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Coronavírus

Corpos nas ruas e colapso: o relato de um médico equatoriano

Atrás apenas do Panamá como país mais afetado pelo coronavírus na América Latina, com 8 mortes por milhão de habitantes, o Equador registrava ontem 3.368 casos e 145 mortes por causa da covid-19

4 abr 2020 - 08h42
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Foto: Vicente Gaibor / Reuters

Atrás apenas do Panamá como país mais afetado pelo coronavírus na América Latina, com 8 mortes por milhão de habitantes, o Equador registrava ontem 3.368 casos e 145 mortes por causa da covid-19. A demora em adotar medidas de restrição de circulação e a negligência no trato da pandemia, que se espalhava rapidamente, explicam a calamidade pela qual passa o país, de 16 milhões de habitantes.

O próprio governo admite que os números devem ser maiores. O país não está realizando os testes massivos em seus habitantes como outros mundo afora e tem observado a curva de crescimento do contágio se elevar diariamente.

No país sul-americano, o epicentro é o porto de Guayaquil, uma cidade com 2,6 milhões de habitantes e grande fluxo de pessoas localizada 400 km ao sul de Quito. Nesta semana, autoridades enfrentaram dificuldades para recolher os corpos de infectados que morrem no meio da rua ou em casa, sem ajuda.

Nos últimos dias, imagens circularam nas redes sociais com corpos de vítimas em calçadas e na rua. Para entender melhor a realidade do país, o Estado ouviu o médico equatoriano Carlos Erazo, professor da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Equador.

Confira abaixo o seu depoimento:

"É uma situação triste que estamos vivendo hoje. O primeiro caso de coronavírus foi em Guayaquil, importado da Espanha. Temos muitas famílias de migrantes na Espanha e na Itália que retornam no período das férias entre dezembro, janeiro e fevereiro. No começo, muitas autoridades falavam que era só uma gripe, mandavam a população trabalhar, que o país precisava. E aí aconteceu tudo isso.

O governo se mudou para Guayaquil, tem um centro de operações de emergência, o Ministério da Saúde foi junto. Mas a doença também está indo para outras províncias do interior, para o litoral. Fizemos menos de 10 mil testes, mas o governo prometeu 200 mil para a população há mais de um mês. Não conseguiu. E estamos ainda esperando alguns outros resultados que não foram entregues - cerca de 3.300. O presidente Lenín Moreno afirmou que há um subregistro.

A ministra da Saúde apresentou sua demissão porque o governo não contribuiu economicamente com todas as necessidades para enfrentar a epidemia. Não foi dada uma resposta técnica, o que debilitou ainda mais a credibilidade das autoridades sanitárias. E fez com que a população não desse ouvidos a todas as recomendações de isolamento social, de ficar em casa.

A cada dia, vemos a curva de casos do país sendo puxada por Guayaquil, que tem uma desigualdade muito grande. Hoje em dia tem muitas ligações para tirar os cadáveres das casas, há um crescimento alto de pessoas que estão morrendo. E tem o pânico ocasionado pela doença e pelas pessoas que não querem se contaminar. Quem poderia ir buscar os corpos - as funerárias - não estão fazendo isso mais. Estão com medo, fechadas. Nós, os médicos, não podemos ir para lá comprovar se foi ou não coronavírus. Não tem médico que vai fazer a autópsia.

A quarentena não permite sair para a rua, ir comprar um caixão. O governo criou uma equipe para ajudar a tirar os corpos das casas. Foram 150 só nessa semana. Tem gente tirando e deixando os corpos na calçada, se deteriora com esse calor. Mas temos que comunicar: o corpo morto não transmite a infecção. Se não tem célula viva, o vírus também morre.

Tem muita desinformação. O vírus tem impacto colateral muito grande no sistema de saúde. Tem muita gente que vai deixar de ir aos hospitais, vai ter medo de ficar doente, pode ser algum doente crítico que precisa de atendimento médico. Mas as pessoas não vão. O sistema de saúde colapsou, ninguém vai querer fazer fila no posto de emergência. As pessoas ficam em casa porque acham que vai pegar o vírus. E aí a saúde pode complicar dentro de casa e morrer.

Temos de olhar ainda para a situação social. Nenhum país esteve preparado para essa pandemia, nenhum sistema de saúde poderia ter dado a resposta imediata, ainda mais pensando no Equador, um país em desenvolvimento, de renda média-baixa. E agora temos problemas como a desestruturação do Ministério da saúde, a dívida internacional, tudo que já tinham antes da pandemia e agora o sistema está fragmentado.

Acreditamos que de 60 a 80% da população podem se infectar nos próximos 120 dias. Essas projeções indicam quase 10 milhões de casos no Equador. E isso com certeza vai levar a um número muito maior de mortes. O governo tem falado muito sobre a responsabilidade de trabalhar e de fortalecer a saúde pública.

Essa desordem social está ocorrendo pelo pânico e pela falta de credibilidade que a população tem nas autoridades locais e nacionais. Precisamos de informação, de testes, de detectar quem são os infectados, começar a fazer testagens em laboratórios, universidades, para ter um panorama mais realista e saber qual cenário estamos enfrentando. A academia pode ajudar na tomada de decisão das autoridades. Podemos apoiar a população. E isso não é só Guayaquil, estamos pensando nos trabalhos de todos os cientistas, dos docentes, que querem ajudar o Equador a superar essa crise."

Estadão
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