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Coronavírus

Ômicron: Como o HIV fez a África do Sul reforçar vigilância genômica viral

País africano convive com alta prevalência do HIV na população, cenário que criou uma estrutura robusta de vigilância. Pesquisadores locais identificaram rapidamente a nova cepa Ômicron no fim de novembro

6 dez 2021 - 15h11
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CIDADE DO CABO - O forte sistema de vigilância epidemiológica da África do Sul é um dos trunfos do país no combate à pandemia de covid-19. Foi esse sistema que conseguiu detectar com agilidade a nova variante Ômicron, que reacendeu o alerta mundial para a doença nas últimas semanas. Mas essa vigilância não é algo novo ou especificamente desenvolvido para o momento atual. Ela é uma herança de uma outra crise: a do HIV.

O sistema é considerado estruturado em razão do alto nível de prevalência do HIV na África do Sul, o que impulsionou pesquisas genômicas na área. A rede é composta por acadêmicos e pesquisadores de diferentes universidades que colaboram para agilizar as pesquisas de infecções transmissíveis.

A África do Sul está à frente do Brasil e monitora mais variantes do coronavírus, sequenciando 0,82% das cepas contra 0,35% no Brasil. O Estadão mostrou na semana passada que, apesar de ter avançado nesta área desde o início da pandemia, o Brasil ainda sequencia pouco na comparação com outros países, o que pode dificultar a identificação de variantes e o combate a novas ondas da doença.

A taxa estimada de prevalência de HIV na África do Sul, segundo o governo, é de aproximadamente 13,7% da população. Cerca de 8,2 milhões de sul-africanos vivem com o HIV em 2021. Para adultos de 15 a 49 anos, estima-se que 19,5% da população seja HIV positiva, o que representa uma das maiores prevalências proporcionais do mundo.

Há mais de 40 anos na epidemia global de AIDS, há progressos em relação ao combate a esse vírus na região africana. Uma análise da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostrou que o continente reduziu novas infecções em 43% e quase reduziu pela metade as mortes relacionadas à AIDS. Vizinho da África do Sul, a Botswana divulgou na semana passada que atingiu o marco de eliminar a transmissão do vírus HIV de mãe para filho.

"A covid-19 tornou a luta contra o HIV ainda mais desafiadora, mas um vírus não deve vencer o outro. Devemos combater a COVID-19 e o HIV em paralelo", disse Matshidiso Moeti, diretor regional da OMS para a África, em comunicado à imprensa.

Em entrevista ao portal de notícias da OMS, o professor brasileiro Tulio de Oliveira, pesquisador que identificou a variante Beta e agora a Ômicron, disse que a África do Sul tem usado a vigilância genômica para entender a transmissão e a resistência aos medicamentos de patógenos como HIV e tuberculose.

O HIV e a tuberculose, além de doenças respiratórias crônicas e diabetes, são as comorbidades comumente relatadas em crianças sul-africanas, segundo o Conselho de Pesquisa Médica da África do Sul (SAMCR).

O SAMCR disse que na terceira onda de covid-19 na África do Sul, entre todas as mortes em crianças causadas pelo Sars-Cov-2, 201 (35,6%) ocorreram entre adolescentes de 15 a 19 anos, e crianças com essas comorbidades representaram 56% das vítimas.

Por isso, o país se esforça para identificar os genótipos de variantes. Segundo Oliveira, dengue, chikungunya e a febre amarela são bons exemplos de como esses esforços ajudaram os pesquisadores a selecionar os melhores diagnósticos, vacinas e terapias possíveis. O estudo e sequenciamento genótipo também foi importante para identificar novas transmissões de zoonoses como ebola, marburg e febre de lassa, de acordo com Oliveira.

Ridhwaan Suliman é um pesquisador sênior do Conselho para Pesquisa Científica e Industrial da África do Sul (CSIR, em inglês). PhD em matemática aplicada, Suliman, ao lado do cientista brasileiro, tem publicado gráficos diários acompanhando a quarta onda de covid-19 no país, resultante da nova variante Ômicron. "O Tulio e sua equipe fizeram um trabalho incrível sequenciando e identificando variantes. Primeiro a Beta, um ano atrás, e agora a Ômicron", disse, em entrevista ao Estadão.

Imunossupressão favorece aparecimento de variantes?

Suliman acredita que a quantidade de imunossuprimidos no país pode ser um dos fatores ligados ao surgimento de novas variantes. O vírus pode se mutar em organismos saudáveis, mas o risco acaba sendo maior nas pessoas que têm as defesas fragilizadas, onde a doença pode se prolongar por mais tempo.

Em estudo publicado em agosto pela New England Journal of Medicine, cientistas afirmaram que pacientes com imunossupressão correm o risco de infecção prolongada com o SARS-CoV-2 e que, em vários relatos de casos, os pesquisadores indicaram que novas variantes podem surgir durante o curso de tais casos persistentes.

"A presença de um grande número de mutações também é uma marca registrada das variantes de preocupação - incluindo B.1.1.7 (alfa), B.1.351 (beta), P.1 (gama) e B.1.617.2 (delta) - o que sugere que a evolução viral em pacientes imunossuprimidos pode ser um fator importante no surgimento dessas variantes. Uma vez que um grande número de pessoas em todo o mundo está vivendo com imunossupressão inata ou adquirida, a associação entre imunossupressão e a geração de variantes SARS-CoV-2 altamente transmissíveis ou mais patogênicas requer delineamento adicional e estratégias de mitigação", diz o estudo.

O professor Shabir A. Madhi, reitor da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, apresenta ressalvas à tese.

"Embora a África do Sul tenha uma alta porcentagem da população vivendo com o HIV, a maioria das pessoas faz uso de antirretrovirais e o HIV não é a única condição imunossupressora. Provavelmente há mais pessoas no Brasil com imunossupressão devido a doenças como câncer, insuficiência renal e estar em outras condições imunossupressoras do que pessoas vivendo com HIV na África do Sul", disse.

Madhi lembra que a variante Alpha evoluiu no Reino Unido, a Delta na Índia e outras variantes em outros lugares.

Mundo observa efeitos da Ômicron em seu epicentro para tentar prever o futuro

Agora, o mundo olha para Gauteng, epicentro da Ômicron na África do Sul, tentando estimar prováveis efeitos da nova variante da COVID-19. Com uma taxa de transmissão e aumento de casos inéditos desde o início da pandemia na África do Sul, a atual situação de Gauteng pode indicar que o mundo terá de lidar com uma variante muito mais transmissível do que qualquer outra nesta pandemia de COVID-19.

Ainda assim, não se sabe se a Ômicron superará a Delta, que hoje é a responsável pela maioria dos casos no mundo. Enquanto a transmissão pela variante Delta na África do Sul caiu para níveis baixos, a Ômicron cresceu praticamente sozinha no país.

A nova variante já foi identificada em ao menos 38 países. Suliman explica que as ondas foram regulares na África do Sul, com duração de cerca de três meses, o que pode ser algo específico da trajetória imunológica do país.

Depois dos meses de inverno, a África do Sul teve uma baixa de infecções e viu os casos aumentarem novamente nos meses de verão entre 2020 e 2021, levados por uma nova variante: a Beta, também sequenciada no país.

A segunda onda durou um período similar de três meses. A terceira onda veio com a variante Delta - identificada primeiramente na Índia - até os últimos meses. "Os padrões têm sido bastante regulares e o período entre as ondas tem sido bastante consistente. Por conta disso pudemos fazer a previsão, já esperávamos uma quarta onda por volta desse período do ano, o que agora aconteceu, infelizmente", diz Suliman.

Ele explica que, possivelmente, níveis baixos de vacinação - a África do Sul tem cerca de 34% de sua população vacinada - contribuíram para que essa previsão se materializasse. Por outro lado, o pesquisador relata que a África do Sul teve uma grande parcela da população (entre 60 a 80%) que foi infectada, e que, portanto, a quarta onda só viria se uma nova variante surgisse, o que de fato aconteceu.

Estadão
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