Órgão do Governo sugere tratar autistas com eletrochoque
Documento elaborado pela Conitec coloca terapia sem comprovação científica como alternativa para casos graves
Um documento elaborado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), que é vinculada ao Ministério da Saúde, sugere o uso de eletrochoque para tratamento de casos graves de autismo. O próprio texto do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) reconhece que não há recomendação para o uso dessa alternativa em nenhuma das diretrizes clínicas internacionais consultadas e que as evidências de sucesso são muito incipientes, mas atribui a uma "equipe especializada" a opção pela técnica. A brecha aberta pelo órgão movimenta a comunidade no Brasil, que já reuniu mais de 8 mil assinaturas em menos de 48 horas contra a aprovação do protocolo, atualmente em consulta pública.
Conhecido hoje como eletroconvulsoterapia (ECT), o tratamento consiste na estimulação cerebral a partir de uma corrente elétrica que resulta em uma crise convulsiva com o objetivo de causar alterações no comportamento e atenuar sintomas psiquiátricos. A técnica foi desestimulada no Brasil durante a reforma psiquiátrica que culminou na Lei Antimanicomial de 2001, mas é indicada hoje para alguns casos como depressão severa com alto risco de suicídio, por exemplo, e catatonia.
"Mas não para autistas. Isso revela, além de tudo, uma completa falta de conhecimento do que as pessoas diagnosticadas no Transtorno do Espectro Autista (TEA) realmente precisam", ressalta a psicanalista e pesquisadora na área da infância Ilana Katz. Ela explica que o tratamento do autismo segue uma linha de cuidado construída desde 2012 baseada em uma rede psicossocial com pluralidade de abordagens.
O documento elaborado pela Conitec atualiza o protocolo recomendado para TEA na rede pública. A ETC e a estimulação magnética transcraniana (EMT) - outro tipo de eletrochoque - são citadas no capítulo 7 como "outras opções de tratamento" quando intervenções farmacológicas e comportamentais não surtem efeito. O texto chega a mencionar que casos graves de autismo, no qual se percebe um comportamento autoagressivo, podem ser sinal de catatonia, síndrome neuropsiquiátrica que gera perda de movimentos voluntários e pode ser tratada com eletrochoques com sucesso.
"Eles deram uma espécie de 'salto duplo carpado' para tentar justificar essa possibilidade que nunca deveria constar num documento oficial. Não discordo que haja indicações precisas e técnicas para a ETC e EMT, mas autismo certamente não é o caso", diz o psiquiatra da infância e adolescência Ricardo lugon Arantes. Ele ainda ressalta que casos graves nem cabem em protocolos.
Diretor do serviço de eletroconvulsoterapia do Hospital das Clínicas de São Paulo, que atende 30 pessoas por dia, o psiquiatra José Gallucci Neto afirma que a ETC não é indicada para autismo no Brasil nem em qualquer outro país.
"Não há estudos de qualidade e em quantidade que possam criar um consenso a esse respeito. O que temos são pesquisadores que acreditam haver uma correlação entre autismo severo, com histórico de automutilação, e catatonia, que é muito responsiva ao ETC, mas não temos conhecimento consolidado que prove isso."
Segundo Gallucci Neto, o procedimento hoje é feito de forma segura e proporciona uma resposta significativa tanto para pessoas em depressão severa como catatônicas. "O que se observa na depressão é que pessoas que estavam profunamente deprimidas, que tentaram suicídio por diversas vezes, voltam ao trabalho, à vida normal com o tratamento." No caso da depressão, são recomendadas até 12 sessões.
Manifesto de repúdio reúne 25 entidades e 8,4 mil assinaturas
Desde o dia 8, quando a consulta pública sobre o novo PCDT foi aberta, um manifesto de repúdio reúne 25 entidades e mais de 8,4 mil assinaturas contra a regulamentação da terapia no Sistema Único de Saúde. O texto afirma que oito das referências citadas pelo documento são específicas sobre catatonia e há um único artigo relatando estudo de um único caso de uma pessoa diagnosticada com autismo, depressão, catatonia e comportamento autolesivo.
Na reunião da Conitec realizada em novembro para apresentação do novo protocolo sugerido pelo órgão, a representante do Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde (NATS-UNIFESP-D), Daniela Melo, afirmou que a inclusão das terapias ETC e EMT foi um pedido de "especialistas", sem citar quais. Ela reconheceu ainda que não foi feita nenhuma revisão sistemática sobre o assunto.
"Nem uma recomendação formal para o seu uso, mas os especialistas chamaram bastante atenção sobre a necessidade de que isso fosse pelo menos citado no documento como uma alternativa para casos refratários graves que já tivemos outras tentativas de tratamento sem sucesso", disse Daniela, que dedicou menos de um minuto de sua apresentação para o tema que, além de polêmico, é bastante controverso entre psiquiatras.
Arantes ainda chama a atenção para o fato de Daniela ou mesmo a Conitec não ter mencionado a necessidade de consentimento do paciente. "A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU, deixa claro que o consentimento não pode ser subentendido. E não tem uma palavra, nada sobre isso em todo o documento", alerta.
Essa é também uma das preocupações da escritora Carol Souza, que está no espectro. "A eletroconvulsoterapia tem sido muito positiva no tratamento de condições de saúde mental como depressão profunda. Atualmente, ela é humanizada e comprovada cientificamente. Por isso, ela não deve ser demonizada e não é tortura nesses casos. Só que ela continua não sendo indicada para autistas e precisamos lutar contra esse retrocesso de colocar deficiências e condições de saúde mental como uma coisa só, como faziam a anos atrás", escreveu no Instagram, onde tem mais de 42 mil seguidores.
Mas, de acordo com José Gallucci Neto, nenhuma sessão de ETC ocorre sem consentimento do paciente ou do responsável. "A preocupação das famílias e pessoas com TEA em relação à presença do ETC no novo protocolo é válida. O que não se pode é demonizar o tratamento, que funciona para outros casos e é pouco usado no Brasil por um estigma em função do histórico de tortura nos tempos da ditadura. Não estamos mais nessa época."
Em nota, o Ministério da Saúde informou apenas que a proposta de atualização do PCDT do comportamento agressivo no TEA está em consulta pública até o dia 27 de dezembro, sem se manifestar a respeito de seu conteúdo.