Doria altera critérios do Plano SP uma vez por mês, em média
Plano de reabertura econômico foi implementado em maio do ano passado e já passou por ao menos 14 alterações desde então
A gestão do governador João Doria (PSDB) alterou ao menos uma vez por mês, ao longo do último ano, os critérios estabelecidos no Plano São Paulo, planejamento implementado em maio de 2020 para regular as restrições de combate ao coronavírus no Estado. Embora parte das mudanças leve em consideração novas dinâmicas da pandemia, outra parte dessas alterações ocorreram no sentido de facilitar flexibilizações das medidas vigentes, movimento que é criticado por especialistas.
O governo paulista diz que o Plano São Paulo auxiliou o enfrentamento da crise, ignorado pelo governo federal, tornando-se um modelo para o País ao se pautar por critérios técnicos. O que analistas destacam, por outro lado, é que o planejamento deu um "verniz de organização", mas se mostrou suscetível em diferentes momentos a interesses diversos a questões de saúde pública.
A reportagem do Estadão contou 14 alterações nas regras do plano desde o seu anúncio, em 27 de maio. A estratégia foi divulgada como um aprimoramento do planejamento estadual que permitiria ao Estado controlar a rigidez das medidas de acordo com a gravidade da pandemia em cada região. Mas dois dias depois do anúncio, o governo já teve de alterar a definição das regiões, dividindo a região metropolitana em seis sub-regiões.
A partir daí, as mudanças ocorreram em três frentes: critérios de análise da situação da pandemia foram alterados; as previsões de cada fase, com atividades e horários, também foram redefinidos em diferentes oportunidades; e novas fases ou medidas foram estabelecidas. Esse processo ocorreu sob a justificativa de "calibragem técnica" visando mais eficiência e adequação ao momento, nas palavras da gestão Doria.
Em 3 de julho, por exemplo, o governo antecipou a liberação de atividades que só estavam previstas para ocorrer quando as regiões estivessem na fase verde. Com a mudança, academias, cinemas e teatros puderam passar a funcionar na fase amarela, o que na prática facilitava a flexibilização das medidas originalmente previstas. Movimentos similares continuaram ocorrendo quando a gestão estadual, em janeiro deste ano, decidiu que as academias, salões de beleza e museus, por exemplo, poderiam funcionar na fase laranja, a segunda mais restritiva.
Em 27 de julho e 9 de outubro, o governo promoveu mudanças que supostamente ajustavam critérios de análise para a situação de cada região. Na primeira data, o Estado permitiu que regiões com taxa de ocupação abaixo dos 75% nos leitos de UTI para covid-19 entrassem na fase verde, enquanto o índice previsto anteriormente era de menos de 60%. Na segunda data, a avaliação passou a ser feita com base em médias dos últimos 28 dias, o que ampliou o período anterior, que era de sete dias e permitia captar mais rapidamente novas variações da pandemia.
Verniz de organização, diz cientista política
O que um grupo de pesquisadores do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), da Universidade de São Paulo (USP), concluiu na oportunidade é que as recalibragens tinham facilitado a saída de regiões de fases mais restritivas. Ou seja, sem isso, elas teriam permanecido com a vigência de medidas consideradas mais duras. "Diria que a característica do plano é de um verniz de organização. Aparenta uma organização bem pensada e embasada, porém, foi sendo muito alterado e flexibilizado", diz ao Estadão a cientista política Carolina Requena, pesquisadora associada do CEM.
Na análise feita pelo seu grupo, o plano foi sendo adaptado "ao sabor de algumas pressões locais, que vieram de setores interessados em manter negócios abertos". "É algo crítico porque a maior recomendação da OMS é de distanciamento social em um cenário de ausência de solução farmacológica", acrescenta Carolina. "São decisões politicamente custosas, mas necessárias diante da gravidade do assunto. Existe uma fala eloquente de adesão à ciência e por outro lado isso não encontra respaldo nas ações."
Outras mudanças no plano ocorreram nos meses mais recentes. Na virada do ano, diante da perspectiva de aglomerações e piora nos indicadores de saúde, o governo estabeleceu uma medida até então inédita: a vigência da fase vermelha em dias predeterminados entre o Natal e o réveillon. Em fevereiro, com os números em alta, Doria criou um mecanismo que batizou de "toque de restrição". Em março, diante de uma perspectiva de aumento recorde dos dados, implementou uma fase emergencial.
O economista Rodrigo Fracalossi de Moraes, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), desenvolve análises sobre as medidas estaduais de combate à pandemia. Ele vê dois aspectos das mudanças promovidas nessas políticas. Por um lado, os planos foram produzidos em um contexto de muita incerteza, diz, e é natural que se promova alterações diante de parâmetros cuja adequação não foi constatada. "Por outro lado, há pressão de grupos com uma agenda por trás, de retomada de produtividade, o que tem sua legitimidade, mas não deve ser isso a pautar exclusivamente uma decisão", afirma.
Ele vê a organização do Plano São Paulo como "muito boa" na comparação com outros comportamentos de governos estaduais, cuja "barra é muito baixa". Moraes destaca que o plano foi acompanhado por uma política de comunicação à sociedade, com intuito de esclarecer e reforçar o teor das medidas para a população. "Como não teve política nacional, são encontradas formas de se minimizar danos consideráveis."
A mais recente mudança no planejamento paulista ocorreu em abril, com a criação da fase de transição. Após o pico da doença, essa fase foi o meio adotado pelo governo para permitir a reabertura gradual da atividade econômica em um período de indicadores em queda, mas ainda em um patamar elevado. Pelos critérios originais, as regiões teriam de voltar à fase vermelha, com mais rigor nas medidas, o que não ocorreu. A gestão Doria prorrogou a fase de transição até o próximo dia 23, com possibilidade de retomar uma análise regionalizada dos indicadores a partir dessa data.
Plano não cedeu a pressões econômicas e políticas, diz secretária
A secretária de Desenvolvimento Econômico de São Paulo, Patricia Ellen, disse ao Estadão que o papel do governo foi importante "para salvar milhares de vidas". O modelo regionalizado com indicadores transparentes, diz ela, foi replicado no País e se baseou em experiências internacionais, mas não contava com tamanha ausência do governo federal. A gestão do presidente Jair Bolsonaro se notabilizou pelo combate às medidas indicadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
"Imaginamos inicialmente um cenário com gestão federal responsável e um portfólio de vacinas. Nenhuma das duas coisas aconteceu, então nosso papel foi ainda mais importante. Fazemos uma gestão baseada em dados e sempre atualizada a partir das práticas globais. Modelos semelhantes passaram por atualizações constantes a partir de aprendizados", diz.
A secretária pontua que eventuais críticas só podem ocorrer em razão da transparência do modelo. "Fomos corajosos em não atender a pressões econômicas e políticas, e permanecemos independentes. Tivemos de recalibrar em razão do período prolongado da pandemia." Ela diz que o governador Doria sempre destacou a importância de proteger vidas em primeiro lugar, e sempre atuar com base na ciência.