Meirelles defende 'imprimir dinheiro' contra crise do coronavírus: 'Risco nenhum de inflação'
Em entrevista à BBC News Brasil, ex-presidente do BC apoia medidas extraordinárias contra impacto da pandemia, mas diz que reservas internacionais devem ser preservadas.
Grande defensor do controle de gastos públicos, o secretário de Fazenda e Planejamento de São Paulo, Henrique Meirelles, não tem dúvida de que é hora do governo federal aumentar fortemente suas despesas para conter o impacto do coronavírus sobre a saúde e a economia.
Em entrevista à BBC News Brasil, ele diz que isso deve ser feito inclusive com a impressão de dinheiro pelo Banco Central (BC) e com a captação de recursos pelo Tesouro Nacional por meio da emissão de dívida.
Na visão de Meirelles, a retração da economia agora será tão brutal que não existe risco de inflação caso a autoridade monetária emita moeda, por exemplo, para o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 concedido a brasileiros de baixa renda por ao menos três meses.
"O Banco Central tem grande espaço de expandir a base monetária, ou seja, imprimir dinheiro, na linguagem mais popular, e, com isso, recompor a economia. Não há risco nenhum de inflação nessa situação", disse.
Presidente do BC durante a crise financeira internacional de 2008, no governo Lula, Meirelles diz que turbulência atual é mais imprevisível por depender da duração da pandemia. Ele, que há duas semanas, acreditava em uma retração do PIB brasileiro de 3% em 2020, agora já espera queda de mais de 5%.
Embora apoie a emissão de moeda e o aumento de dívida, Meirelles não abraça a proposta de vender parte das volumosas reservas internacionais que o Brasil começou a acumular justamente quando ele presidia o BC, pois considera que elas são um importante seguro para o país.
A venda é defendida por alguns economistas porque a reversão das operações para compra das reservas em dólar reduziria o endividamento público, compensado o aumento da dívida para custear o pacote anticrise.
Meirelles, porém, diz que é melhor deixar o endividamento subir, mesmo que possa sair do atual patamar de 76% do PIB para próximo de 90%.
"Olha, dos males o menor. Qual é a alternativa (ao aumento de dívida)? A alternativa é um colapso econômico", alerta.
"É uma despesa que tem começo, meio e fim", diz ainda, em referência aos gastos emergenciais contra a atual crise. "Acabou a pandemia, acabou isso, nós voltamos à normalidade, pode voltar à austeridade fiscal", ressaltou.
Mas, apesar da forte defesa das despesas nesse momento, o secretário não vê condições de o Brasil fazer gastos da mesma dimensão que a Alemanha, que já anunciou mais de 30% do PIB em medidas contra os impactos do coronavírus.
Como ministro da Fazenda do governo Temer, Meirelles liderou a adoção de um teto de gastos no país. À BBC News Brasil ele refuta que o mecanismos tenha limitado os gastos com Saúde, deixando o país mais vulnerável para enfrentar o coronavírus. Confira a seguir a entrevista.
BBC News Brasil - O senhor disse em 25 de março que o PIB brasileiro iria recuar 3% neste ano por causa da pandemia do coronavírus. O banco Itaú divulgou na segunda-feira que prevê queda de até 6,4%. A economista Monica de Bolle fala em retração entre 5% e 9%. O senhor acredita que a contração da economia será ainda pior do que previa antes?
Henrique Meirelles - Sim. Pela evolução da pandemia no Brasil, não há dúvida que pode aumentar esse número (de queda do PIB) pelo próprio aumento da duração da crise. Por exemplo, quando se vê, na primeira página de um jornal, uma fotografia de pessoas caminhando no calçadão (da praia) do Leblon (na zona sul do Rio de Janeiro), não há dúvida de que não está havendo aí uma disciplina necessária (de isolamento social).
Por razões diversas, seja por opiniões do presidente (Jair Bolsonaro), seja a própria falta de disponibilidade das pessoas, seja a preocupação de ordem objetiva de não receber (rapidamente) a ajuda do governo federal dos R$ 600 e as pessoas ficarem preocupadas com a sobrevivência e ir para a rua (trabalhar) para ganhar alguma coisa, trabalho informal, etc. Em resumo, por razões diversas, o fato resultante é que possivelmente teremos uma extensão maior de tempo (da pandemia) e em consequência a queda deve ser maior que o previsto inicialmente.
BBC News Brasil - Diante do quadro extraordinário de crise gerado pela pandemia, economistas brasileiros e estrangeiros estão defendendo que os bancos centrais imprimam dinheiro e transfiram para indivíduos e empresas. Jim O'Neill, economista britânico que criou o acrônimo Brics, disse, em entrevista recente ao jornal Valor Econômico, que isso inclusive se aplica ao Brasil. É preciso radicalizar na resposta à crise e imprimir dinheiro?
Meirelles - Não há dúvida. Evidentemente que a expressão "imprimir dinheiro" muitas vezes é uma expressão forte que pode preocupar as pessoas. Existem maneiras mais técnicas de dizer isso: "expandir ou recompor a base monetária". Não é exatamente (imprimir) dinheiro no sentido de dinheiro físico. Ele expande a moeda porque a expansão se dá principalmente em contas correntes, das empresas, dos bancos, é distribuído isso (por meio das contas bancárias). Então, é na realidade uma expansão contábil.
O Banco Central está sempre calibrando isso (a quantidade de dinheiro circulando). Quando a atividade econômica atinge o máximo da capacidade, os preços começam a subir, você tem inflação. Muito bem, aí houve a inflação, o Banco Central sobe a taxa de juros, retira dinheiro de circulação. Isso aí faz com que a atividade econômica volte por equilíbrio.
Vamos supor que você tem uma recessão. Aí você corta a taxa de juros, você incentiva, injeta liquidez na economia, e isso faz com que a economia se recupere. Só que agora o que nós temos? Uma brutal recessão.
Com isso, diminui o meio de pagamento (quantidade de dinheiro circulando), então o Banco Central tem grande espaço de expandir a base monetária, ou seja, imprimir dinheiro, na linguagem mais popular, e com isso recompor a economia. Não há risco nenhum de inflação nessa situação.
BBC News Brasil - Isso não provocaria aumento de inflação num primeiro momento porque a economia está desaquecida, como o senhor disse. Mas num segundo momento isso poderia ter algum implicação de aumento de endividamento? O Banco Central teria que tomar alguma ação depois para ajustar isso?
Meirelles - Não há aumento necessariamente de endividamento porque o Tesouro Nacional não está tomando recursos, emitindo títulos no mercado (na operação de "impressão de dinheiro" do Banco Central).
No momento em que o Banco Central emite (moeda), ele está simplesmente expandindo (a base monetária). Ele tem a capacidade de emissão sem contrair dívida. E isto é como distribuir (esse dinheiro emitido pelo BC). Se o governo distribui, por exemplo, através do auxílio emergencial de R$ 600 (criado para proteger brasileiros de baixa renda durante a crise do coronavírus), não há aumento nenhum de endividamento.
Agora, evidentemente que, no final do processo (de medidas econômicas em reação à crise do coronavírus), haverá um aumento da dívida pública. Independentemente de alguma capacidade de emissão (de dinheiro) do Banco Central sem necessariamente passar pelo Tesouro (emitindo dívida).
Por exemplo, esses R$ 40 bilhões que foram para o BNDES (para uma linha de crédito emergencial com juros subsidiados para empresas durante a crise), o Tesouro emitiu títulos e isto foi para o BNDES, o BNDES repassou (em empréstimos para as empresas). Então essa operação aumentou a dívida pública. Ou se o Tesouro fosse ao mercado e vendesse papéis (emitisse títulos da dívida para captar recursos), aumentaria a dívida, sim. Mas, isso tem que ser feito.
A prioridade, hoje, é evitar a depressão. Fazer com que a economia continue a funcionar. Porque, se não, será a pior solução possível: se as empresas forem destruídas, processo massivo de (pedidos de) recuperação judicial, desmantelamento dos parques industriais, quando acabar a crise as empresas não terem condições de retomar as atividades, você não só terá desemprego, você não só terá recessão, não vai ter arrecadação (de impostos pelo governo) também, porque as empresas vão estar, muitas delas, desestruturadas.
Portanto, é fundamental hoje manter o parque produtivo. Antes disso, (o governo deve pagar) auxílio para as pessoas se manterem, é o passo número um. Passo número dois, preservar as empresas para preservar o parque produtivo do país. E, a partir daí, sim, organizar, depois, a retomada. Então é necessário expansão da dívida do Tesouro e a expansão monetária do Banco Central.
BBC News Brasil - Durante sua gestão como presidente do Banco Central, o Brasil iniciou um processo de forte acúmulo de reservas internacionais. Essa operação de compra exigiu emissão de títulos públicos pelo Tesouro, o que aumentou a dívida pública. Agora, economistas como Braúlio Borges, da FGV, defendem que parte dessas reservas seja vendida, reduzindo o endividamento público e abrindo espaço para novas dívidas para financiar as ações anticrise agora. Ele estima que o Banco Central poderia vender US$ 127 bilhões dos cerca de US$ 350 bilhões que temos hoje em reservas internacionais, um cálculo que ele faz a partir do indicador do FMI que mede o volume prudencial de reservas. Como o senhor vê essa proposta?
Meirelles - Não há dúvida de que o Brasil tem reservas mais do que suficientes. Tem hoje US$ 340 bilhões ou um pouco mais (em reservas internacionais), já teve US$ 376 bilhões, tá ótimo. Agora, o problema de você vender reservas é que, ao contrário do que nome pode sugerir, que é dinheiro líquido em caixa que você tem lá e etc, isso não é exatamente assim.
O Banco Central, exatamente para controlar a inflação, controlar os meios de pagamento (quantidade de dinheiro em circulação), na época que foi comprando reservas, ele não imprimiu dinheiro para comprar reservas. O Banco Central tomou dinheiro emprestado no mercado, as chamadas operações compromissadas (em que o BC capta dinheiro vendendo títulos da dívida pública com compromisso de recompra no futuro), e assim comprou as reservas (comprou dólares).
No momento em que o Banco Central vende essas reservas (internacionais) e diminui as operações compromissadas, significa que ele vende a reserva, retira dinheiro (os reais) das pessoas, das empresas, ou dos bancos que compraram (os dólares) e, para diminuir a dívida, ele faz o quê? Ele coloca novamente o dinheiro (os reais que recebeu pela venda dos dólares) no mercado (recomprando títulos da dívida pública).
Então, do ponto de vista de incentivo da atividade econômica, é uma questão que não teria um efeito direto. Por exemplo, se fosse uma coisa líquida, o Banco Central vendesse isso (as reservas) no exterior, gerasse dinheiro para gastar aqui no Brasil, mas não é o caso, não é essa a operação.
Então, o que acontece, resumindo a história: nós chegamos a uma questão de dizer, "muito bem, mas o Brasil não precisa de ter um nível tão elevado de reserva e, no final do processo, um nível tão elevado de dívida pública; se você diminui um pouco as reservas, por outro lado, você diminui também a dívida". O efeito, na visão desses economistas, é positivo, porque (na visão deles) a diminuição da dívida tem um impacto na percepção de risco do país maior do que a diminuição das reservas tem na piora (da percepção de risco).
Eu acho que é uma tese que não necessariamente será vista assim porque a reserva (internacional) é uma das coisas que fez com que o Brasil enfrentasse, por exemplo, essa recessão enorme de 2015, 2106. Nós tínhamos amplas reservas. Essa é uma coisa que dá segurança ao país, ao contrário de alguns (países) vizinhos que têm problemas graves aí por falta de dólar. Então, essa questão de reservas tem que ser mexida com um certo cuidado. E eu acho que a solução atual adotada (para enfrentar a crise provocada pelo coronavírus), de aumento do endividamento do Tesouro, etc, é hoje a medida mais adequada, sem estarmos fazendo experiências agora num momento de crise.
BBC News Brasil - Para que fique mais claro para o leitor não especializado em economia, essa operação compromissada que o senhor explicou do Banco Central para enxugar os reais na economia quando ele comprou os dólares justamente envolveu a emissão de títulos da dívida pelo Tesouro, é por isso que houve o aumento da dívida pública. A venda das reservas internacionais significaria a reversão dessas operações com a redução do endividamento, correto?
Meirelles - Exato.
BBC News Brasil - A dívida bruta pública do Brasil está num patamar de 76% do PIB e muitos economistas consideram que, se isso subir para 90% do PIB, aumentaria muito a percepção de risco do país, tendo efeitos negativos sobre a taxa de juros. Por isso, parte deles defende a venda das reservas, para assim compensar o aumento da dívida provocado pelos gastos emergenciais contra a atual crise. O senhor, então, devido ao contexto extraordinário que estamos vivendo, não vê problema da dívida subir para patamares até próximos de 90% do PIB?
Meirelles - Olha, dos males o menor. Qual é a alternativa (ao aumento de dívida)? A alternativa é um colapso econômico, que é pior, porque aí nós teremos aumentos posteriores da dívida. Porque aí inclusive o PIB cai, e a dívida como percentual do PIB já aumenta matematicamente. Fora a questão do desemprego e da capacidade da economia de gerar emprego e renda no futuro e evidentemente a arrecadação pública (que também cai quando há recessão).
Então, entre as duas alternativas, não há dúvida de que, a essa altura, a alternativa da emissão de títulos, isso é, do aumento da dívida, é melhor. Além do que, isto é um ponto importante (as medidas contra a crise provocada pelo coronavírus), é uma razão de aumento de dívida que todos compreendem e acham que está certa.
Uma coisa é quando o governo está gastando (com) o pagamento de aposentadorias, algumas de muito alto valor, (para) magistrados, funcionários públicos, etc. Pessoas que trabalharam muito, bons profissionais, mas o país tem dificuldade (de arcar com essas aposentadorias). Então, no momento em que a dívida estava aumentando por estas razões, o Brasil se aposentando mais cedo, muito mais cedo do que a expectativa de vida, estas despesas gerando aumento da dívida, evidentemente (isso) era insustentável.
Agora, com tudo isso, a reforma da Previdência feita, a reforma administrativa (para mudar regras de progressão salarial dos servidores públicos) em andamento, que deverá ser concluída, e o Teto de Gasto (norma constitucional que limita aumento de despesas), todos olham e dizem: "não, essa (despesa emergencial contra a crise) é uma despesa necessária, fundamental, tem que ser feita para preservar as pessoas e a economia brasileira e é pontual". Tem começo, meio e fim. Acabou a pandemia, acabou isso, nós voltamos à normalidade, pode voltar à austeridade fiscal.
BBC News Brasil - Temos visto outros países fazendo grande esforço fiscal contra a crise gerada pela pandemia. O pacote de medidas da Alemanha já supera 30% do PIB alemão. No Brasil, estaria girando em torno de 4% do PIB. O senhor acha que o governo brasileiro tem condições e deveria fazer um gasto da magnitude do governo alemão, de 30% do nosso PIB?
Meirelles - Olha, infelizmente são situações diferentes. A Alemanha pode conviver com uma dívida pública enorme porque ela tem uma tradição de décadas e décadas e décadas de austeridade fiscal, pagamento de dívidas (em dia), etc. No Brasil, nós já tivemos, infelizmente, um histórico de hiperinflação, depois de calote (da dívida em 1987). Então precisamos ser realistas. Um país como a Alemanha, que é um país rico, que tem um parque produtivo enorme, etc, tem condições depois de pagar essa dívida pública com maior capacidade. A realidade é que se o Brasil gasta a mesma coisa do que a Alemanha, possivelmente nós teremos aí um aumento de percepção de risco, de juros, etc., que será negativo para o país.
Então, cabe ao governo federal ir testando o limite. Talvez 4% (do PIB em medidas anticrise) seja pouco, mas não podemos pressupor que o limite do Brasil é igual o da Alemanha. Porque nem os países do sul da Europa têm a capacidade que a Alemanha tem de gerar recursos e crescer, a capacidade industrial alemã, por exemplo. Como é que nós vamos achar esse limite? Tem que ir testando e nós temos excelentes técnicos do Tesouro Nacional para fazer isso.
BBC News Brasil - Quando essa crise acabar, o endividamento e os gastos do governo estarão em patamares mais altos. Têm aumentado no Congresso propostas de aumento de alguns impostos, como taxar dividendos, taxar grandes fortunas. O senhor acha que isso pode entrar nas medidas de ajuste fiscal após a crise?
Meirelles - Olha, tem uma série de medidas que são inquestionáveis, relacionadas à volta da austeridade fiscal. Então, volta-se à aplicação rígida do teto de gastos, é necessário fazer uma reforma administrativa extremamente rigorosa. Isto é, cortar o patamar de despesas do país. Agora, o aumento de impostos, ele é uma possibilidade, não há dúvida. O problema é que nós temos que separar a visão ideológica da visão econômica.
A visão econômica é o seguinte: qual a capacidade que nós temos de aumentar impostos na economia brasileira, mantendo a capacidade de produção da economia? Nós precisamos olhar isso com calma, versus a visão ideológica que diz "tem que taxar isso e aquilo, aumentar e muito a tributação sobre lucro de empresas, etc", porque, veja você, a palavra lucro já é maldita por definição.
Nós temos que ir, mais uma vez, testando esses limites, pra verificar até quanto nós temos capacidade de aumentar os impostos sem prejudicar a retomada do emprego. Porque nós vamos sair dessa crise com as companhias fragilizadas. Nós temos que preservar ao máximo isso pra depois recuperar, gerar emprego e renda. Se nós sobrecarregarmos esse parque produtivo com uma taxação que prejudica a eficiência do processo, aí será ruim.
Agora, não estou eu dizendo "não, não tem campo pra aumentar nada (de imposto)". Estou dizendo que nós temos que olhar isso, mais uma vez, com uma visão racional. Não vamos olhar isso aí como o bezerro de ouro que nós vamos lá arrancar dinheiro dessa turma. Calma! Nós estamos falando aqui do parque produtivo nacional que nós temos que voltar a botar pra produzir, né? E isso é que é importante, isso é o que o país vai precisar: emprego e renda.
BBC News Brasil - O Brasil é muito desigual economicamente e tem um sistema tributário regressivo. Então há um certo consenso hoje em dia da necessidade de rever essa estrutura. O senhor acha que dentro de uma reforma mais ampla que buscasse um sistema mais progressivo de tributação seria positivo taxar grandes fortunas e dividendos?
Meirelles - Vamos separar duas questões aqui. Uma coisa é o sistema brasileiro regressivo, né? E nós temos que pensar num momento de fazer com que exista uma maior distribuição de renda. A questão que se coloca, no entanto, no Brasil, é a seguinte: quando se pensa na distribuição de renda, você pensa em taxar mais quem tem mais, (que) é um raciocínio simplista, e o governo distribuir pra quem tem menos. Calma. Essa não é a melhor forma de distribuir a renda.
A melhor forma de distribuir a renda é o emprego. Por exemplo, eu estive no Banco Central de 2003 a começo de 2011, no governo Lula. Houve uma maciça distribuição de renda do governo taxando (mais)? Não. O Brasil, de fato, cresceu muito. Naquela época nós geramos quase onze milhões de empregos no Brasil, cinquenta milhões saíram da miséria e entraram na classe média. Como foi feito isso? Geração de emprego. Estabilizamos a inflação, estabilizamos o câmbio, o país pôde crescer. O Bolsa Família ajudou aquelas pessoas que estavam totalmente fora do mercado de trabalho, mas não foi este o grande fator (que distribuiu renda).
À medida em que tem emprego, tem renda. Então, nós temos condições de ir treinando, qualificando as pessoas. Em resumo: problemas de distribuição de renda existem e são importantes sim, mas não é isso (taxar dividendos e grandes fortunas) que vai resolver o problema da grande maioria dos brasileiros. A grande maioria dos brasileiros precisa de emprego.
BBC News Brasil - Embora tenha havido queda durante o governo Lula, a concentração de renda permanece em patamares altíssimos no Brasil. Não pode haver concomitante à geração de emprego um sistema tributário mais progressivo, que taxe mais os de maior renda e redistribua essa renda? Afinal, a forma como o governo arrecada e gasta é um instrumento muito forte de distribuição ou concentração de renda.
Meirelles - De novo, eu acho que nós não podemos, ideologicamente, nos agarrar nisso. Se taxar as pessoas de renda mais elevada e distribuir através de programas sociais, o governo vai usar esse dinheiro como pra beneficiar a população? Vai distribuir, aumentar o Bolsa Família, etc. O que eu acho é que não existe história de país que resolveu seu problema social assim. Problema social é resolvido com criação de emprego em massa. E pra isso a capacidade produtiva do Brasil tem que aumentar e nós temos que gerar crescimento. Políticas que gerem crescimento e isso gera emprego e gera renda. Isto é o que é absolutamente fundamental. Se quisermos aí aumentar um pouco a tributação, tudo bem. Mas não é isso que vai resolver o problema da distribuição de renda no Brasil. Não é o Governo distribuindo um pouco mais, seja aumentando, dobrando, triplicando o Bolsa Família, é que vai resolver o problema.
BBC News Brasil - O teto dos gastos foi adotado no governo Michel Temer quando o senhor era Ministro da Fazendo. Alguns críticos desse mecanismo dizem que ele limitou a expansão de gastos com saúde e agora o SUS (Sistema Único de Saúde) está subfinanciado pra enfrentar essa crise grave do coronavírus. O senhor reconhece que o teto de gastos pode ter deixado o país mais vulnerável nesse momento?
Meirelles - Não. A resposta clara é não. Por que? O que o teto de gastos teve como efeito é forçar a reforma da Previdência, acabar com as altas aposentadorias, gente se aposentando com 50 anos de idade pra ganhar R$ 30 mil. Isso sim foi o grande efeito do teto de gastos.
O teto de gastos não colocou teto pra Saúde, nem colocou teto pra Educação. Lê o artigo da Constituição, ele estabeleceu um piso mínimo pra investimento em Saúde, um mínimo pra investimento em Educação. Então não é o teto (específico em Saúde e Educação). É muito o contrário: o teto dos gastos, forçando a reforma da Previdência e agora a reforma administrativa, (reduz despesas com aposentadorias e salários de servidores e) gera recursos para aplicação em Saúde e Educação.
Não há dúvida de que a Saúde no Brasil sempre foi mal servida, não foi uma prioridade. Quais eram as grandes prioridades? Manifestação lá em Brasília ocupando o Congresso, ocupando a Esplanada, o que que era? Aposentadoria, aposentadoria, aposentadoria. Era isso que gerou grandes manifestações populares, valor de aposentadoria, principalmente daqueles que ganham mais. Nunca houve grandes manifestações pra ter aumento de gastos em Saúde.
Agora, com uma crise dessas, não tem que nem olhar pra teto. Já tem a previsão na Constituição pra que em crises como essa o teto possa ser totalmente sobrepujado. O importante é que tem piso (de gasto mínimo) pra Saúde e piso pra Educação, não tem teto (específico para essas áreas).
BBC News Brasil - Mas com o mecanismo do teto de gastos esse piso tem subido agora num ritmo menor que antes.
Meirelles - Não. Não reduziu. O piso (agora) é uma proporção do produto do país. Ele não é uma proporção dos gastos públicos.
BBC News Brasil - Antes o piso para gasto mínimo em Saúde e Educação era uma proporção da receita corrente líquida do governo. Não houve uma diferença de cálculo que acaba reduzindo esse piso?
Meirelles - Imagina agora (na crise do coronavírus, em que a arrecadação deve cair bruscamente) se fosse uma proporção da receita corrente líquida. Agora, com a queda brutal da receita (do governo) numa crise, a despesa de Saúde iria cair.
BBC News Brasil - Essa mudança de cálculo do piso reduziu em R$ 9 bilhões a despesa em Saúde no ano passado, segundo cálculo do próprio Tesouro Nacional.
Meirelles - Nós podemos aumentar os gastos em Saúde, como estamos aumentando agora. E com a reforma da Previdência aprovada e aprovando a reforma administrativa (ainda não enviada pelo governo ao Congresso), eu acho que nós temos que investir maciçamente na Saúde e na Educação.
BBC News Brasil - O senhor arriscaria uma projeção para o PIB deste ano, ou é difícil estimar quanto pode ser a queda?
Meirelles - Olha, é difícil, mas nós podemos sempre fazer uma estimativa. Nossa estimativa inicial era uma queda que podia ser de 10% no segundo trimestre e de 3% no ano. Hoje, isso já está claramente subestimado. E nós já estamos pensando aí em algo acima de 5% no ano e uma queda obviamente maior no trimestre, uma queda forte.
Quando nós entramos na crise de 2008, a causa era muito objetiva. Isto é, os bancos internacionais tinham entrado em colapso, as linhas de crédito para o Brasil tinham entrado em colapso, isso gerou uma crise séria. Então, no Banco Central, nós tínhamos um diagnóstico claro de qual era o problema e o que era necessário pra resolver. E aplicamos agressivamente as medidas.
Agora não, a causa é a Saúde, uma pandemia. Então, a duração da recessão vai depender do quê? Da duração da pandemia. Vai depender do sucesso desse confinamento, adotar isso rigidamente, conter a pandemia, ganhar tempo. Porque hoje, se a doença expande-se muito rapidamente, congestiona o sistema de saúde, não tem leito, aí o problema piora de uma forma dramática.
Então, os infectologistas têm aí uma opinião, nesse caso, que precede as estimativas dos economistas. Cada economista que está fazendo uma estimativa (de resultado do PIB) está se baseando em alguma opinião de infectologistas sobre a duração da pandemia.