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Coronavírus

'Kit intubação': 'Desativamos leitos de UTI para não ficarmos sem estoque', a dura rotina de hospitais com escassez de medicamentos em SP

Hospitais vivem incerteza em meio a cenário de escassez de medicamentos que garantem a saúde de pacientes internados em estado grave com a covid-19.

15 abr 2021 - 08h08
(atualizado às 08h14)
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Decisão sobre o momento de intubar é crucial. Se uso da ventilação mecânica for retardada demais, paciente pode lesionar o pulmão só pelo esforço para respirar, dizem médicos ouvidos pela BBC News Brasil
Decisão sobre o momento de intubar é crucial. Se uso da ventilação mecânica for retardada demais, paciente pode lesionar o pulmão só pelo esforço para respirar, dizem médicos ouvidos pela BBC News Brasil
Foto: REUTERS/Diego Vara / BBC News Brasil

Em meio à escassez de medicamentos essenciais para pacientes intubados, os responsáveis pela Santa Casa de São Carlos (SP) decidiram, há cerca de duas semanas, desativar seis dos 30 leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) destinados a pacientes com a covid-19.

Os responsáveis pelo local afirmam que a medida se tornou necessária para não faltar medicamentos aos pacientes que já estão intubados na unidade de saúde.

"Fizemos isso porque temos enfrentado dificuldades para conseguirmos analgésicos, sedativos e bloqueadores neuromusculares, que são fundamentais para pacientes intubados", diz o infectologista Vitor Marim, diretor-técnico do hospital.

Segundo Marim, os seis leitos que estão vagos foram bloqueados no momento em que os pacientes que estavam neles receberam alta hospitalar.

"Há uma pressão muito grande para admitirmos novos pacientes. O nosso desejo é voltar aos 30 leitos. Mas a gente não consegue fazer isso agora, pela incerteza se teremos medicamentos suficientes para assistir os internados", declara o médico à BBC News Brasil.

A decisão de diminuir as vagas na unidade é preocupante, em razão da trágica fila por um leito de UTI, na qual somente em março morreram quase 500 pessoas em São Paulo. Porém, Marim afirma que foi a única alternativa no atual período. "Se esses leitos estivessem ocupados agora, certamente estaríamos sem medicações", declara.

Mesmo com a redução de 20% no atendimento na UTI destinada a casos de covid-19, Marim aponta que atualmente há medicamentos para pacientes intubados somente pelos próximos três ou quatro dias.

"O estoque de anestésico, principalmente, está muito crítico", declara. Ele ressalta, porém, que a situação é dinâmica e que "a busca por fornecedores é incessante e diária", por isso acredita que a unidade logo deve conseguir abastecer o estoque.

A atual realidade da Santa Casa de São Carlos é um exemplo em meio a tantas outras unidades de saúde que também vivem o drama da escassez de medicamentos que compõem o chamado "kit intubação". Esse cenário tem sido registrado em todo o país.

Nesta quarta-feira (14/4), São Paulo ganhou destaque em relação ao tema, após o governo estadual solicitar os medicamentos com urgência ao Ministério da Saúde e afirmar que teve pedidos anteriores ignorados pelo governo federal.

Seis leitos de UTIs foram desativados na Santa Casa de São Carlos (SP) em razão da escassez de medicamentos para pacientes intubados
Seis leitos de UTIs foram desativados na Santa Casa de São Carlos (SP) em razão da escassez de medicamentos para pacientes intubados
Foto: Assessoria Santa Casa de São Carlos / BBC News Brasil

Escassez do 'kit intubação'

Medicamentos como anestésicos, sedativos e bloqueadores neuromusculares são fundamentais para casos graves de covid-19, quando o paciente precisa ser intubado. Esses fármacos garantem a realização do procedimento que assegura a chegada de oxigênio aos pulmões nos quadros mais críticos da doença.

Diante do atual cenário no país, o pior desde o início da pandemia, a explosão de internações pela covid-19 fez com que o sistema de saúde ficasse ainda mais sobrecarregado.

Cada vez mais, os medicamentos para pacientes em estado grave são utilizados. A partir de então, eles viraram alvos de alertas sobre a possibilidade de se tornarem escassos.

Em março deste ano, o Ministério da Saúde tomou uma série de medidas administrativas para centralizar as compras dos medicamentos que compõem o chamado "kit intubação".

Com isso, todo o excedente de produção dos laboratórios farmacêuticos que fabricam esses anestésicos, sedativos e bloqueadores neuromusculares foi encaminhado para o Governo Federal, que ficou responsável por realizar a distribuição aos Estados por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).

Para o Ministério da Saúde, na época sob o comando do então ministro Eduardo Pazuello, a centralização das compras de medicamentos do "kit intubação" seria uma forma de melhorar a distribuição dos itens pelo país.

Mas desde o mês passado, os relatos sobre escassez desses medicamentos se tornaram cada vez mais comuns.

O secretário de Saúde do Estado de São Paulo, Jean Gorinchteyn, afirmou nesta semana que a quantidade de medicamentos enviada ao Estado até o momento é "ínfima".

Na terça-feira (13/4), o governo de São Paulo encaminhou um ofício ao Ministério da Saúde afirmando que precisava receber medicamentos do kit intubação em 24 horas para repor estoques e evitar o desabastecimento das medicações nos hospitais.

Gorinchteyn disse que encaminhou, nos últimos 40 dias, nove ofícios ao Ministério da Saúde sobre a situação e a redução contínua dos estoques. Apesar disso, ele afirma que não recebeu nenhuma resposta.

"À medida que o Governo Federal fez essa requisição emergencial, nós perdemos a possibilidade de adquirir esses produtos. Nós atendemos os nossos hospitais estaduais, mas os municípios também estão pedindo ajuda e nós precisamos acolhê-los", declarou Gorinchteyn, em entrevista coletiva na quarta-feira (14/4).

O secretário de São Paulo afirmou que a situação no Estado é "gravíssima". Ele disse que o sistema de saúde está na "iminência do colapso" por causa da escassez desses medicamentos.

De acordo com Gorinchteyn, o Estado paulista precisa receber essas medicações com urgência para conseguir abastecer 643 hospitais pelos próximos dez dias.

Durante a coletiva de quarta-feira, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), afirmou que o Ministério da Saúde "cometeu um erro gravíssimo" ao centralizar a compra e distribuição dos medicamentos.

"Nenhum governo estadual, municipal ou instituições privadas pode adquirir esses insumos porque as empresas receberam um confisco, um sequestro do Governo Federal. Gostaríamos de saber por que o Ministério da Saúde não faz a distribuição desse material aos Estados, que podem levar até a ponta nos hospitais", declarou.

Nos últimos dias, representantes de Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Bahia e outros Estados também fizeram manifestações e alertas ao Ministério da Saúde sobre a escassez dessas medicações.

Esse cenário existe atualmente em todos os Estados, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).

Em nota à BBC News Brasil, o Ministério da Saúde afirma que já distribuiu mais de 8 milhões de medicamentos "para intubação de pacientes ao longo da pandemia". Segundo a pasta, um grupo de empresas vai doar, nesta semana, mais de 3,4 milhões de medicamentos, "que serão distribuídos imediatamente aos entes federativos".

O Ministério da Saúde afirma que estão em andamento dois pregões e uma compra direta desses medicamentos por meio da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS).

"A pasta esclarece que todos os acordos feitos para aquisição de medicamentos de intubação orotraqueal (IOT) respeitam a realidade de cada fabricante, os contratos fechados anteriormente e a necessidade do Brasil, contemplando hospitais públicos e privados nas regiões com maior risco de desabastecimento", diz o comunicado do Ministério da Saúde.

'Está faltando em muitos locais'

Um médico intensivista que trabalha em UTIs de hospitais da Grande São Paulo afirma à BBC News Brasil que muitas unidades de saúde da região têm enfrentado diversas dificuldades diante da escassez do "kit intubação".

"A atuação está muito complexa. Hoje mesmo estava com o pessoal de compra de um hospital e não conseguiram sequer uma ampola de bloqueadores musculares. O Ministério da Saúde ordenou que as fábricas repassem os medicamentos ao governo federal, porém isso não está chegando na ponta", critica o médico, que pediu para não ser identificado.

"A gente tem recorrido a drogas alternativas, que não usamos em condições normais. Isso virou uma realidade em grande parte do país", acrescenta o médico.

Pelo país, profissionais de saúde têm recorrido a medicamentos que normalmente não são usados em terapia intensiva para manter paciente em ventilação mecânica atualmente. Desta forma, medicamentos que já estavam em desuso para esse fim voltaram a ser adotados em alguns locais, como Metadona (opioide), Diazepam (ansiolítico) em comprimido, tiopental (barbitúrico usado para indução de anestesia geral), entre outros.

Sem sedativos, anestésicos e bloqueadores neuromusculares, a intubação é muito mais difícil e traumática
Sem sedativos, anestésicos e bloqueadores neuromusculares, a intubação é muito mais difícil e traumática
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O intensivista ouvido pela reportagem afirma que faltou organização do Ministério da Saúde em relação aos medicamentos.

"Chegamos à atual situação porque houve aumento mundial no consumo dessas drogas, mas isso era admissível. O governo federal deveria ter colocado as fábricas para até, se possível, quintuplicar as produções dessas drogas no Brasil ou importar para ter um estoque estratégico. Era preciso ter visão estratégica", diz.

O médico diz que o cenário de escassez do "kit intubação" aumenta a mortalidade nas unidades de saúde. Ele afirma que essa situação supera até a já preocupante média de 80% de mortes entre os infectados que precisam de ventilação mecânica no Brasil, conforme revelou levantamento feito em 2020 pelo pesquisador Fernando Bozza, da Fiocruz — a média mundial é de, aproximadamente, 50% de óbitos nesse estágio da doença.

"Posso dizer que está faltando muitos (medicamentos) em muitos locais. Isso faz com que a qualidade da assistência fique péssima. Não à toa a mortalidade em vários locais está acima de 90% em quem é intubado", declara o intensivista.

Dificuldades para adquirir medicações

Na Santa Casa de São Carlos, cujos atendimentos são por volta de 80% relacionados ao SUS, os estoques duravam de sete a 10 dias no ano passado, em meio à pandemia. "Se precisasse, a gente conseguia buscar o material, pois sabia onde encontrar", afirma o infectologista Vitor Marim.

Agora, além de alguns medicamentos terem aumentado até 500% em razão da alta demanda, os responsáveis pelos hospitais enfrentam dificuldades para encontrar os fármacos.

"Hoje, nem se tivéssemos muito dinheiro conseguiríamos encontrar com facilidade, por causa da escassez no mercado", declara Marim.

No fim de março, por exemplo, a unidade de saúde de São Carlos precisou receber anestésicos de outros dois hospitais da região porque não tinha o medicamento para a intubação de pacientes com a covid-19. Situação semelhante já foi registrada em outras unidades de saúde de São Paulo, como a Santa Casa de Limeira, que também precisou pedir medicamentos a outros hospitais.

Um levantamento feito com 300 hospitais filantrópicos nesta semana pela Federação das Santas Casas e Hospitais Beneficentes de São Paulo (Fehosp) apontou que as unidades de saúde do Estado entraram em contato com mais de 22 fornecedores de medicamentos no início desta semana e não encontraram possibilidade de compra.

Segundo a Fehosp, a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo tem auxiliado, mas não tem conseguido grandes volumes dos fármacos.

UTI em São Paulo; pesquisa com farmacêuticos de hospitais paulistas despertou preocupação com o desabastecimento de medicamentos cruciais
UTI em São Paulo; pesquisa com farmacêuticos de hospitais paulistas despertou preocupação com o desabastecimento de medicamentos cruciais
Foto: Reuters / BBC News Brasil

"Estamos batalhando por importações que estão sendo lideradas pela Confederação das Santas Casas, mas os estoques no exterior também não estão disponíveis e tememos pelo pior. Se o volume de internação não cair rapidamente, não conseguiremos repor os estoques e será uma situação trágica", afirmou o diretor-presidente da Fehosp, Edson Rogatti, em nota encaminhada à imprensa.

O levantamento da Fehosp apontou que mais de 160 hospitais consultados tinham estoques de anestésicos, sedativos e relaxantes musculares para, em média, três a cinco dias de duração. Além disso, os responsáveis pelas unidades também relataram que os antibióticos estavam começando a ficar escassos.

Segundo a federação, alguns dos hospitais que estão operando com estoques de dois a três dias estão localizados em cidades como Matão, Guarujá, Votuporanga, Presidente Epitácio, Fernandópolis e Rio Preto.

Conforme a Fehosp, são raros os locais de São Paulo que possuem estoque para 10 dias. Além disso, a entidade alerta que as unidades que afirmam ter medicamentos para cerca de oito dias são os hospitais maiores, que recebem grande volume de novas internações diariamente e nos quais o estoque pode cair "bruscamente de um dia para o outro".

O temor de faltar qualquer alternativa de medicamento é constante para profissionais de saúde que atuam em hospitais com pouco estoque do "kit intubação".

Vitor Marim, que está na linha de frente na Santa Casa de São Carlos, comenta que uma das maiores dificuldades é começar um tratamento e não saber se aquela prescrição será executada até o fim, em razão da possibilidade de que a medicação acabe em poucos dias.

"Diariamente avaliamos o que podemos usar hoje ou amanhã. Daqui a dois dias, pode ser que não tenha mais aquela medicação e precisaremos alternar com outra", diz o infectologista.

"O tratamento atual tem uma complexidade muito maior, porque não sei se terei medicamento para daqui a dois ou três dias", acrescenta.

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