Custo do coquetel Regn-CoV2 dificulta uso no Brasil
Especialistas apontam resultados promissores, mas preço impede que tenha impactos na contenção da pandemia no Brasil
O custo considerado alto será uma das principais dificuldades para que o uso emergencial do tratamento para covid-19 liberado nesta terça-feira, 20, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Regn-CoV2, tenha impacto significativo no Brasil. Especialistas ouvidos pelo Estadão acreditam que o valor estimado de alguns milhares de reais possa gerar até mesmo a ampliação das desigualdades no atendimento de pacientes nas redes pública e privada.
O novo tratamento resulta da combinação de dois anticorpos desenvolvidos em laboratório (batizados de casirivimabe e imdevimabe). Ele foi criado pela farmacêutica americana Regeneron em parceria com a suíça Roche, autora do pedido de autorização de uso experimental no Brasil. É indicado para casos leves e moderados da covid-19 em pacientes de 12 anos ou mais (com no mínimo 40 quilos) do grupos de risco, com uso restrito a hospitais.
O coquetel está liberado para uso em caráter emergencial nos Estados Unidos, no Canadá e na Suíça, dentre outros países europeus. Em janeiro, o governo americano firmou acordo com a fabricante para a entrega de 1,25 milhão de doses até 30 de junho, no valor de US$ 2,625 bilhões. Isto é, cerca de US$ 2,1 mil por unidade de 2,4 mil mg (a posologia autorizada no Brasil é metade, com 1,2 mil mg).
Segundo o Ministério da Saúde, os remédios serão incorporados ao SUS apenas quando tiverem registro definitivo na Anvisa. Nos casos de planos de saúde, a cobertura é obrigatória para quando houver indicação médica e casos de internação. O novo coquetel, entretanto, não é indicado para pacientes graves e hospitalizados.
"É um tratamento muito caro e, certamente, não é uma alternativa viável para um País como o nosso. Estimo que um único tratamento com Regn-CoV2 pode custar algo entre R$ 15 mil e R$ 25 mil . Isso é muito limitante para nossa realidade em relação aos custos e ao enorme número de novos casos", destaca Adriano Andricopulo, professor de Química Medicinal da USP. "Apesar de poder ajudar em alguns casos, não acredito que o uso desse medicamento terá efeito significativo, estatístico, na melhora geral da situação no Brasil."
Segundo ele, além das vacinas, os medicamentos também são "essenciais" para o controle e o fim da pandemia, mas com outras características. "Espero que novidades terapêuticas, seguras e eficazes, possam surgir nos próximos meses, mas com um componente essencial: um medicamento barato e acessível, que possa ser produzido e distribuído amplamente, não só no Brasil, mas no mundo todo. Por exemplo, um comprimido por via oral."
Para o professor, os resultados apresentados para o tratamento recém-autorizado são "interessantes", pois ampliam o "leque extremamente reduzido de possibilidades terapêuticas para o tratamento da doença" e comprovam a importância de medicamentos biológicos (nesse caso, anticorpos criados em laboratório) no combate à covid-19. Ele ressalta, no entanto, que os estudos até o momento indicam que ajuda exclusivamente a evitar o agravamento do quadro clínico. "Não é uma cura para a doença, é apenas mais uma alternativa terapêutica que pode ajudar na recuperação."
Já Luís Correia, professor de Medicina Baseada em Evidências da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, diz que a Anvisa cumpriu o dever de analisar os "requisitos mínimos de qualidade, segurança e eficácia no contexto do uso emergencial". Mas lembrou que a liberação não significa uma indicação de prescrição ou de adoção ampla na saúde pública.
O docente lembra que esse tipo de autorização de uso emergencial é distinta das realizadas para vacinas, que dependem de estudos mais amplos, com milhares de pacientes e outros indicadores. "O que temos, a rigor, é um indício de que essa droga é eficaz, mas não considero prova confirmatória da eficácia, como se costuma desejar antes da prescrição."
Para ele, o fato de os resultados serem preliminares, o valor do tratamento e o possível impacto orçamentário resultam em um custo-efetividade não condizente com a saúde pública brasileira. "O tratamento de uma doença não vem de uma única solução, é um conjunto de coisas. Precisamos de um conjunto de atitudes que reduzem a mortalidade, como ter drogas para fazer a intubação, ter equipes suficientes e treinada para intubar, ter aparelhos de diálise…"
Leandro Lobo, professor do Instituto de Microbiologia da UFRJ, também destaca que os resultados são bem-vindos, mas não são de um remédio "milagroso". Ele também considera o custo "altíssimo", que "não se encaixa na realidade brasileira". "Não é uma cura, mas é um alento para esses pacientes. Em pessoas sob grande risco, pode ter essa utilidade", comenta. "Qualquer tratamento é bem-vindo, mas não vai ser a solução para nossa realidade e de nenhum outro país em desenvolvimento com um número de casos altíssimo."
Para o pesquisador, o custo poderá trazer discussões "éticas enormes", pois o SUS não teria a capacidade de comprar doses suficientes para todos. "E, se adotado na rede privada, vai ser uma outra camada de desigualdade sendo incluída no sistema de saúde. Somente as pessoas que têm muito (dinheiro) vão poder pagar."
Cultivo de anticorpos em laboratório eleva preço
Alguns dos motivos para os valores altos dos medicamentos é o fato de que os anticorpos precisam ser cultivados em laboratório, por meio de frascos específicos que funcionam como biorreatores, cujo custo é elevado mesmo em grande escala. "A manutenção dessas células custa muito caro. É uma tecnologia boa, interessante e muito cara."
Lobo considera os resultados apresentados "moderados", em parte pela dificuldade de associar a recuperação ao tratamento. Esse é um dos fatores que ajuda a explicar o porquê de os estudos terem focado em pacientes do grupo de risco, pois são pessoas que teriam maior chance de agravamento do quadro clínico. Para considerar uma população mais abrangente, seria necessário investimento ainda mais alto e um número significativamente maior de voluntários.
Lobo explica que os anticorpos monoclonais, como os desse tratamento, são utilizados há décadas na medicina, especialmente em pacientes com câncer. Não são, contudo, tão largamente utilizados no tratamento de doenças infecciosas, em parte porque essas podem prevenidas com vacinas, uma alternativa mais barata.
Enquanto os imunizantes levam o organismo a produzir anticorpos, esse tipo de tratamento injeta o anticorpo já formado no indivíduo. O professor explica que os anticorpos do Regn-CoV2 se conectam na ponta da proteína spike, e não inteiramente, como o imunizante faz. Ambos têm, contudo, o mesmo objetivo: impedir que o vírus entre na célula e se reproduza.
"Se ligar somente ali, naquela pontinha, tem a vantagem de as respostas imunes serem altamente específicas para aquele alvo", explica. Por outro lado, isso também abre margem para a possibilidade de impactar na difusão de mutações, embora os testes até o momento tenham apontado segurança na prevenção disso. "A que sofreu mutação pode conseguir escapar (por ser diferente). Por isso que o tratamento tem dois anticorpos, pois, se tiver um evento de mutação e um deles não conseguir ligar, tem o outro como garantia."
Em nota, a Roche Farma Brasil disse que, neste momento, prioriza negociações "centralizadas nos governos federais em todos os países" e que está "interagindo com o Ministério da Saúde", o qual "será o responsável pela destinação final da medicação". Também informou não haver preço definido no País. Por fim, respondeu que não há previsão de abertura de pedido para a fabricação nacional: "seguiremos com a venda de lotes importados".
Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que "os medicamentos incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS) devem ter o registro definitivo aprovado pela Anvisa". Esse não é o caso do novo tratamento, autorizado exclusivamente para uso emergencial. Já a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) informou que tanto o remdesivir (vendido com o nome comercial veklury) quanto a combinação do casirivimabe e do imdevimabe serão de "cobertura obrigatória pelas operadoras de plano de saúde", quando indicados pelo médico para o tratamento de pacientes para a covid-19, conforme os "termos das bulas registradas na Anvisa".
Venda em farmácias será proibida
A autorização de uso emergencial é restrita a hospitais, com venda proibida no comércio e em farmácias, e é destinada a pacientes que não estão internados e que não necessitam de suplementação de oxigênio de alto fluxo ou ventilação mecânica. A liberação terapêutica é para pessoas de ao menos 12 anos e com pelo menos 40 quilos. Este é o segundo tratamento para a doença liberado para uso emergencial no País, após a aprovação do remdesivir em março.
O tratamento não é recomendado para pacientes que estão em estado grave, pois pode piorar o quadro de saúde. Além disso, os possíveis efeitos colaterais incluem anafilaxia (reação alérgica aguda), febre, calafrios, urticária, coceira e rubor. A administração é por meio de infusão intravenosa única.
Ele é destinado a pacientes que atendam a pelo menos um dos seguintes critérios: índice de massa corporal (IMC) superior a 35, doença renal crônica, diabetes, doença imunossupressora, estar em tratamento imunossupressor e ter 65 anos ou mais. No caso de pessoas com 55 anos ou mais, o tratamento é para quem tem doença cardiovascular, hipertensão, doença pulmonar obstrutiva crônica ou doença respiratória crônica. Além disso, no caso dos que têm de 12 a 17 anos, é voltado a crianças e adolescentes com IMC superior ou igual a 85 (com base nos gráficos de crescimento do CDC), doença falciforme, doença cardíaca congênita ou adquirida, distúrbio de neurodesenvolvimento (como paralisia cerebral, por exemplo), dependência tecnológica relacionada à medicina (como traqueostomia e gastrostomia), ventilação com pressão positiva não relacionada à covid-19, asma, via aérea reativa ou outra doença respiratória crônica que requer medicação diária para controle.