necrotério."
Mais de 18 mil mortes
A Espanha tem 172.541 casos confirmados no total, com 18.056 mortes, em dados desta quarta-feira (15) do Ministério da Saúde espanhol.
Superexpostos ao vírus, 26.672 profissionais de saúde foram infectados pela covid-19 na Espanha, o que representa 15,45% do total de casos.
O volume alto de pacientes - muitos deles em estado grave - com o novo coronavírus obrigou hospitais a se reorganizarem, a improvisarem leitos e a contratarem mais pessoal.
O secretário-geral do sindicato Médicos da Catalunha (Metges de Catalunya), Josep Maria Puig, confirma que falta de tudo: equipamento de proteção, respiradores, pessoal e infraestrutura em unidades de saúde.
Segundo ele, "alguns hospitais estão colapsados há semanas", como o da cidade de Igualada, o primeiro da Catalunha a registrar o surto de coronavírus.
Puig conta que, na falta de pessoal, as unidades de saúde convocaram médicos aposentados, prolongaram o contrato de residentes ou chamaram estudantes do último ano em cursos de medicina.
Mas o secretário adverte que a especialidade de cuidados intensivos requer uma formação de cinco anos, então contratar pessoal sem experiência para atuar nesta crise é uma solução "precária".
A hora e a vez dos novatos
Em meio à pandemia, recém-formados, como a enfermeira hispano-brasileira Natalia Leiria Dantas, 23 anos, têm entrado no mercado de trabalho.
Nascida em Barcelona e filha de brasileiros, Natalia fez uma entrevista de emprego por telefone e, no dia seguinte, foi chamada para trabalhar no Hospital del Mar, em Barcelona.
"No primeiro dia, me impressionei porque não pensei que havia tantos pacientes. Eu nunca tinha visto um andar reservado a pacientes infecciosos, foi impactante", diz.
"O nervosismo é grande, a insegurança, a pressão psicológica do hospital e minha também, pois quero me dedicar o máximo que eu puder."
A enfermeira comenta que, como não é a única novata, a equipe está saturada: "de trabalho, de pacientes, de pressão e de pessoas novatas como eu, que perguntam constantemente sobre o que fazer em alguns casos".
Para Natalia, o mais difícil dessa pandemia é ver um doente morrer sozinho.
"Durante os estágios, eu vi paciente morrer na minha frente, até segurei a mão da pessoa na hora que faleceu. Mas no caso da covid-19, as famílias não podem estar lá. Me abalou muito o paciente não ter acompanhamento familiar", lamenta a enfermeira.
Radiografias disparam
Nascido em Belo Horizonte (MG), Ronaldo Caiafa morou em Barcelona de 2007 a 2015, passou uma temporada com a família no Brasil e retornou à Espanha em 2018 para fazer a segunda residência.
No hospital, ele é um dos responsáveis por exames de diagnóstico e controle de pessoas com dificuldades respiratórias e afirma que o volume de radiografias e tomografias disparou.
O radiologista relata que os colegas estão nervosos por conta do risco de contágio e de levar o vírus para dentro de casa.
Seu maior receio é de que pacientes com outras doentes graves não sejam atendidos, pois a covid-19 não vai desaparecer.
"Meu medo é que o sistema permaneça saturado muito tempo e que pacientes com câncer não recebam tratamento adequado."
Para Caiafa, o Brasil pode tirar lições dos exemplos da Itália e Espanha, "onde se subestimou o impacto na economia e no sistema de saúde".
Segundo o médico, os brasileiros deveriam adotar o isolamento social rígido - só assim, a pandemia poderia ter um impacto menor.