'Isolamento dentro do isolamento': como vivem os brasileiros na Antártida, o único continente sem coronavírus
São 16 militares da Marinha do Brasil - 15 homens e uma mulher que vivem atualmente no continente gelado.
Um grupo de 16 militares da Marinha do Brasil — 15 homens e uma mulher — permanecem em um "isolamento dentro do isolamento" na Antártida, o único continente do mundo onde não há casos confirmados do novo coronavírus.
Eles moram e trabalham na nova Estação Antártica Comandante Ferraz desde sua reinauguração, em janeiro deste ano, após um incêndio que destruiu parcialmente a estrutura anterior e causou a morte de dois militares em 2012.
E, agora, por causa da pandemia de covid-19, também já não podem mais se encontrar com integrantes de outras bases, como a Estação Polonesa Henryk Arctowski, a mais próxima da brasileira, distante cerca de dez quilômetros. Visitas turísticas também foram vetadas.
A BBC News Brasil conversou por videochamada na semana passada com dois integrantes do grupo: o capitão de fragata Luciano de Assis Luiz, chefe da estação, e a capitã-tenente Letizia Aurilio Matos, médica.
"Nosso contato com o mundo exterior é apenas por telefone ou videochamada. Mas, diferentemente de vocês, fomos preparados para esse isolamento", resume Luciano.
'Manter a rotina'
A jornada dos 16 militares começou em 4 novembro do ano passado, quando desembarcaram na Península Keller, na ilha Rei George, onde fica a estação brasileira, para a missão de passar 13 meses no continente gelado — ou seja, antes de o coronavírus se alastrar pelo mundo.
Inicialmente, ocuparam o Módulo Antártico Emergencial (MAE) até a inauguração oficial da estação, em 15 de janeiro deste ano.
Desde então, nenhum deles deixou a Antártida — até a primeira quinzena de dezembro, vão permanecer isolados do restante do mundo.
A troca das equipes é feita durante o verão, uma vez que as temperaturas mais amenas facilitam a logística. É também nessa época que a estação brasileira recebe pesquisadores, responsáveis por coordenar estudos de ponta.
"O mais importante aqui é manter uma rotina. Um padrão de trabalho. Horário para acordar. Horário para trabalhar. Horário para fazer atividades físicas. Horário para se integrar", diz Luciano.
Ele conta que, a partir de março, com o fim do verão, os pesquisadores vão embora e os militares se dedicam, principalmente, a atividades relacionadas à manutenção da estação.
"Temos que manter os geradores funcionando. Toda a parte de limpeza, geração de energia, tratamento de água. Também precisamos que verificar os módulos externos e os refúgios", explica.
Essas incursões externas são sempre precedidas de uma análise de riscos, acrescenta o comandante.
"Faço a análise de riscos no dia anterior. Avalio aspectos como temperatura, pressão e velocidade do vento. Por exemplo, quando a pressão está caindo, é sinal de que vai vir uma tempestade. Também checo as previsões nos sites meteorológicos", enumera.
"Já aconteceu três ou quatro vezes de pedir para a equipe retornar à estação. Dependendo do local, isso pode demorar de quatro a seis horas", acrescenta.
O único caso de emergência aconteceu com uma alpinista brasileira durante o verão, lembra Letizia.
"Ela caiu de uma altura de três metros. Fizemos toda a a estabilização aqui no setor de saúde da estação. Entramos em contato com o hospital da Marinha no Rio de Janeiro, para consultar as condições clínicas da paciente, e fizemos a evacuação aeromédica. Machu Picchu (a base peruana) nos ajudou", diz.
Desde então, acrescenta Letizia, "houve outros episódios, mas de menor complexidade. Os meninos pegam muito peso e, algumas vezes, têm dores articulares", acrescenta.
O desafio maior, no entanto, ocorre agora durante o inverno, quando os mares em volta da estação congelam, as temperaturas caem para menos de 20 graus negativos e a escuridão impera — não há praticamente luz do sol.
Só há duas estações polares: verão e inverno (cada um dura seis meses). Isso porque os polos recebem menos energia e calor do Sol, devido à inclinação e órbita da Terra.
Também durante o inverno, alimentos perecíveis e outros itens de necessidade são atirados pelos Hércules C-130 da Força Aérea Brasileira (FAB), uma vez que não é possível mais pousar na estação, devido às baixas temperaturas.
"São pacotes fechados que caem de paraquedas. Recebemos frutas, legumes, verduras, laticínios e ovos", diz Luciano.
A alimentação é completada por produtos congelados, estocados na estação.
Crescimento pessoal e profissional
Os militares destacam o crescimento "pessoal e profissional" que vêm tendo em meio à experiência de viver na Antártida.
"Uma das coisas mais importantes aqui para mim é o crescimento pessoal. Aprendi a ouvir mais e a lidar melhor com as pessoas. Tenho que saber lidar entre ser militar e ser família. Não dá para ser militar 100% e não dá para ser família 100%. É preciso equilibrar", diz Luciano.
Letizia completa: "O engrandecimento profissional é maravilhoso. Não tenho nem palavras. Somos mais do que uma família. Temos afinidades e diferenças. Mas essas diferenças nos fortalecem e nos unem cada vez mais".
Saudades
Além das saudades da família e dos amigos, os militares também dizem sentir falta tanto de alimentos quanto de cores — e até mesmo do barulho típico das zonas urbanas.
"Parece besteira, mas sinto falta de verduras, frutas", diz Luciano.
"Sinto falta de cores no ambiente. Aqui é muita terra e neve. Também não tem barulho", acrescenta Letizia.
Para Luciano, não existe "super-homem" na Antártida.
"Sou mergulhador. Estava acostumado com o frio. Aqui o buraco é muito mais embaixo. Ou você sai equipado com luvas e protetor solar, ou vai acabar o dia com problema. Aqui não existe super-homem. É preciso estar consciente dos seus limites", diz.
Já Letizia diz que quando chegou e contemplou "toda a dimensão" do continente gelado, ficou "surpresa".
"Nada do que a gente vê pela TV se compara a estar aqui. O frio, as montanhas, a neve", diz.
"A fauna e a flora são muito ricas. Parece que não, pois tudo é preto e branco. Mas não se trata de um ambiente estéril. O que tem mais aqui é vida", conclui Luciano.
Nova estação
A um custo de US$ 99,6 milhões (cerca de R$ 490 milhões em valores atuais), a nova estação é maior e mais moderna do que a anterior.
Dividida em três grandes blocos, possui 4,5 mil metros quadrados de área construída, 17 laboratórios e capacidade para até 64 pessoas. Também conta com biblioteca, uma academia e sala de vídeo/auditório.
A reinauguração deveria acontecer em 2016, mas, depois de seguidos atrasos no cronograma, as obras só começaram há três anos.
Segundo o governo, o objetivo é realizar pesquisas em áreas como oceanografia, biologia, glaciologia e meteorologia.
A Estação Antártica Comandante Ferraz foi instalada pela primeira vez ali em fevereiro de 1984.