Doutora e paciente: Maria Paula Curado vive os dois lados da medicina
Cirurgiã e pesquisadora, ela trata um tipo raro de câncer diagnosticado em 2015, o mieloma múltiplo. O que não a impede de seguir em atividade
Maria Paula Curado luta a vida toda por voz. Pelo respeito à sua formação, como cirurgiã de cabeça e pescoço, e à sua origem, Goiânia. Pela representatividade feminina na cirurgia brasileira. Por mais estatísticas do câncer no mundo, nos anos à frente desse departamento na Organização Mundial da Saúde (OMS) e atualmente como chefe dessa área no A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo. Pela participação do paciente oncológico nas decisões sobre o próprio corpo. E até pela cordas vocais de fato, nos casos de câncer.
"Minha tese de mestrado foi sobre a escolha do paciente. Qual é o direito de decidir sobre seu corpo? Se tinha a possibilidade de radioterapia, com chance de ficar com voz, por que tirar as cordas vocais?", questiona Maria Paula, ela mesma com o diagnóstico de mieloma múltiplo, tipo raro de câncer, desde 2015. "O paciente é pouco ouvido. As pessoas já têm a decisão. Meus médicos são ótimos, me sinto muito à vontade, mas, se eu não fosse médica, não falava 'não vou fazer isso'."
A médica fez residência em cirurgia oncológica e se especializou em cabeça e pescoço. "Na turma, 90% eram homens. Quando cheguei em São Paulo, o pessoal me perguntava se tinha curso de Medicina em Goiânia. Era muito difícil de as pessoas entenderem como consegui passar num concurso aqui. Fizeram várias apostas de que eu não ia durar um mês."
Sua atuação na área levou a ser eleita a primeira presidenta da Sociedade Brasileira de Cirurgia de Cabeça e Pescoço. Na época, meados dos anos 1990, conseguiu tirar os congressos do eixo Rio-São Paulo. "No fim, a gente tem de mostrar capacidade. Era muito difícil o papel da mulher dentro da sociedade e, principalmente, na cirurgia 25 anos, 30 anos atrás."
Frequentemente, teve de operar só com o auxílio de enfermeiras. "Uma vez meu chefe botou um belga para me ajudar, eu falava 'cut', e ele não cortava. Tive de resolver sozinha", lembra o episódio ocorrido no início dos anos 1980, quando trabalhava no Memorial Hospital, referência em câncer em Nova York.
Dedicada às estatísticas sobre câncer
Maria Paula nunca fugiu de um desafio. Em 1985, conseguiu apoio da OMS para estabelecer um acompanhamento em Goiânia das estatísticas de todo tipo de câncer. "É a única cidade do País que mantém isso até hoje. A maioria começa e para. Sou feliz por ter um pequeno retrato lá. É muito importante monitorar a distribuição do câncer, o tipo, a faixa etária, para desenvolver políticas públicas de saúde", explica a médica. "Por coincidência, isso foi um ano antes de Chernobyl e dois anos antes do acidente com o césio em Goiânia."
Daí por diante, esteve à frente de grandes áreas relacionadas ao conhecimento da doença. No começo dos anos 2000, foi eleita representante da América Latina na Agencia Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc - International Agency for Research on Cancer), ligada à OMS. A partir de 2006, trabalhou por dez anos na França na OMS, como chefe do departamento responsável pelo registro de câncer no mundo. "Fui a primeira autora da América Latina. E, se você não publica, a região não tem visibilidade", diz.
Em 2015, foi convidada para desenvolver esse trabalho em São Paulo. Desde então, é chefe do Grupo de Epidemiologia e Estatística em Câncer (Geecan), do Centro Internacional de Pesquisa (Cipe) do A.C. Camargo.
Diagnóstico da doença
No mesmo ano, teve a notícia do mieloma múltiplo. "Senti uma dor nas costas e comentei com um amigo. Ele me levou para fazer uma ressonância e descobriu a doença." Em julho de 2015, fez o primeiro transplante de medula. Ficou bem e seguiu monitorando a saúde. Durante a pandemia, o tumor apareceu de novo. "Fiz quimioterapia e outro transplante em abril deste ano."
Continuou se cuidando e trabalhando ao mesmo tempo. "Meu sonho é fazer um grupo de epidemiologia do Brasil. A gente tem muito pesquisado bom. O câncer já é a segunda causa de morte no País; em primeiro lugar, está cardiovascular. O A.C. Camargo sozinho não dá conta. A gente tem de trabalhar com as universidades."
Segundo ela, é necessário ter um registro amplo da doença. "A gente precisa ter a real informação de saúde. Não é fazer só topografia e morfologia. Tem de ter biomarcador molecular. Por exemplo, no câncer de mama, a gente sabe que as negras não respondem a um tipo de tratamento. Ter mais informações é melhorar a chance de essas pacientes sobreviverem", afirma.
O filho, Guilherme, de 26 anos, diz que ela "está querendo salvar o mundo", conta a médica. "Posso até não conseguir, mas vou tentar", responde. A disposição para ouvir quem vivencia o problema, como paciente ou médico, ela mantém. Todo mundo pode colaborar, mesmo sem ser especialista no assunto, defende Maria Paula. "Numa pesquisa com o Nordeste, descobri que não adiantava mandar por escrito as perguntas, porque aquelas pessoas não sabiam ler. Tinha de ser por áudio. A gente acha que todo mundo é igual, mas não é assim", diz.
No nosso bate-papo ao telefone, entrecortado por um vai e vem de memórias da sua extensa carreira de cirurgiã e pesquisadora, ela me diz uma frase que resume sua história: "Minha preocupação sempre foi a voz, ter voz."