Covid-19: Apenas 8 secretarias expõem a raça das vítimas
Levantamento foi feito pelo consórcio de veículos de imprensa formado por Estadão, G1, O Globo, Extra, Folha e UOL
Desde as primeiras semanas da pandemia de covid-19 no Brasil, os governos estaduais melhoraram a divulgação de dados sobre a doença, mas a maioria ainda não publica informações sobre a raça das pessoas afetadas pelo coronavírus.
Levantamento feito pelo consórcio de veículos de imprensa formado por Estadão, G1, O Globo, Extra, Folha e UOL revela que apenas 8 das 27 secretarias estaduais de Saúde expõem em seus portais a raça dos contaminados e mortos. Mesmo onde essa informação existe (Alagoas, Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Paraná, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Rondônia), há dúvidas sobre sua consistência.
Outro dado pouco divulgado é o que mostra o tamanho da "fila" de testes a serem processados por laboratórios. Doze governos não informam a quantidade de exames com resultados pendentes ou inconclusivos.
Nos Estados Unidos, as estatísticas sobre raça demonstraram que, em termos proporcionais, a população negra foi muito mais afetada pela pandemia - provável reflexo das desigualdades socioeconômicas do país.
No Brasil, os dados sobre essa questão não são confiáveis porque a identificação da raça das vítimas não é um campo de preenchimento obrigatório nos sistemas informatizados que alimentam os portais sobre covid-19.
Isso acontece apesar de uma portaria do próprio Ministério da Saúde, de 2017, estabelecer que "a coleta do quesito cor e o preenchimento do campo denominado raça/cor serão obrigatórios aos profissionais atuantes nos serviços de saúde". Consultado, o ministério divulgou nota informando que "estão sendo feitos ajustes" para que o campo raça/cor "seja de preenchimento obrigatório" a partir desta semana.
Para o médico Hélio Bacha, infectologista do Hospital Albert Einstein, a ausência dos dados revela "uma tentativa de esconder" o preconceito racial. "Nós precisaríamos estudar as desigualdades, porque esta condição desigual é acima de tudo antiética. Se as secretarias tivessem estes dados, a desigualdade ficaria mais do que clara. A única forma que temos de avançar neste assunto é primeiro medir, conhecer o problema."
"A falta de preocupação ao coletar estes dados mostra como governos estaduais não estão empenhados em combater o racismo", criticou Manoel Galdino, diretor-geral da Transparência Brasil, organização que combate a corrupção e promove o controle social do poder público. "Essa informação é muito importante para fazer políticas públicas que enfrentam a desigualdade racial. A gente sabe que as pessoas negras são proporcionalmente mais afetadas pela covid-19, isso fica claro nos Estados que coletam esses dados."
A Open Knowledge Brasil, organização que desde abril mapeia o nível de transparência dos Estados ao divulgar dados sobre covid-19, vai incluir em breve a questão racial em seus monitoramentos. "O dado de raça/cor/etnia é coletado, mas, como não é um campo obrigatório, seu preenchimento é muito falho", disse Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da entidade. "Quando a sociedade cobra e os governos orientam na ponta, isso pode ser melhorado."
Fernanda disse ter observado "expressiva melhora" na qualidade dos dados publicados. "Em 3 de abril, tínhamos 90% dos entes, considerando Estados e governo federal, com nível de transparência abaixo de 'bom', ou seja, sem apresentar um conjunto mínimo de informações sobre a pandemia. Por exemplo, nenhum Estado divulgava situação de ocupação dos leitos, e apenas um publicava os testes disponíveis. Outro problema grave era o formato: 80% dos entes divulgavam dados em um formato fechado ou desestruturado, como PDFs ou releases, o que inviabiliza análises e cruzamentos." Passadas 11 semanas, "a porcentagem de entes abaixo de bom passou para 11%".
Álvaro Justen, da organização Brasil.io, que coordena um grupo de voluntários que compila informações sobre a pandemia, também observou melhora nos dados. "Mas alguns Estados ainda poderiam melhorar muito. Não somente na forma de divulgar os dados, em formato acessível, mas também com relação a quais dados disponibilizam."
Explicações
Em nota, a Secretaria de Saúde de São Paulo afirmou que "nos sistemas oficiais de notificação de coronavírus do Ministério da Saúde (E-SUS e Sivep) não há obrigatoriedade do preenchimento do campo raça/etnia".
A Secretaria da Saúde do Acre informou que não tem dados completos sobre a raça dos contaminados pelo coronavírus, pois essa informação é coletada apenas quando são feitos os testes rápidos. O governo do Amapá informou que nem sempre os municípios preenchem a característica de raça nos boletins.
A Secretaria de Saúde do Distrito Federal afirmou que não divulga informações pessoais das vítimas. O governo de Goiás disse que os dados sobre raça de que dispõe estão "incompletos", pois não constituem um campo obrigatório de preenchimento nos formulários dos sistemas E-Sus e Sivep-Gripe.
O governo de Mato Grosso informou que "a nota informativa é padronizada por meio de um sistema que fornece estritamente as informações que constam no boletim". Já o governo de Mato Grosso do Sul informou que dispõe dos dados, e que eles poderão ser divulgados em uma próxima etapa de atualização da plataforma.
A Secretaria de Saúde de Minas Gerais disse que analisa a possibilidade de divulgar dados separados sobre raça e cor e que publicou nota técnica para " sensibilizar e orientar os gestores municipais" sobre a importância do preenchimento dessas características nas fichas de notificação da covid-19. A Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro afirmou que não existe determinação para que sejam disponibilizados dados sobre raça.
Em Roraima, o governo explicou que segue os parâmetros dos boletins divulgados pelo Ministério da Saúde.
O governo de Sergipe disse que optou por não divulgar dados sobre raça porque eles são de "má qualidade", e que orienta os municípios a preencher esse campo de forma adequada.
Os demais governos foram procurados, mas não responderam aos questionamentos,
*Daniel Bramatti, do Estadão, Flávia Faria e Diana Yukari, da Folha de S.Paulo, Clara Velasco, Gustavo Petró e Ricardo Gallo, do G1 , Arthur Sandes e Wanderley Preite Sobrinho, do UOL , e Renato Grandelle e Gabriela Oliva, do Extra e de O Globo