Nos bastidores, ordem da Saúde é ignorar falas de Bolsonaro
Avaliação interna na pasta comandada por Mandetta é de que o presidente deve cessar os ataques quando 'a realidade se impor'
As declarações do presidente Jair Bolsonaro enquadrando o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, não surpreenderam a equipe da pasta. Segundo auxiliares do ministro ouvidos pelo Estado, a leitura é de que o presidente tenta se afastar de responsabilidades na crise envolvendo a pandemia do coronavírus para jogar no colo de Mandetta e dos governadores os efeitos negativos na economia. A ordem interna é não rebater e seguir o trabalho de combate à covid-19, a exemplo do que tem feito o próprio ministro. Demissão também está fora do horizonte de Mandetta e de sua equipe, exceto se Bolsonaro mandar.
Após dias contrariando publicamente as orientações do ministro sobre a melhor forma de evitar a propagação do vírus, o presidente disse ontem que falta "humildade" ao ministro e, embora tenha afirmado que não pretende dispensá-lo "no meio da guerra", ressaltou que ninguém é "indemissível" em seu governo. O protagonismo do auxiliar diante da crise envolvendo a pandemia do coronavírus já vinha incomodando o presidente há algum tempo, como revelou o Estado em 17 de março.
"O Mandetta já sabe que a gente está se bicando algum tempo. Eu não pretendo demitir o ministro no meio da guerra. Agora, ele é uma pessoa que em algum momento extrapolou. Eu sempre respeitei todos os ministros, o Mandetta também. Ele montou o ministério de acordo com sua vontade. Eu espero que ele dê conta do recado", disse Bolsonaro em entrevista à rádio Jovem Pan.
Questionado pelo Estadão/Broadcast sobre as declarações, Mandetta respondeu: "Trabalho, lavoro, lavoro", repetindo a palavra que significa "trabalho" em italiano.
As críticas de Bolsonaro ao trabalho da pasta já não têm o mesmo impacto. A avaliação interna no ministério é de que o presidente deve cessar os ataques quando "a realidade se impor", possivelmente quando for registrado o pico de casos da covid-19 no País. Segundo estimativas da Saúde, isso deve ocorrer ainda em abril.
A principal divergência entre Bolsonaro e Mandetta é sobre a questão do isolamento social. Enquanto o presidente defende flexibilizar medidas como fechamento de escolas e do comércio para mitigar os efeitos na economia do País, permitindo que jovens voltem ao trabalho, Mandetta tem mantido a orientação para as pessoas ficarem em casa. A recomendação do ministro segue o que dizem especialistas e a Organização Mundial de Saúde (OMS), que consideram o isolamento social a forma mais eficaz de se evitar a propagação do vírus.
Pessoas que participaram de reuniões internas com o ministro nos últimos dias dizem que Mandetta não tem comentado sobre a queda de braço com Bolsonaro. A exemplo do presidente, o ministro também oscila no discurso - ora pontuando que é totalmente a favor de um isolamento social mais amplo e ora criticando a imprensa, por exemplo, para agradar a militância bolsonarista.
Secretários estaduais e municipais dizem também ter compreendido a estratégia de Bolsonaro. Eles afirmaram que não creem em uma mudança de tom de Bolsonaro, mesmo após o último pronunciamento de Bolsonaro na TV, quando falou em "união". Na manhã seguinte o presidente voltou a fazer críticas a governadores, mesmo que indiretamente. Para estes secretários, não vale a pena estender a briga com o presidente, ainda que seja importante contrariá-lo vez ou outra. A avaliação é de que as falas de Bolsonaro têm efeito sobre boa parte da população e mobilizam grupos de pressão contrários ao isolamento, dizem os gestores do SUS.
Pessoas próximas ao ministro dizem que Mandetta tem se concentrado no combate à doença. Faz reuniões nos finais de semana e estuda relatórios sobre o impacto do vírus em outros países. Primo de Mandetta, o deputado Fábio Trad (PSD-MS) afirma que o ministro jamais pensou em se demitir por ataques de Bolsonaro.
Na noite de ontem, quando falou com a reportagem sobre as declarações do presidente à Jovem Pan, o ministro participava de reunião com a Confederação nNacional de Medicina (CFM) e outras entidades para tratar sobre o uso da cloroquina para tratamento da covid-19. No dia anterior, o ministro havia sido excluído de reunião entre Bolsonaro e um grupo de médicos para discutir o mesmo assunto.
Enquanto o presidente defende a aplicação do medicamento em pacientes da covid-19, Mandetta pede cautela até que haja comprovação científica da eficácia desse fármaco, normalmente usado para malária. / COLABOROU JULIA LINDNER