Por que mesmo quem teve covid deve tomar vacina — ao contrário do que disse Bolsonaro
Os indivíduos que se infectaram com o coronavírus também precisam receber as doses, apontam especialistas.
É comum ouvir a frase "eu já tive covid-19 e tenho anticorpos" como argumento para não tomar as duas doses da vacina.
Justificativas do tipo já foram repetidas diversas vezes, inclusive pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) — no dia 10 de outubro, por exemplo, ele se queixou de não poder entrar no estádio Vila Belmiro para acompanhar a partida entre Santos e Grêmio pelo Campeonato Brasileiro.
"Por que cartão, passaporte da vacina? Eu queria ver o jogo do Santos agora. Me falaram que tem que estar vacinado. Por que isso?", questionou o presidente.
"Eu tenho mais anticorpos do que quem tomou a vacina", completou.
Ele repetiu a afirmação no dia 13 de outubro, durante uma entrevista à Rádio Jovem Pan. "Eu decidi não tomar mais a vacina. Estou vendo novos estudos, a minha imunização está lá em cima…", declarou.
Outro que seguiu essa mesma linha de raciocínio foi o empresário Luciano Hang, durante sua participação na CPI da Covid no dia 29 de setembro.
"Eu queria responder que eu não tomei vacina porque eu tenho um índice de anticorpos altíssimo", declarou Hang, após uma pergunta feita pela senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA).
Mas a verdade é que esse tipo de argumento não encontra respaldo na ciência e há um consenso entre os especialistas de que a vacinação é importante mesmo para quem já teve covid-19.
"Não existe nenhuma dúvida de que mesmo aqueles que se infectaram com o coronavírus devem tomar as doses", esclarece a médica Denise Garrett, vice-presidente do Instituto Sabin de Vacinas, uma instituição que trabalha com políticas públicas de imunização em várias partes do mundo.
Entenda a seguir as evidências que suportam a recomendação de vacinação para aqueles que já tiveram a doença.
De onde vem essa história?
Embora esse argumento contrário à vacinação de quem já se infectou seja usado desde o começo do ano, ele ganhou mais força a partir de agosto, quando cientistas israelenses divulgaram uma pesquisa no MedRXiv, um portal que reúne artigos que ainda não foram avaliados por especialistas independentes e publicados em jornais especializados.
O trabalho, feito no Centro de Pesquisa & Inovação Kahn Sagol Maccabi e na Universidade de Tel Aviv, comparou três grupos: o primeiro com indivíduos que tinham recebido as duas doses da vacina de Pfizer/BioNTech, o segundo com pessoas que tiveram covid-19 previamente e o terceiro com integrantes que tinham se infectado no passado e haviam recebido uma dose de imunizante.
Os resultados mostraram que as pessoas do primeiro grupo (os vacinados) tinham um risco 13 vezes maior de ter uma infecção causada pela variante Delta em comparação com a segunda turma (aqueles que tiveram a doença no passado).
A pesquisa indica que as pessoas que tiveram covid possuíam uma "imunidade natural" mais forte e duradoura contra a infecção, a doença sintomática e a hospitalização relacionadas à variante Delta em comparação com a imunidade obtida após a vacinação.
Um detalhe pouco explorado do estudo israelense é que o terceiro grupo (indivíduos que tiveram covid e tomaram a vacina) apresentaram uma proteção adicional contra o coronavírus quando comparado aos outros dois.
"A questão é que esses achados foram tirados de contexto e acabaram usados para justificar a recusa às vacinas", explica Garrett.
Numa reportagem sobre a pesquisa feita em Israel publicada na Science Magazine, o imunologista Michel Nussenzweig, da Universidade Rockefeller, nos Estados Unidos, já havia demonstrado um certo receio de como essas descobertas poderiam reverberar entre a população.
"Nós não queremos que as pessoas pensem: 'Certo, então eu devo sair de casa e me infectar'. Isso pode acabar causando mortes", reforçou o especialista, que não esteve diretamente envolvido no estudo.
Os perigos da 'imunidade natural'
As evidências mostram, portanto, que pessoas que tiveram covid-19 costumam desenvolver uma resposta imune após se recuperarem.
"O problema é que essa resposta varia muito de pessoa para pessoa de acordo com uma série de fatores", observa o médico João Viola, presidente do Comitê Científico da Sociedade Brasileira de Imunologia.
O especialista explica que a carga viral (a quantidade de coronavírus que o indivíduo tem contato no momento da infecção), a gravidade da doença, a idade e a genética são algumas das variáveis que moldam a resposta de nosso sistema de defesa.
Em outras palavras, isso significa que um sujeito com covid-19 pode desenvolver uma super resposta imunológica, enquanto outro tem a enfermidade e a reação em seu organismo é fraca e pouco efetiva (o que aumenta o risco de ele se reinfectar no futuro).
"E cerca de 10% dos pacientes que tiveram essa doença não desenvolvem anticorpos neutralizantes", calcula Garrett.
Fora que, numa parcela considerável dos acometidos, a doença está relacionada a uma série de complicações, que exigem hospitalização e intubação e podem até levar à morte. Ou seja: não é nada seguro buscar uma "imunidade natural" para algo que está matando milhares de pessoas todos os dias.
Vacinas como uma aposta bem mais segura
Na contramão, os imunizantes foram desenvolvidos e testados para suscitar uma resposta mais uniforme nas pessoas.
"Na grande maioria daqueles que recebem as vacinas, é possível prever que haverá uma resposta imunológica", compara Garrett.
"Falamos de doses padronizadas que foram avaliadas em estudos rigorosos, com eficácia e a segurança demonstradas", completa a especialista.
Vale lembrar aqui que os imunizantes são feitos a partir do vírus inteiro inativado (caso da CoronaVac, por exemplo) ou trazem códigos de instrução para nosso próprio organismo construir pedacinhos parecidos ao que é encontrado no agente causador da covid-19 (como os produtos de AstraZeneca e Pfizer).
Independentemente da plataforma tecnológica, todas as vacinas se mostraram seguras nos estudos clínicos e não há risco algum de elas causarem a covid-19.
"Além dos componentes principais, os imunizantes também carregam as chamadas substâncias adjuvantes, que são capazes de aumentar ainda mais a resposta imune", acrescenta Viola.
Nos sujeitos que já tiveram a doença no passado, portanto, tomar as doses só vai trazer benefícios, explicam os especialistas. Aqueles que não desenvolveram uma resposta imune após a infecção conseguem ativar o sistema de defesa por meio da vacinação. Já aqueles que tinham obtido algum nível de proteção após ficarem doentes conseguem "atualizar" e "aprimorar" os processos imunológicos desenvolvidos previamente.
Esse efeito pode ser observado na prática numa pesquisa conduzida pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, que acompanhou o status da vacinação no Estado do Kentucky.
Os autores compararam os dados dos cidadãos que tiveram covid-19 ao longo de 2020 e que optaram por tomar o imunizante ou se recusaram a receber as doses ao longo de 2021. Os resultados mostram que o risco de ter uma reinfecção pelo coronavírus é 2,3 vezes maior no grupo que não foi vacinado.
"E precisamos ter em conta que a vacinação é sempre uma estratégia coletiva: cada pessoa mais protegida significa uma queda proporcional na transmissão do vírus pela comunidade", diz Garrett.
Vale medir os anticorpos?
Nas frases de Bolsonaro e Hang, eles também deixam claro que fizeram exames para medir o nível de anticorpos que possuem depois da covid-19.
A questão é que esse tipo de teste não é indicado pelas sociedades médicas brasileiras, uma vez que seus resultados não são confiáveis e podem levar a uma série de conclusões e interpretações precipitadas.
"O fato de ter anticorpos não significa que eles funcionem ou sejam específicos para barrar o coronavírus", explica o imunologista Carlos Zárate-Bladés, pesquisador do Laboratório de Imunorregulação do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina.
"Até existem testes mais elaborados que fazem esse tipo de discriminação dos anticorpos, mas eles são caros, demorados e não estão acessíveis a todos", complementa.
O pesquisador adiciona que uma estratégia dessas também não faz sentido do ponto de vista de saúde pública: ora, é muito mais custo-efetivo oferecer as vacinas para todo mundo (inclusive aqueles que tiveram a covid-19, até porque eles se beneficiam das doses) do que disponibilizar testes cujos resultados não trazem muitas respostas práticas ou mudam as recomendações.
Garrett também conta que ainda não está claro qual é o "correlato de proteção", ou a quantidade mínima de imunidade que realmente garante que a pessoa não vai ter a doença (ou ao menos as suas formas mais graves).
"Nesse sentido, fazer um teste de anticorpos não diz muita coisa sobre o quanto estamos resguardados ou não", afirma.
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil também explicam que um nível baixo de anticorpos não significa necessariamente que a pessoa está vulnerável à covid-19: existem outros mecanismos do sistema imunológico, que não são medidos por esses exames, que podem atuar para evitar a infecção ou o agravamento dela.
"Existe toda uma resposta feita por células imunes, que independe dos anticorpos", exemplifica Viola.
Nessa mesma linha, o raciocínio reverso também faz sentido: não é só porque alguém está com anticorpos elevados que não corre risco de contrair o coronavírus e ficar doente. O temor dos médicos e cientistas é que exames do tipo deem uma falsa sensação de segurança, e façam a pessoa relaxar nas outras medidas preventivas necessárias para o momento, como o uso de máscaras, a preferência por locais abertos e bem arejados e o cuidado com as aglomerações.
"É importante que todo mundo vá ao posto para receber a primeira e a segunda dose e continue tomando os cuidados básicos", reforça Viola.
"Só quando a gente tiver acima de 70% ou 80% da população vacinada é que vamos ter mais segurança para entender a situação e ultrapassar de vez por esse período penoso que vivemos", finaliza o imunologista.